Tumgik
escritasafetivas · 4 years
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Bilhete
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Era uma manhã de domingo. Como de costume eu acordara tarde. Sobre o balcão da cozinha um bilhete: fui à feira volto logo. O telefone toca. Do outro lado da linha uma velha amiga da família. Com o tom de voz um pouco aflito procura saber se eu e meu irmão estamos bem. Informo que meu pai foi a feira, que a essa hora é habitual meu irmão estar brincando com os amigos no final da rua. Ela parece aliviada e começa a falar em Deus. Como ele não dá um fardo maior do que podemos carregar e que devemos sempre confiar nele. Meu coração bate forte, ela não costuma ser uma pessoa religiosa. Algo no ar parece não estar certo. A campainha toca, diversas vezes insistentemente, peço licença e desligo o telefone. 
 Eu, meu pai e meu irmão, moramos em um sobrado de onde é possível avistar toda a rua. Da janela observo alguns carros chegando ao mesmo tempo, vejo rostos conhecidos que não combinam no mesmo cenário, sinto medo.
 Na noite anterior sentado ao sofá, junto à janela na sua posição preferida meu pai me chamou para conversar. Para mim nada fora do comum uma vez que nos últimos tempos isso se tornou bem corriqueiro. Aposentado, recém separado da minha mãe, passávamos boa parte do tempo juntos. Dividíamos tarefas domésticas, confidências e saímos até para renovar seu guarda roupa de novo bom partido da cidade.
 Nessa noite, falamos por bastante tempo sobre a sua juventude e as escolhas de sua vida adulta também. Depois de um tempo, estava cansada e falei que iria dormir. Ah os adolescentes são tão imaturos, não sabem reconhecer, não tem a habilidade de identificar os verdadeiros sentimentos por trás das palavras.
 Ah se soubesse, jamais teria ido dormir. Teria fincado meus pés naquele chão e de modo algum teria levantado. Teria parado e percebido as sutilezas daquele tom de voz calmo que saia de sua boca. Teria parado e captado seu olhar distante por trás de seus longos cílios. Teria permanecido ali até adormecer.
 Ah se soubesse das suas angústias, tudo poderia ter sido diferente. Talvez eu nem fosse tão imatura assim e pudesse ajuda-lo a supera-las. Talvez, ele ainda estivesse aqui. Talvez ele tivesse me visto crescer, sofrer minhas decepções, amadurecer, enfrentar desafios, encontrar o amor da minha vida, me formar. Talvez, eu com sua ajuda, tivesse tido coragem de colocar filhos de sangue no mundo. Talvez...
 Desde que me entendo por gente, sempre tive diversos pesadelos com meu pai. Em todos eles alguém malvado, um ladrão, um monstro ou algo parecido tirava sua vida. Quem diria que seria dessa forma. Depois desse domingo, nunca mais voltei a sonhar com meu pai.
 Nunca pude viver meu luto, em casos desse tipo me explicaram que chorar, gritar, sofrer, se desesperar causava penitência adicional a alma já tão condenada. Então, tranquei o mais fundo possível toda a minha dor e tristeza. É claro, vez por outra, o sofrimento da ausência era sufocante e eu, em um momento de fraqueza, deixava escapar uma lágrima nem que fosse embaixo de um lençol mas sabia que das almas nada se podia esconder.
 Levei 20 anos para conseguir chorar de verdade e acho que aquela menina de 15 anos espera até hoje no topo da escada a promessa do bilhete: fui à feira e volto já.
 #escritasafetivas #setembroamarelo #escritaafetuosa
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