Tumgik
gustavoheusner-blog · 6 years
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Sobre meus eus - e ela
Preciso admitir que é difícil matar a Criança.
"Será que eu realmente preciso matar ela?"
"Sim", diz seco a sombra ao meu lado.
Olhando-a agora na minha frente, olhos altivos de um possível astronauta, presidente, super-herói, o Homem diz pra mim "vai, enterra, acaba com ela!"
É difícil.
A Criança não apenas me fita: me consome, me inunda com suas inseguranças outrora tão boas - mas agora aterrorizantes.
A mão começa a tremer, a boca a gaguejar.
"A vida não permite ensaios", diz o Homem ao meu lado, aspecto rude, um tanto quanto grotesco.
É esse meu medo - ou pelo menos um deles.
"Quando vou esquecer ela?", pergunto ao Homem, pois a criança tem uma tremenda cara de boba de quem não sabe nada e come meleca.
Enquanto acende um cigarro, pigarreia de canto: "Nunca, ela é teu ópio, um drogado nunca consegue esquecer o vício, ele só adormece"
Fico surpreso com a resposta, "me fodi" susurro, enquanto penso existir uma certa beleza nisso tudo, um Q poético.
"Amei como nunca antes e perdi, agora vivo de lembranças - que infelizmente são e serão só lembranças", me pego ainda sentindo teu cheiro que é quase tão forte como teu toque. Quase.
O Caio certa vez disse que dragões tem o cheiro mais marcante de todos: alecrim. Diz ainda que sempre sentimos o tal cheiro quando um dragão está por perto.
Ele nunca deve ter tido a oportunidade de cheirar tua pele.
Eu sempre sinto teu cheiro. Olho ao redor e não te vejo, porém sinto como se estivesse beijando todo teu corpo e segurando ambas as mãos com os dedos entrelaçados.
Caio entendia de dragões, não de mulheres.
"E tu entende de mulher, o mongolão?" Diz gargalhando o Homem de rosto sofrido.
"Mas o que? Como tu sabe o que eu tô pensando?"
"Nós somos tu", enquanto aponta a criança ranhenta de olhos inocentes, que, por coincidência da vida ou não, comia meleca naquele exato momento.
"E tu quer que eu mate uma parte minha?"
"Não dá pra ser infantil e adulto ao mesmo tempo, escolha. Escolha e carregue o peso."
Penso. Vacilo.
É mais difícil dizer adeus ao meu antigo eu do que eu jamais imaginaria! Deixar ir, não ser mais outra pessoa. Desapegar-se é a palavra?
Não sei, mas a ideia de poder ser eu mesmo me atormenta, é tão incrível que chega a ser aterrorizante!
Nunca fui um homem comum ou pelo menos nunca me senti assim. Talvez por isso nenhum olhar tenha chamado atenção ao longo da minha caminhada.
Quase nenhum.
Esses teus olhos de deusa-demônio me roubaram de mim. Apenas aceito que não mando mais em porra nenhuma e só consigo me doar pra ti, da forma mais leve e espontânea possível.
"Não vou matar ninguém, mas vocês podem ir" digo a ambos, dou um último sorriso sincero antes do adeus, enquanto me viro na direção oposta e caminho rumo ao sol, ébrio pela luz fulmegante que ao mesmo tempo me cega e leva a caminhos desconhecidos.
As sombras do passado que fiquem pra trás, quero me embebedar no teu corpo e na tua alma, caminhar ao teu lado - não na frente ou atrás - de mãos dadas.
Soterrar juntos as inseguranças, medos e incertezas que nos rodeiam, só preciso segurar tua mão, fitar teus olhos e falar que vai ficar tudo bem.
Sabemos quão forte foi a colisão dos nossos mundos. Mundos imperfeitos e cheios de cicatrizes - elas latejam, doem e sangram em noites tempestuosas, mas eu vou estar lá! Quero, quando chover, poder te abrigar, não suportaria te ver ficar resfriada! Passar a palma da mão pelas bochechas enquanto acaricio as sardinhas cor-de-ferrugem que nenhum metal JAMAIS será capaz de reproduzir. Fazer um omelete pra quinze pessoas, fumar um beck gigante, assistir todas as séries possíveis em uma vida humana, acordar as duas da manhã de uma quarta-feira e ir pra praia contemplar o nascer do sol pelo simples prazer da companhia.
"Que bom seria ter ela aqui", reflito enquanto o peito se contrai involuntariamente e sinto uma fisgada.
"Tu não precisa perder ela", grita nas minhas costas ao longe a criança que sequer sabia que era alfabetizada - me viro.
"Qual teu nome?"
"Esperança"
Por um momento fico paralizado, completo "não preciso de ti pra seguir em frente?"
"Tu nunca precisou, somos parte do teu eu, enquanto tu viver há esperança! Nos carregue na lembrança e nos deixe pra trás junto com as incertezas"
"Mas eu nunca corri atrás de ninguém! Errei com ela, fui horrível, não sei se ela ainda me quer."
"E nunca saberá, mas se ela quiser, tu vai ler naqueles olhos verdes que tanto te fascinam"
"Posso ir atrás dela então?"
"Deve".
A Criança, no fim, sabia mais que o sábio adulto.
Novamente me viro ao sol, despido e de peito aberto, talvez nunca antes tão vulnerável e seguro ao mesmo tempo.
Fecho os olhos e corro em busca do teu cheiro sem medo de tropeçar.
- Gustavo Heusner
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gustavoheusner-blog · 6 years
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“Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e a arte de representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida - umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana. Não é o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso.”
— Fernando Pessoa. 
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gustavoheusner-blog · 6 years
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“Por isso num dia de calor Me sinto triste de gozá-lo tanto, E me deito ao comprido na relva E fecho os olhos quentes, Sinto o meu corpo deitado na realidade, Sei a verdade e sou feliz.”
— Alberto Caeiro (heterónimo de Fernando Pessoa) - excerto da obra “Guardador de Rebanhos” 
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gustavoheusner-blog · 6 years
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“Então compreendi perfeitamente o que gerava a dor. Não era o corte com a ponta da faca, a topada na quina da cama, o amigo que não liga mais, o café que sujou o fogão, as palavras duras, as notícias na tv, obviamente isso soma-se ao fardo, mas não é ele em si. A dor era gerada pela sede insaciável do nada. Pois quando não se tinha o que queria sofria e quando conseguia almejava outra coisa para sofrer. E é por essa sede que os humanos consomem seus dias, pelos futuros que nunca virão ou que serão fadados quando chegarem. E a maior idiotice era perceber: eu também era um desses tais que nunca estava de barriga cheia.”
— Fernando Pessoa.   
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gustavoheusner-blog · 7 years
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gustavoheusner-blog · 7 years
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gustavoheusner-blog · 7 years
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Ás vezes, não há nenhum aviso. As coisas acontecem em segundos. Tudo muda. Você está vivo. Você está morto. E as coisas continuam. Somos finos como papel. Existimos por acaso.
Charles Bukowski. (via descrever)
Somos pó, somos vento. Somos o acaso de cada momento.
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