filipegoncalves
opúsculos do tempo
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filipegoncalves · 3 years ago
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MORTE AMIGA
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Certa feita a Morte me disse seu nome, para que em seguida eu o esquecesse. Não era seu objetivo que eu o retivesse. Objetivava apenas plantar em mim a capacidade de v��-la, distingui-la disfarçando-se em tudo e, quem sabe, amá-la. Desde então, constantemente a vejo. Onipresentemente íntima.
Ter me tornado amigo da Morte e identificá-la nos olhares decepcionados. Não mais enojar-me de sua presença no cheiro fétido dos resíduos. Ouvi-la em cada adeus. Assisti-la na salmoura das feridas, nas flores apodrecendo no vaso, nas artroses das ossaturas, no adro, nos carneiros, nas sepulturas – e pensar: soberana! Acaricia-la na flacidez dos corpos alheios e no seu próprio. Amá-la pela sua sabedoria, pela força motriz que proporciona ao mundo.
Ter me tornado amigo da Morte e tatear os vincos de suas ranhuras nos troncos dos cedros. Acariciar os pêlos das suas patas hirtas. Não mais temer sua silhueta sisuda no escuro das funduras. Distinguir seu cheiro no úmido das composteiras. Nutrir-se de gordos vermes que escavam o húmus dos troncos já ocos caídos numa sombra de floresta, do bolor de pães dormidos, das vísceras dos corvos. Fortalecer-se com o cálcio dos fósseis. Alumiar moradas com chamas de fogo-fátuo. Adorar seu sotaque no monocórdico canto dos bodes.
Ter me tornado amigo da Morte e saber do seu hálito. Tê-la vista nua, de coque desfeito, descalça, sem meias. Conhecer sua letra. Distinguir seu corpo nos escuros - sua silhueta esguia. E então perceber seu rastro no fluxo, pelas estradas, suas pegadas ora leves, asas de borboleta, ora fundas, cascos de búfalo. Vê-la nas rugas, nas cãs, na moleza dos braços que se despedem. Sabê-la escondida no silêncio do amigo que já não diz mais bom dia. Sorrir-lhe de volta depois que o rangido de dentes pela dor das pernas caminhantes cessa. Ará-la nas vias crucis. Regá-la nos ventres das primas no resguardo de seus filhos recém-nascidos. E ainda assim amá-la após seu beijo em cada coisa ou pessoa que ela reivindica exigente, imperiosa, para si.
Ter me tornado amigo da Morte e distinguir sua voz no sopro dos ventos. Reconhecer sua presença misturada às sombras das folhas abaixo da copa de uma árvore. Entender dos seus caprichos num tempo de antes em suas moradas ad sancto ou in agris suis. Inala-la nos estrumes dos jardins da casa dos avós. E, no entanto, ainda não ter dela resposta alguma quando se pergunta "quando é que vens?".
Dedo sempre em riste sobre os lábios, me pedindo silêncio para que eu não a denuncie, para que eu não revele aos outros suas outras modalidades para além dos corpos. Porque atrás de tudo está ela. Tudo é em razão dela: o amor, as palavras, a busca por um deus, o sexo. A vida é um empréstimo. É a Morte que nos faz humanos.
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filipegoncalves · 3 years ago
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CHEMICA
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É antes do ópio que a minh'alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.
(Álvaro de Campos)
“Afrouxar as ataduras da alma”, Hiram, foi essa expressão que li, eu me lembro, anos e anos atrás, num livro, um velho tomo de ciências ancestrais, para nomear isso, essa coisa que sinto agora, efeito dessas substâncias, ao seu lado. Antigos magos, inflamados de orações, defumados com incensos, entorpecidos com cânhamo, beladona, artemísia, hipnotizados com guinchos de mandrágoras, elevavam-se, despiam-se do mundo, correspondiam-se com o macrocosmo, conversavam com o Hermes Trimegisto, cavalgavam o dragão indômito de Astaroth, copulavam com Ísis, sugavam o falo de Príapo – desvendavam eles os mistérios que se ocultam por detrás dos véus da vida. Tendo afrouxado eu também as ataduras de minh’alma com o que usamos e colando a minha desordem ao seu corpo nu, Hiram, percebo agora que é possível uma outra forma de se sentir neste mesmo mundo em que tão desencantadamente vivemos. Continuados – é assim que parece estarmos: continuados – deram-nos trégua os abismos; foram extintas as ilhas. Vejo feixes cruzados de luzes vermelhas e verdes pousarem em seu regaço. Sinto os cheiros de sua pele macia e morna e eles parecem materializarem-se como adornos em você – não bastassem esses desenhos que já lhe estampam, desenhos que, nesta outra forma lucidez, agora consigo de modo coeso ler a narrativa que juntos eles compõem – Champollion decifrando a Pedra de Roseta. Prometo-lhe que guardarei comigo o seu segredo. Silenciarei também nesta cama sobre tudo o que não for Desejo. Pois o meu e o seu corpo estão dependentes do nosso contato mútuo. Nossas línguas procuram o mais fundo de nossa boca. E neste mesmo instante, no interior de uma densa floresta escura, mulheres feitas de uivos dançam em honra à deusa Hécate ao redor de vísceras de serpentes ofertadas em sacrifício. Beija-me mais e mais demoradamente, libemos à todas elas com nossas salivas. A parafina das velas dos altares escorre pelas nossas faces e costas nesse suor que lubrifica nossos abraços. Mil línguas daquele sagrado fogo que arde sem consumir nos lambem nesse instante feérico. Você também sente, sim? Não soltemos nossas mãos, deixa que minhas pernas permaneçam enlaçando a sua cintura, não nos desencaixemos. Você com sua cara de fauno tinha razão: há portais para outras realidades, para outras possibilidades, dentro de nós mesmos – basta engolirmos as chaves certas.
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filipegoncalves · 4 years ago
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Fiat Lux
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Muito tempo atrás, uma das professoras mais queridas que já tive (e tenho como principal modelo na minha vida profissional hoje) me contou que havia sido freira. Fiquei muito surpreso, pois, até ali, nada nela me fizera adivinhar isso - era uma senhora casada há décadas, com alguns filhos e netos. Quis saber o que a tinha feito largar a vida religiosa. Ela me respondeu que uma série de pequenos pensamentos a faziam achar que queria sair, mas não ousou por um logo tempo contar, ainda que alusivamente, a nenhuma colega sua no convento. Até que um dia acabou revelando a uma delas - elaborou em discurso o que até então era só um torvelinho difuso na mente e oralizou. Depois disso não teve mais paz interior até de fato sair de lá. Essa explicação dela até hoje reverbera em mim. Desde aquele dia mantive-me atento à prisão em que o gesto verbal também a mim encarcera. Dizer! Dizer e acionar no mundo, na vida, atos - as palavras nas asas da borboleta da teoria do caos. Um "sim" dito e veredas são abertas a destinos elísios ou a labirintos intransponíveis. É sempre possível voltar atrás com a palavra, sim, mas já não mais pelos mesmos caminhos... Mesmo um "eu te amo" dito a plenos pulmões pode ser a senha pra um paraíso a dois ou um passe para um inferno pessoal. A palavra dita invoca! No final das contas, substantivos, verbos, adjetivos, advérbios e todas as demais classes de palavras viram vocativos. O deus cristão a tudo fez com gestos verbais - "faça-se a luz" e a luz foi feita. Um dia, não me lembro quando, mas é certo que houve esse dia, por uma primeira vez eu disse "eu sou" e só me restou, aos trancos e barrancos, ser. O que ainda me salva na maior parte das vezes é o segredo.
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filipegoncalves · 4 years ago
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Viagem de uber ao passado
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Saí atrasado de casa e, em vez de ir pro trabalho de ônibus, como de costume, peguei um uber. O motorista era um senhor que tudo em si, do físico à vestimenta, correspondia ao que nosso imaginário fornece quando visualizamos mentalmente um senhor. Apesar de sério, não me pareceu antipático. Cumprimentei-lhe com um bom dia, que ele respondeu. No som do carro tocava Elis Regina e eu, por achar que não teria muito o que conversar com um senhor tão senhor, permaneci calado ainda sob o último torpor de sono curtindo a música. Ele também não falou. Quando passamos um pouco depois da metade do caminho, ele, que (eu não contava com isso) sabia exatamente onde fica a escola em que trabalho, desprezou a orientação usual do GPS e entrou em outra rua. Mas o senhor não devia ter entrado ali? perguntei-lhe já principiando a irritação que sinto quando os motoristas de uber se perdem. Por aqui é melhor e mais rápido, ele respondeu tranquilo. Calei-me com desconfiança. Segundos depois ele falou: aqui ficava uma choperia maravilhosa que eu frequentava quando mais jovem, ali a escola que eu estudava... morei por aqui no Espinheiro por vinte e seis anos, me mudei quando casei. Olhei pra ele, que tinha ganhado um novo ar: estava sorridente e nostálgico. Onde o senhor mora agora? Em Pau Amarelo. Que diferença..., pensei. Ele continuou:  minha casa era enorme, muita gente, a vendemos dezesseis anos depois da morte de papai, agora virou um edifício; papai fazia feira aqui no Mercado da Encruzilhada, uma vez foi assaltado e o assaltante o cortou com uma navalha... aquilo foi um espanto para todos, não se ouvia falar em assaltos nesta cidade; eu ia daqui andando para o Clube Português na alta madrugada e meu medo era só de encontrar com uma alma no caminho, hoje a gente tem medo das almas sebosas, né? Ele riu. Eu ri. Fiquei olhando pra ele naquele restinho da viagem. Estava alegre, de volta a um tempo que não foi meu. Percebi que devia ter sido um homem muito bonito naqueles anos para os quais ele tinha voltado no trajeto e algo daquela beleza parecia ter retornado-lhe à face. Tinha sido muito feliz, certamente. O tempo de hoje pode ser que não lhe seja tão generoso, mas com certeza aqueles vinte e seis anos ainda fulguravam dentro dele fazendo a vida já ter valido a pena. Assim como a cidade, Recife, cheia de passados de beleza, nestes tempos tão difíceis, duros e cinza: o nosso tempo.
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filipegoncalves · 4 years ago
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O sertão-mar
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Um dos significados mais primeiros da palavra “sertão” (antes de povoar os imaginários apenas como um lugar de seca, fome e árvores retorcidas) é o de terras distantes do litoral. Um lugar  geograficamente distante do mar. Eu nasci no sertão, geograficamente distante do mar. No sertão me criei, sob um céu singular de sol intenso e luares deslumbrantes.  Há algum tempo, vivo em Recife, cidade à beira mar; no Pina, um bairro à beira mar. No entanto, nunca me afeiçoei a programas solares, como ir à praia. Mas todos os dias vejo o mar: à tardinha, quando saio do trabalho, espero ônibus num ponto na avenida Boa Viagem – é quando então o vejo. Em seu reiterado movimento de ondas, no vento circundante, nas chuvas, no desaguar dos rios – sempre se renovando, fecundo, maternal. Ele também me olha, eu sinto – impossível escapar. Eu sertanejo. Pois é mais que sabido: um dia, milhões de anos atrás, meu sertão também sustentou um oceano. Então eu mar ancestral, eu sal da terra, recebo o chamado. A vida é líquida, como diz aquela poeta. O sertão é em toda parte, é sem lugar, é dentro da gente, é sozinho, como diz aquele outro.  O mar enorme, imenso, incomensurável, ininteligível – qualquer coisa deste medíocre mundo humano caberia dentro de suas grandes águas. Mas eu-sertão – mar dinossáurico, olhos de camelo, coração oceano, sentimentos transbordantes – eu caibo? Ficamos assim nos encarando nas primeiras horas crepusculares, sertão e mar – tão próximos, até que meu ônibus chega e me leva. Permaneço olhando pelas janelas em movimento. Sempre assim em irretocável silêncio – porque ainda maior que o mar e eu-sertão, é o nosso silêncio de profundezas. Um dia, dizia o profeta, o sertão voltará a ser mar. E o mar, também virará sertão? Não há agora como saber. Mas é certo, como é certa a morte de cada um de nós, que seja onde for, haverá mar e haverá sertão.  
(Crônica de 17 de julho de 2015)
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filipegoncalves · 4 years ago
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Sofreu
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Quando eu era criança, minha vó criava alguns pássaros, em viveiros e gaiolas. Várias espécies, algumas que nem me lembro mais.  No entanto, jamais me esquecerei dos periquitos, que infernizavam as manhãs com uma barulheira desmedida, e não me esqueço, sobretudo, do Sofreu. 
O Sofreu é um pássaro lindo, de corpo cor laranja avermelhado e cabeça, cauda e asas pretas – estas sempre com uma tarja branca, lhes adornando. Típico do serrado e sertão, adora comer a seiva das flores dos ipês e das do mandacaru. Tem o canto claro, sonoro e de plangente maviosidade e meio melancólico; para emiti-lo, geralmente assume umas posições meio esquisitas, que vão de esticar demasiadamente o pescoço para cima a ficar de cabeça para baixo. 
Vovó parecia amar aquele pássaro e, como em geral os amores fazem, o Sofreu a fazia sofrer. Ele vivia fugindo. Era impressionante: sabia como abrir a portinhola da gaiola. E saía a passear pelas árvores dos quintais da vizinhança. Até que algum moleque conseguia capturá-lo e o levava de volta para vovó, que lhe recompensava com um generoso valor em dinheiro. 
Um dia, cansada de Sofrimentos, vovó abriu a gaiola. Deixou escancarada a portinhola. Meu coração ficou aflito, ansioso. O Sofreu permaneceu um longo tempo lá dentro, indiferente, impassível. Até que com a cabeça a se agitar curiosa, percebeu que a liberdade lhe fora dada de graça e legalmente, então voou. Vovó não olhava, fazia crochê na sala.
Para mim, o pássaro é a mais livre das criaturas. Mesmo o das gaiolas, pois sua liberdade vem antes do PODER voar, sua liberdade vem do SABER voar. Saber voar – a mais onírico-nostálgica vontade humana. Essa vontade frustrada que nos fez inventar o avião, mas temer secreta ou declaradamente viajar neles. Essa vontade frustrada da qual nos salvamos criando anjos e por isso temermos uma vida plena. O Sofreu sabia, o Sofreu podia e voou, livre, como todos nós nos assombraríamos em ser. 
Entretanto, para a confusão total de minha cabeça infantil, para o meu terrível espanto e dos primeiros desencantos com a vida, dias depois, o Sofreu estava de volta à gaiola. Desta vez não fora capturado. Apenas voltou. A gaiola ficara, desde sua partida, pendendo no galho da goiabeira, aberta, intocada. Ele voltou. Entrou porque quis. Vovó – nunca perguntei-lhe o que sentiu –, horas depois, apenas fechou novamente a portinhola. Em sua liberdade, de livre e espontânea vontade, o Sofreu preferiu a gaiola. 
Por isso que hoje, eu homem, nunca me espanto com quem, por mais livre que possa ser, prefere o grilhão, a jaula, a gaiola.
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filipegoncalves · 4 years ago
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OPUS PASSIO VI
Dessignificando Vou derretendo os compassos Que criei. Desapagando linhas: Círculos que a vida desenhou E onde vivi Distorcido e fremente Frente à ruivez da vida.   (Hilda Hilst)  
UMA CRÔNICA SOBRE O TEMPO
 Um buraco negro, produto de uma massa pelo menos dez vezes maior que nosso sol confinada num espaço ínfimo, tem uma descomunal força gravitacional que a tudo suga – ralo do universo –, até mesmo a luz, e deforma o Tempo.
Tempo – a quarta dimensão das coisas. Tempo – desbotado das cores. Tempo – casca dos coágulos. Tempo – vapor da água de clepsidras. Tempo – promessa.  
Num futuro ignorado, ou num multiverso jamais conhecido, um astronauta por um segundo ficará preso no horizonte de eventos do Sagittarius A, mas conseguirá sair e, ao retornar para onde esperaria estar a Terra, haverá apenas despojos de nêutrons e fótons da Via Láctea já extinta.
O Tempo da mesma maneira se deforma em redor daquele que carrega consigo um coração adensado por um amor incompossível. E em sua morosa passagem em amassados e  dobras, decorrência da força de atração que a densidade massiva exerce no peito – por não poder jorrar, por infortunadamente não poder jorrar! –, também atrai espinhos, farpas, recordações acúleas, setas, quebrados de vidro, lâminas, pensamentos agudos, que ferem, trucidam. É ignorado o prazo da agrura.
É preciso que aprendamos a desviver o tempo, a desviver momentos e histórias. É preciso que saibamos desconhecer pessoas. Que saibamos manter trancadas as nossas casas, que as varramos e joguemos o lixo fora. Que apaguemos desenhos que fizemos em calendários. Que façamos a comida e ela seja só alimento e não mais lembrança.
A memória, perfumaria do Tempo, nos mente o passado. Não nos enganemos. Não traiamos a nossa razão. Se as vontades primeiras ainda nos inebriam com ilusões, encaremo-nos nós próprios nos espelhos e digamos não.
Domemos o corcel negro. Seguremos forte em sua crina e impeçamos que seu trote imprima em todas as flores sua pisada. Exijamos que ele marche em nosso favor. Que nos conduza aos unguentos. Façamos de suas tripas garrotes para estancar nosso sangramento. E com sua língua e saliva desfaçamos nódoas de nossa alma.
Há portas que se fecham apenas com chaves forjadas na dor. Chegada a hora, fechamo-las. E neste mesmo dia anos se passam.
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filipegoncalves · 4 years ago
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OPUS PASSIO V
No you won't fool the children of the revolution
(T. Rex)
  MANIFESTO PARA O AMOR TOTAL
 1. Amar-nos-emos, homens e mulheres, acima de todas as coisas e de deuses.
2. É preciso que amemos e nos deixemos amar, livres de comparações com o passado ou com relações alheias.
3. Cantaremos o amor sem medo, sem equações, sem relógio, sem calendário.
4. Nós queremos destruir todo o maldito imaginário do amor romântico legado pelo século XIX. Por que haveríamos de olhar para trás se queremos arrombar as misteriosas portas dos nossos corações?
5. Queremos a pena de morte dos cantores e compositores da música sertaneja, do brega, das baladas românticas, da MPB fofinha, morte aos que infectam as FMs nas madrugadas.
6. Nós cantaremos odes e encômios a toda forma de união, desde que consentida e acordada. Viva a monogamia! Viva a poligamia! Vivam as relações abertas! Vivam os trisais, quadrisais, etc!
7. Voltaremos nossas costas para os que pedem um tempo, para os indecisos, para os que dizem não estar prontos, para os que mentem, para os que recuam ante a uma declaração de amor. Pois o amor é para agora.
8. Quebraremos as ampulhetas que medem o tempo de um amor para o outro no intuito de dar satisfações a convenções antiquadas e pretensamente lógicas.
9. Decapitaremos coachs de relacionamento, autores de autoajuda, poetas medíocres, diretores e roteiristas de comédias-românticas.
10. Queremos açoitar os sentimentalistas – estes vermes que querem suspirar emoções sem arcar com o ônus de senti-las.
11. A arte até hoje exaltou os finais felizes, cultuando o sadomasoquismo dos enredos. Nós queremos a facilidade do durante, a travessia, a simplicidade na possibilidade dos enlaces, o fim dos plot-twits.
12. Veneraremos todo aquele que não tem medo de intensidades e não calcula, como o fazem com gestações, com quantos meses se pode dizer “eu te amo”.
13. Em verdade eu lhes declaro, senhores: a exposição diária aos folhetins, às novelas, aos best-sellers açucarados, à música piegas, aos filmes melodramáticos, é tão cancerígena para os corações como é o cigarro aos pulmões.
14. E venham, pois, os amantes livres, os que não têm receio, os que mesmo miseráveis dispõem-se a pagar o preço. Ei-los! Ei-los! Vamos! Passem com tratores por cima de todos esses engodos que domesticam os corações! Empunhem as picaretas, os martelos, os machados, destruam sem piedade a Verona de Romeu e Julieta.
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filipegoncalves · 4 years ago
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OPUS PASSIO IV
Nada é pequeno no amor. Quem espera as grandes ocasiões para provar a sua ternura não sabe amar.
(Laure Conan)
  DIÁRIO DE JOSÉ DE ANCHIETA
RERITIBA, A 12 DE FEVEREIRO DO ANO DO SENHOR DE 1597
Mesmo antes dos meus 44 anos vividos nestas terras de Brasil, já lera e ouvira os mais variados relatos de eventos mágicos que supostamente ocorrem por todo o Novo Mundo, desde as colônias de Inglaterra até as de Espanha, passando pelas de Portugal. Sempre julguei serem delírios de mentes perturbadas ou mesmo obras de demônios, que cá certamente correram soltos a enganar gentios e viajantes devassos, antes de chegarem os braços de nossa Santa Madre Igreja nestes sítios para contê-los e expulsá-los.
Mas o que experienciei hoje, nesta altura que parece ser a final de minha vida, perturbou-me no meu mais fundo, e as sensações involuntárias que tive perante àquilo envergonham-me ao escrutínio do Meu Senhor Meu Deus. Tenho comigo por aluno e criado um jovem Tupinambá, tem pelos seus 17 anos, manso, zeloso, alfabetizado em português, catequizado e batizado na fé cristã, outrora atendia por Ubiratã, agora chama-se Tiago; ajuda-me no que já não me é mais possível fazer sozinho, em razão de minha avançada idade e do agravamento de minha moléstia óssea.
Pois esse mesmo Tiago, mais cedo, depois da refeição que fizemos de almoço, pediu-me que lêssemos juntos alguma passagem das escrituras que eu considere bonita. Achei por bem de escolher a primeira epístola de São Paulo aos Coríntios, pela beleza de seu tema. E assim a lemos. Ficou visivelmente emocionado e mudo o rapaz após o estudo. Deixei-o meditativo lá no pátio e vim para meus aposentos tirar uma sesta. Mas não sei que me deu: dormi profundo até o princípio do pôr-do-sol. E acordei-me somente em razão de ouvir o barulho de alguém que se movia no já escuro cômodo. Hesitante, perguntei:
– Quem aí está?
E a resposta veio em forma de fogo: as velas acenderam-se como que por magia, alumiando o quarto e revelando toda a forma nua do corpo do jovem, com sua parte pudenda acesa, tal como descrevem ser as estatuas de antigos deuses babilônicos, e em seus olhos não se via mais as íris – era apenas o branco, que brilhando em seu rosto austero, dava a entender que estivesse num estado de transe.
– Tiago?! – gritei, horrorizado, constrangido.
– Meu nome é Rudá. – respondeu em língua Tupi, numa empostação digna de um antigo e sábio pajé.
A atmosfera do momento já era demasiado sortilégica para que eu desse vazão em demasia à razão ou fizesse questionamentos, pois, ao mesmo tempo, uma profunda paz começou a invadir-me o coração. Aprendi desde meus tempos de seminário que o Inimigo se traveste até mesmo de anjo de luz para ludibriar os homens, porém, aquele torpor afetivo e leve que me dominava não haveria de ser obra demoníaca. Não, o demônio deve saber toda sorte de mentiras para todo tipo de situação, mas ele não saberia fingir aquela elevação que pairava no ar, aquilo só Deus saberia manejar. O meu quarto pruria o Paraíso. E como lesse meus pensamentos, ele prosseguiu:
– É Amor que eu sou.
– Não entendo... – balbuciei chocado.
– Nhanderuvuçu, a tudo fez e a mim me fez. Nhanderuvuçu a mim me fez desde os começos para domar Luisõ, a cachorra doida que mata toda a vida, Luisõ, a morte. As gentes se enganam, as gentes pensam que o amor é tão somente os folguedos dos amantes, os coitos, as juras. E desde que inventaram e passaram a fazer uso dessa coisa palavra, muito se tem confundido, muito se tem fabulado, como naquele teu livro, como em outros que já há e em muitos que ainda hão de vir, muito se tem empeçado e tentado fazer de luxo a respeito de mim. Até teu deus, que vós adorais tanto como único e supremo, até ele quer avidamente ser amado sobre tudo e se atrapalha todo em sua ânsia. Eu, Rudá, apenas sou. Eu é. Perdem tempo os que querem seguir essas cartilhas, os que romanceiam, os que ouvem a ti e a teus superiores, perdem tempo todos os que dificultam, os que se assustam ao ouvir um “eu te amo”, também os que temem dizê-lo por acharem que ainda não é hora, os que acham que é preciso sentir pirotecnia nas entranhas para confirmar minha presença, perdem tempo esses que algarismam os dias, enquanto o Tempo suplica quase como o teu deus também o quer, para que se ame. Tenho sido banido dos corações, tenho sido muita vez mordido por Luisõ, simplesmente porque não se permitem, porque fazem ideia errada de mim com a certeza soberba de que muito me sabem. Eu não sou o que se pensa da coisa. Eu apenas sou a coisa. Eu é.
E depois de toda essa fala, saiu pela porta a correr – ou a voar, eu já não sei – e fiquei só. O halo sublime do ambiente se desfez. E há horas estou aqui a refletir sobre tudo isso, que sei, não foi um sonho. Não terei coragem de contar nada a ninguém, dir-me-ão demente ou duvidarão de minha fé, tampouco o confessarei a nenhum colega jesuíta. Escrevo nestas páginas para que assim elas fiquem como confissão direta a Meu Senhor Meu Deus, que a tudo certamente deve ter assistido...
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filipegoncalves · 4 years ago
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OPUS PASSIO III
After all of that, how is it possible We're strangers again?
 (Sevdaliza)
 RECADO PÓSTUMO DE PÁTROCLO RECEBIDO E TRANSMITIDO POR UM NECROMANTE DE ÍLION A AQUILES
 Foi desde quando passaste a frequentar minha casa, Aquiles, que gradativamente crescera meu amor por ti. Amei-te pela tua inteligência, pela tua perspicácia. Amei tua beleza, o desenho do teu corpo e os pelos dele, teu cheiro, o modo como sorrias e de como repetias sempre, depois de nos lavarmos, tu, filho da tua mãe, Tétis, que amavas banhar-te.
A vida, que para mim sempre parecera uma obrigação forçosa, parecia ter se reinventado de tal modo perfeita que simplesmente entreguei-me aos dias. Tudo poderia ter sido diferente se meu amor a ti bastasse, se eu fosse aos teus olhos e à tua vontade completo e tu não precisasses de aventuras!
Tentei ser tua tocha e tua âncora. Mas teu coração queria outras ardências e, teu corpo, navegar. Não houve tempo para tu saberes de fato o quanto eu poderia te oferecer. Tentei resignadamente acompanhar-te, pois já não sabia mais não te ter por perto. Mas fui ferido em razão de tua aliança a outros homens – Apolo, Euforbo, Heitor.  Fui ferido fatalmente em batalha ao conter meu próprio golpe que – percebi – acabaria por te atingir.
Coloquei eu mesmo sobre meus olhos os óbulos para Caronte e esperei, conformado, a morte. Mas tu vieste em meu socorro, enchendo-me de esperanças que voltaríamos em paz para minha casa. E a promessa que se fez em mim com a idéia disto pôs-me a pensar que viver era ainda possível.
Porém, logo percebi: teu coração ainda não estava satisfeito, querias o fogo e o mar. Estavas empolgado com teu novo amigo, Tróilo, com tudo que sua companhia eivava em forma de promessa. Eu estava fraco e não me havia assim mais forças para te acompanhar.  Então as chagas do meu o corpo trespassaram-no alastrando-se em minha alma, que fora retorcida em cingidas voltas.
Adentrei a este escuro mundo de agora, ao Hades, navegando pelo rio dos lamentos, que aqui eles chamam Cócito, sem entender que querias tu em tua tentativa de salvar-me, sem entender por que não me deixaste morrer com o peito quieto, sem nada mais ansiar. Tu sabias que era o certo a fazer. É sempre mais sofrido adentrar a estes reinos onde agora estou com esperanças que só fariam sentido nesse mundo onde tu ainda habitas e que já não mais me cabe.
Depois de tudo que se fez por ti em mim, não entendo – não entendo como não nos foi dado pelos deuses vivermos juntos; como não nos foi dado morrermos juntos. Não consigo entender o mundo desligado de meus sonhos nos quais nós nos manteríamos juntos. Mas agora – agora está tu aí, vivo. Eu aqui, morto. Como dois estranhos.
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filipegoncalves · 4 years ago
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OPUS PASSIO II
Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também - mas Diadorim é a minha neblina...
 (Guimarães Rosa)
 O que a memória ama, fica eterno. Te amo com a memória, imperecível...
 (Adélia Prado)
LAMENTO DE ADRIANO POR ANTINOO
Antinoo, desde que te foste, em nome da minha sanidade – para que assim eu possa manter-me na condução do Império e do meu povo –, tenho tentado esquecer-te ou, ao menos, fazer da tua lembrança algo pacífico.
Não tenho disposição alguma para disfarçar minha tristeza, que tem sido censurada por todos que me cercam no palácio. E Víbia parece agora ter verdugo prazer em atormentar-me ainda mais com suas exigências e com queixas por não possuirmos a esta altura um herdeiro.
Se ao menos não houvesse setas que apontam para ti em todas as coisas no mundo, ser-me-iam mais fáceis os dias. Foi-me terrivelmente sofrido retornar à Grécia sem ti – as faces das imagens de Ganimedes, Jacinto, de todos os efebos tinham, para mim, a tua face; os corpos das imagens de Adônis e Apolo tinham, para mim, o teu corpo. Também estive em países onde nunca antes havia ido, em terras da Judeia, lugares que sequer um dia citamos em conversas nossas, não obstante, tu te fazias presente neles, teu rosto se interpunha diante de tudo que se me parecia belo e aprazível. Levaram-me a um exuberante jardim que pensava ser impossível em terras tão áridas e emocionei-me profundamente com a beleza de uma flor de nome kalanit, que de algum modo contigo parecia, muito embora tu, em toda tua existência, não houvesse jamais conhecido uma. Tenho te visto em pássaros, em constelações, em crepúsculos, vejo-te no Tibre, em leões e em versos de Anacreonte.
Minha própria casa tornou-se tua. E aqui, agora, por vezes sinto-me como um estranho, um invasor. Por vezes durmo mantendo portas destravadas, com fabulesca esperança de que adentres o meu leito e te aninhes em meus braços, como outrora dormíamos. Meu próprio corpo tornou-se teu. E nas vãs tentativas que tive de estar com outros homens, houve na pele, nos músculos, uma incômoda repelência a despeito de todos os encaixes.
Todas as pessoas do mundo carregam em si o acidente de as perdermos. E eu preciso aprender a aceitar que te perdi. Mas receio – e, se assim for, será esta minha maior desgraça – que meu amor por ti seja como a sarça ardente que falou com o Moisés dos judeus, segundo eles mesmos contam, numa imagem maravilhosa e terrível: uma chama que arde sem consumir.
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filipegoncalves · 4 years ago
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OPUS PASSIO I
Deliberei amar. Corto em pedaços o músculo sangrento, alheio e triste a quem por isso culpo. Irmão, um dia aprenderemos a entender a entranha. E nunca mais seremos diferentes. (Renata Pallottini)
APONTAMENTO ESCRITO POR UM ALUNO ANÔNIMO ACHADO NUM PERGAMINHO NA ACADEMIA DE PLATÃO
Tempo e silêncio são solventes da vida. A espera pela cura de um amor que não encontrou eco no outro quase sempre compõe uma muda sinfonia – partituras escritas no arame farpado, notas dissonantes, réquiem para ilusões, crocitar de corvos, uivo de ventos, ranger do tear das moiras – que toca no peito daquele que dói.
A grande águia do Cáucaso, enjoada do sempiterno sabor do fígado de Prometeu, passa a visitar o infeliz amante para bicar-lhe o coração, que se regenera no dia seguinte, para novamente ser dilacerado. Não há perdão para quem não soube escolher a quem de fato deveria amar.
Prantos noturnos marinam agonias na salmoura de lágrimas. Não há limites para uma cabeça à solta na noite. Uma ronda doida da mente nas madrugadas. A Lua ri-se. A cidade é hostil com suas luzes falsas e ameaças nas esquinas.
Pois é mais que certo: toda rosácea bebida sorvida entre risos, todos os toques, o colidir dos corpos, os sonos perfumados, os passeios, o adocicado dos bolos, todos esses luxos de uma convivência, tudo se extingue na memória que envelhece, porém, é sempre preciso morrer um pouco para desvanecer o que se foi vivido por dentro, para apagar as tatuagens das entranhas.
– Que não se demore, eles pedem, que não se demore o não-querer que liberta.
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