Escritora, fatalista, dramática, complexa – prazer, eu!Quem me dera ser qualquer coisa a não ser Clarice.
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Mensagem.
Eu olho para a tela, para o vazio brilhante. Nenhuma notificação. Nenhuma mensagem. Nada que diga que você pensou em mim. Guardo o celular no bolso, mas ele queima lá dentro. Puxa meu olhar de volta, me faz verificar outra vez. Vai que algo mudou. Vai que algo chegou. Vai que a oportunidade passa e eu fico aqui de bobeira?
Desbloqueio a tela com a mesma frequência que respiro. Parece que mais por hábito, para ter algo para fazer, do que por esperança. O dedo percorre os mesmos caminhos, como quem revisita um lugar conhecido, mas abandonado. Abro aplicativos como quem abre uma gaveta já vazia. Meu olhar desliza, automático, pela mesma rota de sempre. Mas não há nada: nada novo, nada seu. Só a quietude insuportável de quem espera e nunca ouve o som do relógio. Nenhuma mensagem nova. Nenhuma notificação. É essa a confirmação de um silêncio que eu já esperava.
Não sei bem o que espero. Talvez seja o som. Talvez seja o peso de uma palavra vinda de você. Algo que quebre essa ausência imóvel. É um tipo de tortura leve, mas constante, essa minha mania de sonhar. Um desespero que não grita, só sussurra. Só me faz pensar em todas as vezes que você disse que ia aparecer. Você disse que gostou. Disse que não era como os outros. E eu acreditei.
O silêncio agora é um eco. Ele preenche os minutos entre cada vez que checo o celular. Dez minutos, quinze. Parece uma eternidade. É como se o tempo brincasse comigo, se esticasse só para me lembrar de como estou aqui, presa. Presa no talvez.
O talvez é um lugar terrível. Um limbo onde você não sabe se ainda é lembrada ou já foi esquecida. Onde você acha que talvez seja só um atraso, uma distração. Onde você inventa desculpas para a ausência, como quem tenta tapar buracos em um barco que já está afundando. O talvez, esse lugar onde nada acontece, mas tudo parece possível. O talvez me prende mais do que o silêncio. Me obriga a olhar para o telefone outra vez, e outra, como se cada desbloqueio pudesse alterar o curso de algo que já está parado.
Você vai ligar, eu penso. Porque é o que você disse. Porque é o que eu quero acreditar. Talvez eu repita porque é a única coisa que tenho agora. Não a sua voz, mas a memória dela. Não a sua presença, mas a promessa dela. Mas o que eu quero e o que acontece parecem morar em dimensões diferentes.
Então eu olho de novo. Seguro o telefone como se ele fosse parte de mim. Como se ele soubesse algo que eu não sei. Não sabe. Não tem nada ali. Fecho os olhos e tento não imaginar sua voz. Não adianta. Ela está lá, na memória, como uma melodia que não sai da cabeça.
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Por que?
Você me ama como se isso fosse simples. Como se fosse fácil gostar de alguém feito eu. Como se o fato de eu me enroscar inteira no seu corpo, enquanto minha cabeça planeja a rota de saída, fosse normal. Como se a forma como eu te beijo e ao mesmo tempo calculo a distância até a porta fosse só algo que passa com o tempo, pouca coisa, só exagero da minha cabeça.
Mas não é.
É medo puro. Instinto. Um vício sujo de autopreservação que eu nem consigo mais controlar. Você me ama com uma paciência que me dá raiva. Me olha como quem tem certeza de que vai ficar. Como se não fosse embora. Como se eu não fosse dar motivos suficientes pra você cansar.
E eu... eu só consigo pensar em como vai ser quando eu for demais.
Mesmo com todas as suas promessas ditas de olhos firmes e mãos quentes, eu continuo catalogando todas as possíveis rotas de fuga. Planejando todas as maneiras de sobreviver ao seu adeus que nunca veio, mas que eu tenho certeza que um dia vai chegar. Eu me armo de desculpas, de raivas inventadas, de distâncias frias. Eu levanto barreiras enquanto você constrói pontes. Eu me encho de desculpas que nem acredito, de motivos que eu mesma invento, de justificativas para um fim que nem aconteceu.
E pior: eu faço tudo isso te amando. Eu te amo enquanto fantasio o dia que você vai acordar e perceber que eu sou demais pra qualquer um suportar. Eu te amo enquanto crio diálogos na minha cabeça onde você diz que não dá mais. Eu te amo enquanto me preparo pra sair antes de você mandar. Como quem espera o chão abrir. Como quem já viu esse filme antes. Como quem, por algum motivo patético, acha mais fácil sofrer por antecedência do que encarar a dor real, se ela vier. Eu imagino a cena do adeus, imagino você indo embora como se fosse inevitável, como se fosse destino.
E mesmo amando você como eu amo… eu fico criando motivos pra te superar. Eu fico decorando maneiras de seguir em frente, mesmo quando a última coisa que eu quero é dar um passo longe de você. Eu ensaio frieza, indiferença, como se um dia eu fosse ter que te olhar e fingir que você nunca me foi tudo.
Você percebe. Você pergunta. Quer saber por que eu sou assim. Quer entender qual é a lógica de amar de tão longe alguém que está tão perto. Por que eu destruo todas as minhas oportunidades de ter o que eu sempre quis; paz.
Eu queria ter uma resposta melhor, mas a verdade é que não tem. Não tem sentido. Não tem motivo. Não tem defesa racional pra isso.
Eu só sei que sempre foi assim. Desde sempre. Desde antes de você. Desde antes de tudo. Desde as primeiras vezes em que confiar virou sinônimo de me arrebentar. Eu só sei criar distâncias. Eu só sei esperar pela queda. Eu só sei sufocar o que eu sinto até que nem eu mesma consiga mais reconhecer.
Porque desde que me entendo por gente, o amor sempre foi um campo minado. Desde sempre, confiar foi abrir o peito pra um tiro à queima-roupa. Eu me acostumei a viver no modo sobrevivência. Me acostumei a achar que todo mundo vai embora. Que ninguém fica tempo o suficiente. Que promessas são só palavras bonitas que desmoronam com o primeiro vento mais forte.
Eu tenho medo de você ir embora.
E eu tenho mais medo ainda de você ficar.
Tem lógica nisso? Claro que não.
Tem motivo? Muito menos.
Mas é o que eu sou. Essa mistura de querer e fugir. De precisar e repelir. De desejar o abraço e ao mesmo tempo preparar os ombros pra ausência dele.
E o que eu mais quero — Deus sabe o quanto eu quero — é parar de lutar contra você. Contra o que a gente tem. Contra esse futuro que você me oferece com tanta certeza.
Eu só queria conseguir dormir tranquila no seu peito, sem sentir esse aperto no meu. Confiar. Me permitir. Encontrar descanso, finalmente, no seu colo, onde eu sei que nada pode me machucar.
Mas eu não sei se consigo. Não hoje. Talvez amanhã. Talvez em outro ciclo, outra vida. Talvez quando a voz dentro da minha cabeça parar de gritar que eu preciso correr antes que tudo acabe.
Eu não sei.
Mas eu juro que estou tentando.
Eu quero você.
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Ícaro e o Sol
Se você fosse o Sol,
eu seria Ícaro.
E não por coragem —
mas por devoção.
Porque todo mundo me disse pra não ir.
Pra manter distância.
Pra me proteger.
Pra lembrar que calor demais queima.
Mas eu…
Eu nunca aprendi a amar pela metade.
Eu teria voado por milênios,
com asas remendadas de promessas e esperança,
só pra te ver de perto.
Só pra saber se a tua luz era real,
ou se era só reflexo no espelho d’água da minha carência.
E era real.
E era tanta.
E era demais.
Mas mesmo com os olhos ardendo,
mesmo com a pele rachando,
eu não parei.
Eu fui.
Eu fui porque o mundo todo era escuro sem você.
E o pouco de brilho que eu via era você me olhando como quem também sente,
como quem também queima.
Eles disseram que eu devia cuidar das minhas asas.
Mas você cuidava delas comigo.
E, ainda assim, voar até você pedia um preço alto demais.
Ninguém me avisou que até o amor mais bonito pode doer.
Que mesmo quando é recíproco,
a intensidade pode transbordar e afogar.
Que a gente pode arder junto —
não por maldade,
mas por ser demais.
No fim, eu caí.
E o som da queda foi seco.
Sem glória, sem poesia.
Foi o silêncio depois do grito.
Foi a ausência depois da chama.
E enquanto eu despencava,
com as asas derretidas,
com o peito aberto em brasa,
com os olhos marejados de tudo que poderia ter sido —
eu ainda pensava em você.
Meu corpo afundando na ausência,
e minha alma, teimosa, apontando pro céu,
ansiando, desejando, implorando:
Mais uma vez.
Só mais uma vez.
Só mais um segundo perto de você.
Porque tem gente que nasce pra amar,
e tem gente que nasce pra arder.
E eu —
Eu nasci pra te alcançar,
mesmo que isso custasse o pouco que me restava.
Ícaro não errou ao voar.
Ele só amou demais.
E o Sol…
O Sol também amava.
Mas não sabia como não queimar.
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Confiar.
Eu não sei confiar.
E digo isso com a voz embargada de quem já tentou. Já tentou tanto que hoje não tenta mais.
Confiança é coisa de quem teve chão firme na infância. É coisa de quem cresceu sendo amparado quando caía — e não sendo culpado pela queda. Eu não. Eu caí e aprendi a levantar sozinha com o joelho rasgado, a boca calada e o coração em pranto. Aprendi que depender é se oferecer ao sacrifício.
A confiança, pra mim, sempre foi uma espécie de suicídio emocional. Uma entrega cega a um mundo que nunca me devolveu nada inteiro. E então, eu fui aprendendo a me proteger. Com gestos frios, com silêncios estratégicos, com afastamentos que me machucavam menos do que as presenças que partem.
Eu amo, sim. Mas de longe.
Com um pé atrás, com o corpo meio virado para a porta. Sempre pronta para sair antes de ser deixada. Sempre alerta, sempre tensa.
Porque confiar, pra mim, é andar por uma casa escura e acreditar que não há buracos no chão.
Mas eu já caí tantas vezes… e sempre sem aviso.
Eu sei sorrir com o rosto, mas meus olhos não confiam.
Eu sei ouvir com atenção, mas meu peito não se abre.
Porque dentro de mim existe uma sentinela — exausta, sim, mas vigilante — que nunca dorme.
E as pessoas se ofendem com isso. Acham que é desdém, frieza, desinteresse.
Mas não é.
É medo. É dor velha. É ferida que não cicatriza porque não teve tempo.
Eu queria confiar. De verdade. Me permitir amar com o corpo inteiro, sem reservas.
Mas algo em mim sempre sussurra, baixo e cruel: não seja burra de novo.
E eu escuto. Porque já fui burra antes. Já me entreguei achando que mãos alheias saberiam me segurar. Mas não sou leve. Não sou simples. Não sou fácil.
E quem não sabe segurar, derruba.
Eu tenho medo de cair de novo.
Mas mais do que isso: tenho medo de confiar de novo. Porque confiar é cair de olhos fechados. E eu já conheço demais o chão.
Talvez um dia eu aprenda.
Mas hoje…
Hoje eu continuo aqui, com o coração trancado e a chave perdida em algum trauma antigo.
E a cada pessoa que passa por mim, eu penso: será?
Mas logo depois, mais forte que tudo, me vem: não.
E assim sigo.
Querendo acreditar.
Sem conseguir.
Querendo confiar.
Mas sabendo que é demais para mim.
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É você.
Se um dia você se perder, eu prometo: eu vou te encontrar.
Sem pressa, sem medo, sem barulho.
Eu sigo seu rastro nos lugares mais pequenos, nos ventos que ninguém mais sente.
Eu reconheço você até no silêncio.
Eu sei quem você é mesmo quando nem você tem certeza.
Se você se machucar, eu vou cuidar de você.
Eu vou ficar ali, juntando cada pedacinho seu com a mesma paciência com que se arruma algo precioso demais pra ser jogado fora.
Eu vou aprender a cuidar de você da maneira que você precisa, mesmo das dores que você não fala para ninguém.
Eu vou dar um jeito de fazer dar certo.
Se um dia o mundo te escurecer a visão, eu vou descrever a vista.
Vou pintar a sua volta com palavras até que você consiga enxergar de novo — ou pelo menos imaginar.
Vou passar horas procurando as melhores palavras para você consiga ver o que eu vejo.
Se você não sentir mais nada,
eu encosto minha mão na sua,
devagar, como quem acende uma lareira em noite fria,
e espero junto.
Até que alguma coisa volte a pulsar, mesmo que seja só um fio de calor.
Mesmo que seja por só mais um segundo disso.
Se você chorar, eu te afago.
Se você cair, eu me ajoelho.
Se você afundar, eu mergulho.
Se você se apagar, eu acendo vela, incêndio, o que for pra não te perder no escuro.
Se você sangrar, eu derrubo meu sangue ao lado do seu e deixo a vida drenar de mim.
E se você se esquecer, eu construo um museu de nós para você lembrar.
Mas se um dia você cair tão fundo que nem eu consiga te ver,
Se seus olhos se fecharem com tanta dor que nem a minha luz consiga atravessar,
Se o mundo cobrir você de cicatrizes e a sua cabeça encher de fumaça preta,
Se eu tropeçar nas palavras e não souber mais como te alcançar —
Não se assuste.
Eu vou encontrar outro jeito.
Eu fico na beira, chamando seu nome baixinho, como quem acredita que mesmo no escuro mais pesado existe uma fresta de luz.
Eu espero.
Eu nunca desisto.
Porque é você.
É você.
Por um tempo, tenho tido a certeza de que é você.
É você nas músicas que eu gosto sem entender.
É você nas palavras que eu guardo e nas que eu não sei dizer.
É você nos domingos lentos e nas sextas-feiras impacientes.
É você em cada pequena esperança que se abre dentro de mim sem fazer alarde.
Eu nunca precisei pensar muito.
Nunca precisei escolher.
Meu coração sempre soube, mesmo quando minha cabeça duvidava de tudo.
É você.
Ninguém além de você.
Sempre foi você.
Sempre vai ser você no vazio que nenhuma outra voz consegue preencher.
Sempre você na ausência que nenhuma presença consegue esconder.
Mesmo nos dias em que o mundo parece grande demais.
Mesmo nas noites em que o medo sussurra que é tarde.
Mesmo quando a vida me puxa pra longe —
Eu volto.
Eu sempre volto.
Mesmo se um dia parecer que não,
Mesmo eu tiver que atravessar desertos, mares, continentes e corpos celestes,
eu volto.
Porque é você.
Acho que desde sempre foi você.
Eu sei que é você.
Sou eu para você?
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O seu lado da cama.
Ainda é o seu lado da cama.
Mesmo depois de todo esse tempo. Mesmo com os lençóis lavados, o travesseiro trocado, a luz apagada. Mesmo com o silêncio que você deixou — um silêncio que não termina nunca, que respira comigo, que dorme comigo. Ainda é o seu lado da cama.
E eu odeio isso.
Odeio que você tenha deixado essa marca invisível nas coisas. Como se tivesse derramado um pouco de você em cada canto antes de partir. E o pior é que foi sem alarde. Sem grito. Sem cerimônia. Você saiu como quem fecha a porta devagar pra não acordar ninguém — mas eu nunca mais dormi depois disso.
Eu ainda sinto um arrepio na nuca quando ouço seu nome. Ainda que seja dito por outra boca, em outro tom, referindo-se a outro alguém. Ainda assim, meu corpo responde. Ele se lembra. Ele sempre lembra. Simplesmente não tem como apagar alguém como você da minha memória.
Evito os filmes que dissemos que veríamos juntos. Eu sei que é ridículo. Mas é como se apertassem play nas promessas que você me fez. E elas continuam passando, cena por cena, mesmo sem você. Mesmo que eu desligue a TV, elas continuam — dentro da minha cabeça, da minha pele, dos meus olhos, dos meus sonhos.
E tem as matérias da faculdade. Aquelas que você gostava. As que você explicava com um brilho que eu não entendo, mas achava bonito só porque vinha de você. Hoje, cada uma delas parece uma língua estrangeira falada por um fantasma. Eu leio, e o que escuto é sua voz. Eu tento fugir para diagramas de anatomia, mas tudo que eu consigo ver é você.
Eu atravesso a cidade tentando não desviar o olhar para o seu prédio. Mas é inútil. Meus olhos vão até lá como quem procura por um milagre, como quem ainda espera te ver descendo, rindo, voltando. Eu ainda consigo ver você apressando o passo para me receber, para segurar minha mão, para me dar oi. Eu fecho os olhos e me permito saborear novamente esses momentos com você. Como se o tempo pudesse andar para trás só por um instante. Não anda.
E à noite, quando tudo fica mais quieto — ou talvez quando a dor ganha mais espaço para fazer barulho —, eu me deito. Do meu lado. E olho para o seu.
E ele está ali.
Vazio, intacto, e ainda seu.
Eu tento me convencer de que é só um pedaço da cama. Só um pedaço de colchão. Mas meu corpo não acredita. Ele se encolhe um pouco mais, talvez na tentativa de ocupar menos espaço. Ou de evitar o seu. É que eu ainda tenho medo de te apagar por completo. Como se esquecer fosse te matar outra vez.
Eu me odeio mais ainda por ainda chorar. Mas eu choro. Baixinho, como quem tenta não incomodar o escuro. Como quem tem vergonha de sofrer por alguém que já seguiu em frente.
Você não está mais aqui. Mas tudo ainda está cheio de você.
As músicas. As palavras. As entrelinhas. O seu cheiro. O frio que entra pela janela. O jeito como o dia amanhece quando eu não queria que amanhecesse.
Você se foi. Mas eu continuo vivendo dentro do eco que sua ausência deixou.
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Flores nunca sobreviveriam no meu inverno sem fim.
Eu não sei quando comecei a pisar nas flores. Não foi de uma vez, disso eu lembro. Foi sutil. Um passo em falso, talvez, ou um descuido pequeno que não parecia tão grave na hora. Eu queria dizer que foi sem querer. Que eu não percebi. Que tropecei no escuro, que o frio me cegou, que a culpa é do gelo, do solo infértil, do mundo. Mas não foi. E mesmo que, por algum plano cruel do universo, tivesse sido, ainda seria eu.
Eu pisei. Eu destrui. Eu as sufoquei — eu as matei.
Com ódio, talvez. Ou desespero. Ou só por cansaço. Cansaço de esperar o desabrochar de algo que eu não sabia cuidar. Cansaço de ver beleza em meio a tanto escombro. Eu pisei como quem quer esquecer que alguma vez acreditou que poderia florescer algo nesse redemoinho de branco e cinza.
E agora eu olho em volta…
Tudo destruído. As pétalas manchadas de terra, as cores já sem vida, os galhos partidos como ossos frágeis. E o pior não é o que eu fiz com elas. O pior é o que eu fiz comigo mesma no processo. Eu me olho no espelho e não vejo mais ninguém. Só essa casca que sobrevive, que respira por obrigação. Essa coisa que não se parece mais com quem um dia chorou ao ver uma flor brotar no frio. Com quem cuidou delas, as regou, teve paciência para vê-las desabrochar e prometeu que estaria lá para vê-las na primavera.
Eu não sei quando eu deixei de ser jardim e me tornei deserto. Eu não sei quando eu deixei de ser amável e me tornei veneno.
O pior é que eu amava aquelas flores. E talvez ainda ame. Talvez eu ainda ame tanto que me deixe atordoada e confusa o porquê de eu ter causado tudo isso. Elas significaram tanto em um tempo que parecia impossível florescer. Trouxeram cor para um mundo que eu já tinha aceitado como cinza. Então por que fiz isso? Por que machucar algo que só queria existir, mesmo em solo congelado? Por que eu sujei meus pés com o sangue de quem não tinha medo do inverno?
Eu me pergunto se foi autopreservação. Ou sabotagem. Se eu não consegui lidar com o fato de algo bonito ter escolhido crescer justo em mim. Se achei que não merecia. Que era temporário demais. Que cedo ou tarde a beleza me deixaria – então eu a deixei primeiro.
Agora as flores morrem sob meus pés e eu me pergunto se merecem um fim digno. Se ainda há alguma esperança ali, no fundo da raiz. Se regar seria um ato de coragem ou de covardia. Eu tenho medo de tocar nelas de novo, medo de tentar cuidar e machucar mais, de esperar algo que nunca virá. Eu não sei se tenho mãos pra isso. Eu não sei se ainda tenho coração. Eu não tenho nem certeza se eu ainda continuo sendo a mesma pessoa que as cativou.
Porque uma parte de mim ainda se lembra. Ainda sente o cheiro da primeira flor. Ainda lembra da paz silenciosa que ela trouxe num mundo que só me gritava dor. Uma parte de mim ainda quer deitar no chão e pedir desculpas. Chorar por cada folha arrancada. Gritar com essa versão de mim que destrói o que ama porque não sabe amar sem medo.
Mas outra parte — talvez maior, talvez só mais alta — só quer arrancar tudo pela raiz. Fazer silêncio de uma vez por todas. Fingir que nunca houve flor nenhuma. Fingir que essa terra nunca foi fértil. Fingir que fui sempre pedra. Que fui sempre ausência. Talvez isso machuque muito as flores, mas pelo menos eu não as desrespeitaria com a indecência da minha indecisão. Elas não merecem isso.
Estou presa nessa indecisão cruel: regar ou arrancar. Salvar ou enterrar. Recomeçar ou terminar de destruir. Mas eu não tenho respostas e muito menos ideias. Eu não confio mais nas minhas próprias mãos. Nem nas minhas intenções.
Só sei que estou exausta. Que não me reconheço. Que estou sangrando por dentro como se as flores fossem parte de mim, e ao matá-las eu tivesse arrancado meus próprios órgãos, meus próprios sonhos. Elas se foram, e com elas, foram-se todas as minhas esperanças de que algum dia esse inverno iria passar.
É fácil amar as flores quando elas nascem no meio de um inverno que parece sem fim. Difícil é continuar amando quando a única coisa que você sabe fazer é esmagá-las — e quando você nem sabe o porquê de fazer isso.
Eu não sei se um dia volto a florescer. Eu só sei que, hoje, eu me afogo no que destruí. E isso… isso é quase pior do que nunca ter tido flores.
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O mundo ama quem me matou.
Não com palavras. Não diretamente. O mundo não precisa dizer nada; ele ama com olhos vidrados diante de uma tela, com mãos que se erguem para aplaudir, com vozes sussurrando "gênio" em corredores brancos e frios. Eu vejo seu nome escrito em letras douradas, pendurado na parede branca de um museu. As pessoas ao redor sussurravam sobre seu talento, sobre como ninguém mais seria capaz de criar algo assim. Fiquei parada ali, tentando entender. Tentando ver o que elas viam. Tentando não ver o resto.
Mas eu lembro das mãos. Lembro delas com clareza demais. Mãos que agora chamam de divinas. Mãos que criaram coisas que todos amam, mas que também destruíram o que ninguém quer lembrar. Mãos que mataram algo antes mesmo que pudesse nascer. Aquelas mãos que invadiram meu corpo como se ele fosse barro, moldando minha dor com a mesma precisão com que esculpiu beleza.
Já ouviu falar da frase “Solve et Coagula”? Não há criação sem antes haver destruição. E foi exatamente assim que ele fez a arte que o mundo celebra: primeiro ele destruiu. Primeiro ele me destruiu.
E agora está tudo lá, pendurado nas paredes de um museu, protegido por vidro, reverenciado por estranhos. Ninguém sabe o que veio antes. Ou sabe, mas finge não saber. Porque é isso que fazem: falam da genialidade dele como se fosse divina, como se tivesse vindo do céu. Mas eu sei a verdade. Ela veio do inferno. Do meu próprio inferno.
Dizem que a arte não é o artista. Que uma obra é uma entidade independente, algo separado de quem a criou. Como se fosse possível arrancar o coração de alguém e dizer que ele nunca fez parte do corpo. Como se as mãos que criaram não fossem as mesmas que destruíram.
Eu sei que elas foram.
Eu sei porque estive ali. Porque senti o peso de mãos que não pedem permissão. Mãos que pegam, mãos que desfiguram. Mãos que moldam a carne como moldam a argila, com a mesma precisão, a mesma frieza. Quando fecho os olhos, ainda sinto o toque delas. É como se tivessem esculpido um vazio em mim.
E agora essas mesmas mãos estão imortalizadas em molduras. Elas apertaram o gatilho e depois pintaram o quadro. E todos se ajoelham diante da obra como se fosse um milagre, ignorando o sangue ainda fresco na tela.
Eu ouço os argumentos. "A arte é maior do que o homem." "A genialidade transcende os erros." "Você não pode apagar o talento só porque não gosta de quem o criou."
Eu queria poder dizer que eles estão errados. Queria poder gritar, rasgar a tela, incendiar o museu inteiro. Mas fico parada ali, porque talvez eles estejam certos. Talvez a arte seja maior. Talvez seja realmente mais importante preservar a obra do que lembrar do que foi feito para criá-la. Talvez tenha como separar o meu sangue que está escancarado nas telas e o que ainda corre em minhas veias. Se me foi tirado, não é mais meu, certo? E ainda mais se for usado para um bem maior…
Mas se a arte é tão maior, então por que ela ainda é tão pequena para mim? Por que não consigo olhar para essa pintura sem sentir meu próprio corpo ser esmagado por algo invisível, algo que nunca consigo tirar de cima de mim? Por que o peso do nome dele ainda está sobre os meus ombros?
Eles dizem que a arte é o que fica. Que é isso que importa. Mas eu acho que o que fica, para mim, é outra coisa. Fica o grito que ninguém ouviu. Fica a dor que ninguém mais sentiu. Fica o choro abafado todas as noites, depois de pesadelos vívidos e incontáveis. Fica o gosto amargo de saber que o mundo ama mais a obra do que quem sofreu por trás dela.
Talvez eu seja pequena demais para entender. Talvez a genialidade precise de sangue para existir. Talvez seja eu que estou errada, carregando nas costas algo que todos aprenderam a ignorar.
Ou talvez… talvez seja o mundo que esteja errado. E, um dia, quem sabe, ele vá afundar sob o peso de todos esses nomes que insiste em erguer.
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O que eu nunca vou poder te contar.
Eu olho para você e vejo tudo o que eu sempre quis. Exatamente isso. Nenhuma peça fora do lugar, nenhum erro, nenhuma falha que eu possa apontar e dizer “veja, está quebrado, não posso ficar.” É como se tivesse sido feito sob medida para encaixar em algum espaço dentro de mim que sempre esteve vazio. Como se fosse a resposta para uma pergunta que eu passei a vida inteira sem saber formular. É. Você é incrível. Perfeito dentro da moldura que eu mesma criei. E talvez por isso eu esteja apavorada.
Porque o que acontece quando a gente finalmente tem o que quer? O que acontece quando o sonho para de ser um sonho e se torna real, palpável, algo que respira e me olha de volta? O que acontece quando não posso mais culpar a falta, a ausência, o desencontro? Agora não há mais desculpas. Não há distância, nem desencontro, nem erro fácil de apontar. Não há nada que me salve de você, e pior: nada que me salve de mim mesma. Porque você existe. Existe, e é meu.
Eu sinto medo como quem sente frio. Um arrepio lento subindo pela espinha. Você me toca e eu penso: não estou pronta para isso. Você me olha como se eu fosse uma resposta, e tudo o que eu consigo pensar é que sou só mais uma pergunta.
Eu não sei ser amada sem procurar uma saída. Sem um plano de fuga, sem uma desculpa na ponta da língua. Você não me dá desculpas. Você me dá tudo. E esse tudo me pesa nos ombros. Você continua aqui, me olhando com esse rosto que não me dá saída. Você não tem arestas cortantes, não tem falhas óbvias. E isso me desespera. Porque eu preciso de uma falha para me agarrar, preciso de um defeito para me convencer a soltar sua mão. Mas não há nada. É claro que não há nada: você é você, e você é tudo que eu sempre quis.
Talvez seja isso: eu não sei carregar coisas boas. Eu não sei segurar algo sem apertar demais, sem estragar, sem transformar em outra coisa. Eu sou desajeitada com a felicidade. E você é tudo o que eu sempre quis. Eu acho que eu desejei tanto que agora não sei mais o que fazer com o desejo realizado. Você me assusta porque é real. E tudo o que é real pode ser perdido.
É você, você é tudo que eu sempre quis. Eu acho que vou me arrepender disso.
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Sangue do seu sangue.
O sangue que corre em mim é o mesmo que correu neles. Sujo, quente, apodrecido. Um veneno que me foi passado antes mesmo que eu pudesse abrir a boca para recusá-lo. Dizem que laços de sangue são inquebráveis, que família é destino, que não há fuga possível para quem nasceu marcado. Mas eu não quero carregar isso comigo. Não quero as palavras cuspidas com raiva, as mãos pesadas demais, os silêncios encharcados de medo. Não quero ser continuação de nada que veio antes de mim.
Então, eu corto.
A pele se abre, quente, pulsante, viva. A primeira gota escorre lenta, preguiçosa, relutante. Como se o sangue soubesse o que está por vir e tentasse se agarrar a mim. Mas eu não deixo. Eu aperto, rasgo mais fundo, vejo o vermelho se espalhar, espesso e insistente. Ele escorre em linhas tortas, em rios que queimam, em caminhos que não voltam.
Eu sangro pela boca que mordeu em vez de falar. Pelo punho que subiu ao invés de recuar. Pelo medo impregnado na carne, pelo nó sufocante na garganta, pelos ossos que nunca puderam se endireitar. Eu sangro por cada palavra que engoli, por cada noite em que fechei os olhos e rezei para não acordar igual a eles. Eu sangro porque não quero que nada disso fique em mim.
Mas o sangue demora a sair. Ele resiste. Ele quer se agarrar ao meu corpo, quer se esconder entre minhas veias, quer me lembrar de onde vim. Eu aperto mais forte, respiro fundo, finco as unhas na carne e abro outra ferida, e outra, e outra. Eu sei que preciso ir até o fim. Sei que, se deixar qualquer gota para trás, ela encontrará um jeito de me envenenar por dentro.
O chão já está coberto, minha pele já está pálida, e ainda assim parece que não é o suficiente. Ainda assim, há algo em mim que pulsa, que sussurra, que insiste. Como se o sangue soubesse que, mesmo depois de todo esse derramamento, algo dele ainda ficará impregnado em mim.
Talvez eu nunca consiga me livrar por completo. Talvez sempre reste um resquício, uma sombra, um gosto metálico no fundo da boca. Mas eu insisto. Eu corto até o corpo enfraquecer, até os olhos pesarem, até que tudo se torne silêncio.
E se eu precisar sangrar até que não reste mais nada, então que assim seja. Melhor o vazio do que a herança suja que tentaram me forçar a carregar. Melhor a morte do que a condenação de ser igual a eles.
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"Minha filha nunca foi de me dar trabalho".
Minha mãe costumava dizer isso para todo mundo que ela conhecesse. No mercado, no salão, para as amigas, para a família, para os vizinhos. Dizia com um orgulho sincero, com a tranquilidade de quem acredita nisso, como se tivesse feito algo certo, como se eu fosse prova de que ela soube criar bem. E eu sorria.
Porque era isso que se esperava de mim.
Porque era verdade.
Notas altas. Não bebo. Não fumo. Não saio de casa. Não transo com qualquer um. Não tenho problemas. Não tenho vontades que compliquem, não tenho fraquezas que precisem de atenção. Sou fácil de lidar. Sou previsível. Minha presença é como um móvel antigo no canto da sala — está ali, é útil quando necessário, mas não exige nada. Minha existência é um histórico impecável de viver sem causar preocupações para outras pessoas.
Eu sempre soube carregar o que era esperado de mim. Sempre soube como absorver os pesos antes que eles se tornassem fardos para alguém. Via minha família lutando contra coisas que eu não conseguia consertar e sabia que não podia ser mais um problema. Sabia que eles já tinham o suficiente para lidar.
Então, eu me fiz pequena. Invisível. Impecável.
Me tornei uma presença fácil. Um sorriso pronto. Um elogio na ponta da língua. Uma resposta certa na hora exata. Me tornei alguém que ninguém precisava se preocupar em decifrar. Me tornei alguém que ninguém precisava salvar.
Sem idealizações suicidas. Sem problemas de imagem. Autoestima alta. É. Se eu continuar fingindo, quem sabe uma hora eu realmente seja assim. Quem sabe, se eu repetir isso vezes o suficiente, eu me torne alguém que não precisa de ajuda.
A perfeição sempre foi meu disfarce mais seguro desde que eu me conheço por gente. Se eu for perfeita, ninguém pergunta se algo está errado. Se eu não vacilar, ninguém olha para muito perto. Se eu estiver com todas as áreas da minha vida em ordem, ninguém vai me perguntar se está tudo bem esperando ouvir qualquer coisa além de um simples “Tá tudo ótimo, não se preocupe!”. Se eu não dou trabalho, eu não sou um peso. E eu nunca quis ser um peso. Eu nunca pude ser um peso. Nunca foi questão de escolha para mim.
Mas a verdade é que a perfeição cansa. A verdade é que eu sou um castelo de cartas, e eu sei disso. Eu conheço quem eu sou quando ninguém está olhando. Eu sei que eu sou uma pessoa frágil que tenta abraçar o mundo — não porque quer, mas porque não tem escolha. Sei que a qualquer momento poderia desabar, mas não posso. Não vou. Não posso falhar. Não posso dar trabalho. Não posso ser o motivo pelo qual alguém respira fundo antes de entrar em casa.
Então, eu sorrio. Eu sigo. Eu funciono. Eu me moldo para caber na expectativa.
E se, um dia, eu me quebrar, que seja em silêncio. Que seja de um jeito que ninguém perceba. Que seja sem fazer barulho. Que seja rápido e indolor.
Eu não quero dar trabalho para minha mãe.
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Não porque eu te amo, mas porque eu me odeio.
Eu irei ficar acordada até o final da madrugada por você, apenas caso você precise de mim. Eu vou sair correndo de casa de madrugada para te ajudar caso você esteja mal. Eu vou esperar dias, semanas, meses, apenas aguentando até que você fique bem.
Não porque eu te amo, mas porque eu me odeio.
Não porque meu coração transborda de afeto, mas porque minha existência sempre foi mais suportável quando direcionada para outra pessoa. Não porque eu sou boa, mas porque eu não sei o que mais ser. Porque cuidar de você me dá um propósito, e eu não sei quem sou sem um. Porque minha identidade sempre foi moldada ao redor das necessidades dos outros, como se eu fosse uma peça de reposição, um fundo de emergência, algo que só se torna útil quando há uma crise. Eu me entrego inteira porque não sei me enxergar separada disso. Porque, no fundo, não é sobre você. Nunca foi. Nunca vai ser.
Eu me sinto menos real quando não sou necessária. Como se minha existência só ganhasse peso no momento em que posso ser a solução de alguém. Como se eu mesma não fosse motivo o suficiente para ficar. Porque, se eu não estou cuidando, consertando, suportando, então quem sou eu?
E talvez seja por isso que eu me ofereço tão fácil. Que me entrego sem limites. Porque, se eu me doar por completo, talvez alguém me reconheça no meio da bagunça. Talvez, assim, eu encontre alguma forma de permanecer. Algum motivo para minha existência, alguma razão em ser o que eu sou, alguma lógica para esse meu ciclo vicioso. Mas a verdade é que não há permanência nisso. Não há identidade em ser só o que os outros precisam. No final, eu sou um molde que se desfaz e se refaz de acordo com quem passa por mim.
Eu me mutilo de forma silenciosa, não com lâminas, mas com gestos. Com a renúncia de mim mesma. Com a escolha diária de ser um escudo para os outros, mesmo que isso signifique me despedaçar no processo. É um padrão, eu sei. Um hábito muito ruim que eu não sei viver sem.
Porque eu sempre fui assim: o tipo de pessoa que se joga na frente do trem sem pensar duas vezes. O tipo que apaga incêndios com as próprias mãos, sem perceber que está pegando fogo junto. E eu sei que tem amor nisso, mas há, acima de tudo, autodestruição. Porque o amor não deveria ser destrutivo assim. O amor não deveria ser assim.
Talvez eu me jogue na frente do trem não porque quero te salvar, mas porque não me importo em me perder. Porque não sei existir sem ser útil. Porque, se eu não estiver sangrando por alguém, não sei se estou viva. Se eu não estiver vivendo por alguém, não tenho motivos para estar aqui. Eu preciso cuidar, eu preciso ser responsável, e, acima de tudo, eu preciso ser o sacrifício para o bem maior.
E você nunca vai perceber. Deus, eu espero que você nunca perceba isso que eu estou fazendo, porque eu sei que isso te deixaria em pedaços. Isso não é um pedido de socorro ou por mudança, eu não espero nada em troca. Nunca esperei. Nunca vou esperar. Eu não aceito que você se responsabilize pelo meu comportamento auto destrutivo.
Só sei existir assim. Talvez esse seja meu propósito nesse mundo: salvar quem não pode se salvar sozinho. E eu me doarei, de peito aberto e disposta. Sempre. Em qualquer situação.
Não porque eu te amo, mas porque eu me odeio.
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Ouroboros.
Há algo de hipnótico em ver um círculo perfeito. Um início que encontra seu fim, um fim que retorna ao início. Como a serpente que morde a própria cauda, girando em si mesma, consumindo o que é para continuar a ser. Parece eterno, mas é estático. Não há começo, não há término. Só um ciclo fechado, um movimento que não leva a lugar nenhum, repetindo sempre o mesmo trajeto, sem pausa, sem descanso, sem saída.
Mas a perfeição do círculo é uma mentira. Não há avanço real, só a ilusão de que algo está acontecendo. A serpente não se alimenta; ela se devora. Cada volta é uma repetição, cada mordida uma negação do que poderia existir fora dessa forma fechada. Cada curva da cauda entre os dentes é mais um momento perdido, mais uma escolha evitada, mais uma fuga daquilo que não queremos encarar.
Assim é o sofrimento quando recusamos a mudança. Ele não desaparece, não se dissolve, não se suaviza. Apenas dá voltas, retornando ao mesmo ponto. Tudo parece novo por um instante, mas o gosto é velho, amargo, insuportavelmente conhecido. É o mesmo erro, a mesma dor, o mesmo aperto no peito. Como quem se perde num labirinto sem perceber que as paredes nunca mudaram — apenas nós insistimos em andar em círculos.
Se renda à mudança ou sofra no mesmo lugar. É cruel, mas verdadeiro. Há algo de assustador em abandonar o que é familiar, mesmo que machuque. Porque o inferno conhecido, por mais sufocante que seja, ainda é um lugar onde sabemos onde pisar. Não importa que a cada passo o chão nos fira; há uma segurança mórbida em repetir o mesmo caminho.
Mas a verdade é que a mudança não é o castigo. O castigo é ficar parado. O castigo é resistir. Cada tentativa de segurar o que já não faz sentido é outra mordida da serpente, outra volta no mesmo círculo. Nada cresce nesse espaço fechado. Nada respira. Tudo apodrece devagar.
A mudança rasga, dói, desfaz. Ela não pede licença para entrar, nem promete que o depois será mais fácil. Só promete que será diferente. E isso, no fim, deveria bastar. Mas nem sempre basta. Nem sempre conseguimos soltar o que nos prende. A serpente pode morder até não restar mais nada, porque há um cansaço que nos faz preferir o mesmo ciclo à dor de começar outra vez.
Ouroboros é o aviso. A promessa de que, se não nos soltarmos, seremos consumidos por nós mesmos. Devorados pelo medo, pela inércia, pelo peso de tudo que não conseguimos deixar ir. Talvez seja melhor assim. Porque sair do círculo não traz garantias. Não há promessa de um lugar seguro, só a incerteza de outro começo.
E se, no fim, a mudança não for o alívio que esperamos? Se for só outra forma de sermos consumidos? Talvez seja mais fácil continuar aqui, girando em círculos. Talvez o círculo não seja só uma prisão, mas também um refúgio. Talvez a serpente, exausta, acabe adormecendo, e o ciclo pare por si só. Talvez não. Eu não sei. Eu tenho medo demais de parar de engolir minha própria cauda para descobrir.
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Tranque a porta caso você vá sair.
Não por gentileza, raiva, ou por alguma tentativa de apagar aquilo que fomos. Mas por necessidade, por cuidado. Se você for embora, eu tranco a porta. Eu fecho todas as janelas, puxo as cortinas, e deixo que a casa escureça. Porque eu não sei o que fazer com uma porta aberta. Porque eu não quero mais ouvir o som de alguém entrando. Porque eu não quero que outros passos ecoem onde os seus já pisaram.
Não é que eu tenha medo de recomeços. É que eu simplesmente não vejo o sentido. Há um peso em deixar alguém entrar. Não é só abrir a porta — é mover móveis, reorganizar espaços, encontrar lugares novos para coisas velhas. Eu já me desfiz uma vez para você entrar. Abri portas que estavam emperradas, varri cantos que já tinham se acostumado à poeira. Quebrei paredes antigas para construir coisas novas. Fiz com que coubesse você. E agora tudo tem o seu lugar, o seu cheiro, a sua marca.
E se você for embora, o que sobra? A casa sem você não será vazia, mas cheia de ausências. Uma casa onde tudo lembra que você esteve aqui, e que eu me moldaria mil vezes para que você ficasse. Seu nome estará nas paredes. Seu rastro no chão. Seu cheiro no meu lençol. Cada detalhe sussurrando o que já foi, mas não é mais. E eu não quero que ninguém tente preencher esses espaços. Não quero que ninguém confunda o vazio com oportunidade. Se não deu certo com você, como poderia dar certo com qualquer outra pessoa?
Você deve saber disso. Deve sentir, mesmo que eu não diga. O jeito como eu te olho às vezes, como quem olha a última coisa que ainda faz sentido. O jeito como minhas mãos tremem só de pensar que um dia você pode largá-las. O jeito que eu te beijo desesperadamente como se fosse uma necessidade fisiológica do meu corpo. É patético, mas sou eu.
E talvez você ache que é drama, que é excesso. Que é só mais um amor exagerado que se cansa com o tempo. Talvez você esteja certo. Mas, se estiver errado, se um dia você sair e levar sua sombra com você, eu não vou esperar mais ninguém. Não sei se posso abrir portas para alguém que não seja você.
Por isso, tranque a porta. Não deixe entreaberta, porque eu me conheço. Vou acabar olhando para ela, esperando. Não alguém novo, mas você. Só você. Por segundos que viram minutos, minutos que viram horas e horas que viram anos, séculos, milênios. Eu esperaria você voltar, mesmo sabendo que você não volta.
Porque abrir a porta de novo significaria começar tudo outra vez. Significaria apagar você – e eu não quero apagar você. Se não for você, então que não seja mais ninguém. Não quero abrir espaços para outros nomes. Não quero novas histórias ou novos rostos. Depois de você, a ideia de começar de novo parece absurda. Eu prefiro ficar aqui, sozinha, com o eco das suas palavras ainda espalhadas pelos quartos, com o seu fantasma para sempre pairando sobre mim.
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Espelho.
No começo, eu não sabia o que você via em mim. Não fazia sentido. Você era como a superfície de um lago iluminado pelo sol: claro, radiante, impossível de ignorar. E eu? Eu era o fundo do lago, escuro, quieto, um lugar onde ninguém quer descer. Era uma diferença que doía, mas a dor tinha gosto de milagre. Você me escolheu, e isso deveria ser suficiente. Mas ainda era fácil acreditar que, ao me escolher, você estava cometendo um erro. E, talvez, estivesse mesmo.
As pessoas ao seu redor te adoravam. Não sei se era por quem você era ou por quem elas achavam que podiam ser ao seu lado. Você tinha essa coisa – uma presença que tomava conta do espaço, que fazia qualquer um acreditar que você estava destinado a algo maior. Você era sol. As pessoas se curvavam à sua presença como girassóis, buscando o calor das suas palavras, seu calor, a sua aprovação. E eu? Eu só estava ali. Pequena, discreta, alguém que passava despercebida até para si mesma. Era fácil me sentir errada ao seu lado, como um ruído que não sabe ser música.
Quando você me escolheu, foi como se o mundo inteiro tivesse ficado em silêncio por um segundo. Ninguém entendia como você e eu podíamos ser nós. Nem eu. Tentavam decifrar o enigma como se houvesse alguma lógica, alguma justiça, mas não havia. Só o acaso. E ainda assim, um acaso que parecia um erro. O impossível aconteceu, e eu não ousei questionar. Mas você questionava, o tempo todo. Não diretamente, mas em cada gesto, em cada palavra: “Por que você é assim? Por que faz isso? Por que não tenta ser... melhor?”
Melhor. Era essa a palavra. Melhor para você. Melhor para o mundo. Melhor para existir.
Eu achava que isso era amor. Que amor era se transformar para caber na palma da mão do outro. Você gostava de dizer que queria me lapidar. Que eu era uma pedra bruta, um potencial não descoberto. Que havia algo escondido dentro de mim, algo que eu mesma não podia ver. Era uma promessa: se eu confiasse em você, se deixasse suas mãos me moldarem, eu me tornaria algo digno.
No começo, era sutil. Um comentário aqui, uma sugestão ali. “Seu cabelo ficaria melhor assim.” “Você deveria usar roupas que mostrem mais suas curvas.” “Por que você ri desse jeito? É tão irritante.” Eu dizia a mim mesma que era normal, que você só queria o meu bem. Quem ama não quer ajudar o outro a melhorar?
Amor não é sacrifício? Não é moldar-se até caber no molde do outro? Era nisso que eu acreditava. Meu corpo não era bonito o suficiente, minha voz era alta demais, minha tristeza, inconveniente. Cada parte de mim era uma peça defeituosa que você, paciente, ajustava. Cada corte era amor, eu tinha certeza.
E então as sugestões viraram regras. “Você não pode sair assim.” “Não diga isso na frente deles.” “Eu não aguento quando você faz isso.” E eu acatava, porque acatar era mais fácil do que enfrentar. Porque a ideia de te perder era mais assustadora do que qualquer coisa.
Você dizia que estava me ensinando a ser melhor. Mas eu não me sentia melhor. Sentia-me menor. Menor e menor, até que parecia que eu podia desaparecer sem que ninguém notasse.
Eu era grata. Grata por você me querer, porque, se você me deixasse, o que sobraria? Você me dizia: “Quem mais te amaria como eu?” E eu repetia a pergunta em silêncio, ecoando na minha cabeça como uma oração vazia.
Com o tempo, aprendi a ceder sem reclamar, a me quebrar sem fazer barulho. Você me treinou bem. Dobrou, apertou, modelou. Sempre com as mãos firmes de quem sabe o que está fazendo. “É para o seu bem.” Eu acreditava. Como não acreditar? Você é você, e eu sou eu. E ser você significa ser tudo, e eu, nada.
Algo estava sempre errado comigo. Sempre. Como um defeito de fábrica que eu não conseguia encontrar, mas que você enxergava com uma clareza que doía. Você dizia que eu precisava ser mais forte, mas sua força vinha como um vendaval, arrancando de mim qualquer raiz que eu tentava fincar. Cada tentativa de me erguer era esmagada antes de se transformar em movimento, e eu aprendi a não tentar. Dizia que eu precisava ser mais segura, mas sua presença era um abismo, um lugar onde tudo que eu construía desmoronava. Sua mão segurava a minha apenas para me puxar de volta ao chão, e depois me olhava como se a culpa fosse minha.
Eu não era suficiente. Nunca seria suficiente. Era um mantra sussurrado na sua voz e gravado na minha pele. Por que eu não podia ser mais? Mais bonita, mais dócil, mais forte, mais tudo aquilo que você queria? E, ao mesmo tempo, por que não menos? Menos sensível, menos teimosa, menos barulhenta, menos eu?
E então, um dia, a pergunta voltou, não como uma brisa, mas como um grito estrangulado que eu não conseguia mais sufocar: o que você via em mim? Por que você escolheu alguém tão pequeno, tão imperfeito, tão "nada", como você tantas vezes fez questão de me lembrar?
A resposta veio aos poucos, rastejando, devagar, como uma sombra que nunca quis ser notada. Primeiro, era um incômodo. Depois, uma certeza. Você não queria me moldar. Não queria me melhorar. Você nunca quis que eu fosse algo mais. Você queria apenas se ver.
Eu era o seu espelho. Cada palavra que você usava para me cortar, cada crítica que soava como conselho, cada "você é tão difícil" era um reflexo do que você não suportava enxergar em si mesmo. Tudo que você dizia odiar em mim era aquilo que você escondia dentro de você. Você me destruiu porque não sabia o que fazer com a sua própria ruína.
Você não queria me destruir porque eu era fraca. Você queria me destruir porque, ao meu lado, você via sua própria fraqueza. E me esmagar era a única forma de não afundar nela.
Você me escolheu porque eu era fácil de apagar. Porque eu deixava. Porque, ao meu lado, era seguro ser cruel, seguro arrancar de mim qualquer traço de luz. Cada pedaço meu que você destruía te fazia sentir mais inteiro, mais forte. Você me destruía porque era só isso que sempre soube fazer consigo mesmo. E eu acreditava, Deus, como eu acreditava, que isso era amor. Porque amar, eu pensava, era se permitir ser destruída. Era aceitar que, para estar ao lado de alguém como você, eu precisaria desaparecer.
Mas não era amor. Nunca foi.
Espelhos não mentem, e tudo que você via em mim, era um reflexo da sua própria escuridão.
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A pior parte de sempre estar em segundo lugar.
Poucas coisas são tão insuportáveis quanto ser mediana. Nem boa o suficiente para brilhar, nem ruim o bastante para ser descartada de imediato. Apenas... esquecível. Existe algo de insidioso nisso, algo que rói devagar. Às vezes, acho que ser a pior seria um alívio. Ser a pior é mais simples, quase honesto: você sabe onde está, sabe que nunca será escolhido, e com o tempo aprende a viver nesse canto escuro que ninguém olha. Mas ser mediana? Ser mediana é viver na fronteira entre o que se é e o que nunca vai acontecer.
Quem é mediano vive em um limbo cruel. É como ser uma promessa que nunca se cumpre. É um quase que nunca chega lá. É como correr uma maratona onde você sempre alcança a linha de chegada tarde demais. Não rápido o suficiente para vencer, mas também nunca lento o bastante para desistir. Ser mediana é acreditar — e esse é o problema: você acredita. A mediocridade é uma armadilha feita de expectativas não atendidas. Porque estar no meio do caminho te faz pensar que está perto. Não está. Mas a esperança, essa praga, te convence de que está. Então você tenta. E tenta. E tenta.
A ironia disso tudo? Ser mediano te faz acreditar que você está perto de ser escolhido, quando na verdade está mais longe do que nunca. Porque o mundo não quer o mediano. O mundo escolhe os melhores, e quando não pode tê-los, escolhe até os piores — ao menos eles têm algo que os define, algo que grita mais alto do que o silêncio de quem não é nem uma coisa nem outra. O mediano é o intervalo entre duas certezas. É o nada disfarçado de quase.
E o mais trágico é que o mediano nunca aceita isso. Ele luta, briga, insiste, como se fosse grande coisa. Mas não é. A mediocridade faz você sonhar com vitórias que nunca foram feitas para você. E pior: quando, por algum milagre torto, você é escolhido, você não sabe o que fazer. Porque sua mente foi moldada pela rejeição, e a vitória é uma roupa que não serve. Você a veste, mas ela não é sua.
Eu passei a vida sendo a segunda, terceira ou quarta opção de alguém. Nunca fui a primeira escolha. Nunca fui o "sim" imediato, o nome que salta da boca sem hesitação. E ainda piora: ser mediana é ser mantida por perto, como um peso que as pessoas carregam porque não têm coragem de largar. Nunca um “sim” pleno, apenas um “talvez”. Mesmo que eu sonhe, mesmo que eu me permita a ousadia de querer ser a número um de alguém, no fundo, eu sei que não sou. E nunca serei.
E mesmo assim, eu sonho. Sonho como uma tola, porque não sei fazer outra coisa. Porque é só isso que o segundo lugar sabe fazer. A mediocridade tem essa crueldade: ela me faz querer. Ela me faz desejar aquilo que já sei que nunca vou ter. E é patético. Porque, quando sou escolhida, por acaso ou por piedade, não sei o que fazer. Eu estrago tudo. Como alguém que passou a vida inteira sem acreditar na própria vitória, e, ao alcançá-la, descobre que não sabe segurá-la.
Talvez o que mais doa seja isso. Essa ousadia de sonhar em ser a número um, mesmo sabendo que não sou. Mesmo sabendo que não vou ser. E ainda assim, eu tento. Eu corro essa corrida que nunca acaba, porque o que me assusta mais do que o segundo lugar é a ideia de desistir. Desistir seria aceitar que o segundo lugar é tudo o que eu sou. E não sei o que é pior: lutar e perder, ou aceitar que nunca houve luta alguma.
Eu não quero isso. Não quero aceitar que talvez eu nunca seja suficiente. Mas também não sei até quando consigo carregar o peso de tentar. E o mais cruel de tudo é que, no fundo, não há escolha. O mundo vai seguir girando, indiferente ao meu esforço, e eu vou continuar nessa corrida infinita.
Mas no fundo, eu sei. Um dia, o cansaço vai me vencer. Um dia, vou perceber que passei tanto tempo tentando ser algo mais que me esqueci de quem eu era. E aí, o que vai sobrar? Talvez nada. Talvez o vazio. O vazio de quem correu tanto atrás de um sonho que acabou se perdendo no caminho. O vazio de quem sempre foi o segundo lugar, até mesmo para si mesma.
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O barco e o porto.
Todas as tardes, ela descia ao porto. Era um movimento sem pensar, como o da maré que não sabe fazer outra coisa senão ir e vir. Desde pequena, gostava de sentar-se no mesmo lugar, com as pernas pendendo sobre o cais e os olhos perdidos na água. Morava perto, numa casa que cheirava a madeira molhada e peixe velho, mas nunca era o suficiente. Precisava ficar ali, respirando o cheiro forte do mar, da madeira apodrecida, das redes úmidas deixadas ao sol.
Os barcos eram a sua obsessão. Eles tinham algo que os humanos não tinham — uma certeza. Eles chegavam com o peso das tempestades e partiam com a urgência de quem pertence ao horizonte. E mesmo assim, ela sabia que carregavam medos, segredos que o mar sussurrava quando ninguém mais estava ouvindo. Os grandes, que cortavam as ondas como se fossem donos do mundo. Os pequenos, que tremiam ao sabor do vento. Gostava de ouvi-los falarem, cada um contando alguma história que ela sabia ser mentira, mas que soava mais verdadeira do que qualquer coisa que já tivesse vivido. Eles falavam de tempestades, de ondas maiores que as próprias mãos calejadas, de ilhas que ela não saberia encontrar num mapa.
Mas havia um barco que nunca dizia nada, e também nunca partia.
Ele estava sempre lá, num canto do porto, parado como se tivesse esquecido como se mexer. Um barco pequeno, gasto, com o casco marcado por cortes profundos que o sal não deixava cicatrizar. Ninguém falava sobre ele. Parecia invisível, como se sua presença fosse um erro que ninguém ousava corrigir. Ela o via todos os dias, e todos os dias ele parecia um pouco mais imóvel, como se fosse parte do cais.
No início, ela não prestava atenção nele. Não havia nada de interessante num barco que não ia a lugar algum. Mas com o tempo começou a incomodar, como uma pedra no sapato, como um silêncio numa sala cheia de vozes. Todos os outros barcos vinham e iam, cheios de vida, cheios de urgência. E ele ficava. Sempre ficava.
Um dia, sem entender por quê, ela decidiu falar com ele. Não sabia ao certo o que estava fazendo. Só sabia que precisava perguntar.
“Por que você nunca sai daqui?”
A pergunta saiu num sussurro, mas o barco ouviu. Ou talvez fosse só ela falando consigo mesma. A água quieta parecia guardar uma resposta, mas demorou a entregá-la. O vento soprou forte, e por um momento achou que estava falando sozinha. Mas, então, ouviu.
“Porque eu quase afundei.”
Era uma voz que parecia sair da madeira, grave e rachada como o casco. Ela ficou em silêncio, esperando que continuasse.
“Foi uma tempestade,” ele disse, como se ainda estivesse lá, preso naquele momento. “As ondas me jogaram de um lado para o outro. O céu era tão pesado que parecia que ia cair. Achei que seria o fim. Quase foi. Quando cheguei aqui, jurei que nunca mais sairia. O mar não pode me machucar daqui.”
Ela não sabia o que responder. Havia uma tristeza tão funda naquelas palavras que parecia possivelmente tocá-la. Ficou olhando para o casco, para as cicatrizes que o tempo não apagava. Queria dizer alguma coisa, mas as palavras estavam tão presas quanto ele. Finalmente, perguntou:
“Mas você não sente falta de navegar?”
Ele hesitou. A madeira rangeu, como se estivesse se ajustando à pergunta.
“Às vezes.”
“Então por que não vai?”
“Porque eu tenho medo.”
E foi então que ela entendeu. O barco não era diferente dela. Ele era como ela, como tantas coisas que ela nunca soubera nomear: preso entre o desejo e o medo. O porto parecia tão seguro, tão acolhedor, mas também era um lugar onde as coisas ficavam presas.
“Os barcos estão mais seguros no porto,” ela disse, quase sem pensar, “mas não foi para isso que eles foram feitos.”
O barco não respondeu.
Ela ficou ali por mais um tempo, mas nada mais foi dito. Levantou-se, sentindo o vento mais frio do que de costume, e voltou para casa.
Na manhã seguinte, ela voltou ao porto. Ele ainda estava lá. Imóvel. As correntes o prendiam com força, como se fossem necessárias para segurá-lo, mesmo sem vento, mesmo sem maré. O casco, marcado pela tempestade, parecia ainda doer — um corpo que nunca conseguiu se curar de um golpe antigo. As cicatrizes, fundas e escuras, eram como linhas de uma história que ele preferia não contar.
Ela parou ao longe, olhando em silêncio. Não sabia ao certo o que esperava encontrar. Talvez alguma mudança, um movimento tímido, um sinal de que algo, mesmo pequeno, tivesse mudado. Mas não. O barco era o mesmo. Sempre o mesmo.
Ficou ali, quieta, tentando entender. E se ele nunca partisse? Talvez fosse isso. Talvez alguns barcos simplesmente escolhessem não voltar ao mar. Ou, pior, talvez não pudessem. Havia algo terrivelmente doloroso nessa ideia, algo que a fazia apertar as mãos contra o corpo, como se tentasse se proteger do frio que começava a subir do cais.
Pensou no medo. No horizonte. Porque o horizonte era vasto demais, vazio demais, cheio de promessas que ninguém sabia se eram reais. Talvez o barco não quisesse arriscar. Talvez o medo fosse maior que qualquer vontade de partir.
Ou talvez — e essa ideia a atingiu como uma onda inesperada — talvez não fosse medo. Talvez o barco soubesse algo que ela ainda não sabia. Alguma verdade secreta, algo que só quem já quase afundou entende. Talvez a segurança de estar ancorado não fosse covardia, mas uma escolha. Uma forma de existir.
O som da água batendo contra o cais a trouxe de volta. Era um som monótono, constante, como se nada ali precisasse mudar. Ela deu um último olhar para o barco. Não sabia dizer se sentia raiva, pena ou admiração. Mas sabia que ele ficaria. E sabia, com a mesma certeza, que não poderia ficar junto com ele.
Virou as costas devagar e começou a caminhar, os passos ecoando no cais vazio. Não olhou para trás. Não precisou. Sabia que ele estaria lá, imóvel, no mesmo lugar, com suas cicatrizes visíveis e sua solidão ancorada. E talvez isso fosse o suficiente — para ele. Mas não para ela.
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