eikedandrade
Pensamentos já Passados
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eikedandrade · 3 years ago
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Espelho
Me compararam, me mediram
Me acertaram, me diminuiram
Me julgaram, me bateram
Me fracassaram, me forçaram
Ardilosa e sútil, víbora vil
Venenosa, dolorosa
O veneno que me abriu
Contei-lhe meus segredos, minha rosa
E seus espinhos me furaram, ferida jocosa
Ele também era cheio de veneno
Um veneno que bebi desde meu nascimento
Vim de você, mas você não veio por mim
Sofri e ardi, e agora que já sorri
Finja quanto quiseres, finja pelo que queira
Finja por todos os pássaros no mundo
Finja até a morte estar na sua viseira
Mas não me peça para ignorar vossa nojeira
Quantos passos já dei desde que caí no chão?
Quantos passos eu dei até que alguém me estendesse a mão?
Nenhum? algum? Enfim, então
O Fim? Amém! Perdão?Não.
De pé, me saia, de casa, a vaia
De maquiagem, borrada, de verde, a samambaia
De preto, o crespo, de sofrido, a baia
De pé, afim, joelhos quebrados, a fila
Quando eu finalmente acabar
Quando eu finalmente chegar
Quando eu finalmente superar
Quando eu finalmente caminhar
Eu espero ser servido um espelho
Um véu dentre o azulejo
A água que desliza entre a tubulação
Um simples e sombrio rosto e sua mão
Me veja, e contemplem
Me veja, e lamentem
O conto do espelho e seu outro lado
Do homem que tentou de tudo, mas foi largado e abandonado
Quando eu olhar para ele
E ver seus olhos me olhando de volta
Possso jurar aqui, para todos que gostam dele
Que quando isso acontecer, olharei envolta
Darei um adeus e cantarei uma última nota
A nota da corda, amarrada bem forte em meu pescoço
O doce suave de seu tira-gosto
De alguém que mentiu para si mesmo em seu rosto
Eu posso jurar que não haverá uma segunda olhada
Minha vida passará sem ser observada
Vida alheia e passageira, O Nada.
Pois eu prefiro morrer do que ser a sua duplicada
Pois seu gosto não é doce, ele é vil
Seu veneno é ardiloso, sútil
Sua língua é impura, jocosa
E eu prefiro a morte do que imitar a cor podre de vossa Rosa
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eikedandrade · 3 years ago
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Era muito fácil esquecer quem eu era.
Quando eu era criança, me disseram que eu era especial.
Eu tinha notas altas, fazia contas perfeitas, escrevia com letras redondas
Eu tinha uma vida há minha frente com inúmeras opções para escolher
Escolha a sua estrada, a verde, a branca, a azul e a amarela
Eu fiz o suficiente, eu lutei o suficiente, eu baseei minha vida nisso
Eu era especial, afinal.
 Quantas escolhas você tem na sua vida? Todas!
Quantas vidas você tem na sua escolha? Nenhuma!
Eu estava indo para um lugar que todo mundo sabia onde era
Quando eu percebi, já estava na estrada errada
Mas eu não podia estar perdido, eu devia estar me encontrando
Eu era especial.
 Devia ter algo de errado, não é mesmo? Devia ter percebido
Eu percebi quando já era muito tarde, eu me liguei quando não devia mais
Quando eu me liguei, o meu celular já estava em modo avião
Voando alto nas nuvens e caindo em queda livre
Eu devia ter percebido antes, eu devia ter me defendido sozinho
Eu era especial... Não era?
 Ei, estou falando com você. Eu estou falando em voz alta
Onde eu estou? Quando eu cheguei aqui? Quando eu vou sair?
Não, não sei o que estou fazendo... Isso deve ser um choque pra você, né?
Não se preocupe, eu também estou confuso, deve ser difícil de entender
Então, eu me provei aqui nesse caminho que escolhi, não é mesmo?
Eu me provei, sim. Eu provei como sou especial... Não é?
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eikedandrade · 3 years ago
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Res Ipsa Loquitur
Senti o sangue escorrer pelo meu braço, enquanto dei dois passos para trás. A dor, a dor.... Nossa, como doía, como queimava. Me afastei mais, tentando não abaixar a minha espada, mas já sentindo enquanto o ferimento tomava conta de mim, meus olhos tentando se desviar do meu oponente e querendo ir para meu braço, aquele braço que claramente apenas se mantinha firme segurando o pomo da espada por minha própria força. O meu oponente não recuou, mantendo o meio elmo fechado. Eu percebi que seus olhos iam para meu braço e para o chão, o sangue que pingava. Eu já conseguia pisar na poça se formando no chão. Ele havia aberto meu pulso? Não sabia, não deveria saber. Não agora. Agora era a hora de me manter firme e tentar lutar de volta... Mas meu braço falhou e eu senti a espada pender, apenas por alguns segundos antes da espada dele se cravar contra meu ombro. Caído demais, a lâmina havia caído demais. Arfei de dor e arqueei as costas, caindo para trás e sentindo meu peitoral de couro se contorcer e se enfiar contra minha pele, ele não havia parado de pressionar a espada, não ainda.
- Por favor - falei, mal reconhecendo minha voz. O guarda não recuou, mas eu vi, pelos seus olhos, que provavelmente tinham a vista apertada entre aquele meio elmo, vi que ele não queria fazer aquilo tanto quanto eu. Soldados mortos, em meio à guerra.... Quem éramos nós? Ele pressionou mais um pouco e eu senti o couro ceder, finalmente, enquanto a própria lâmina fria se cravou contra meu corpo, batendo do outro lado da armadura. Caí para trás, com sua espada ainda cravada em mim. Ele se ergueu sobre, com o escudo levantado, pronto para esmagar minha cabeça.
- Por favor - repeti, mas já era tarde, ele já o descia contra meu elmo, eu vi meus olhos se encherem com lágrimas e sangue enquanto ele o desceu de novo e de novo, urrando de raiva. Onde estavam os outros? Por breves momentos, só parecia eu e ele... Por breves momentos, a guerra virou aquilo ali, aquele pequeno espaço. Aquele pequeno espaço se tornou a guerra de dois homens simples que não queriam, mas sabiam que deviam matar um ao outro. E eu havia perdido. A dor havia acabado, mas eu ainda sentia pontadas leves no meu ombro. Não quis imaginar como meu rosto estava, mas eu sabia que devia estar deformado. Não conseguia enxergar de um olho e com o outro, só via formas vermelhas. Ele ainda estava ali, abrindo o meio elmo, como se para verificar se eu havia morrido. Mas ainda não, ele percebeu.
Percebeu tarde demais. Levantei a minha mão subitamente, pegando a minha espada que estava no chão e acertando-o na virilha, com força. O sangue não jorrou, mas senti enquanto ele sofreu com aquela dor. Me afastei, arranhando o chão que era pedra, pedra e mais pedra. Senti minhas unhas quebrarem enquanto eu tentava levantar para correr.
Ouvi seus passos atrás de mim, enquanto ele se aproximava. Tentei com mais afinco, enquanto ele se ajoelhou contra minhas costas e me prendeu entre suas pernas. Socando minha nuca. Eu cai novamente, sentindo os punhos de sua manopla cortando a minha cabeça com tanta força que eu batia contra o chão, sentindo o mundo retumbar de novo. De alguma forma, minha dor voltou e eu me vi caído ali, indefeso, enquanto um outro homem, tão indefeso quanto eu, me matava.
Continuei ali, depois que ele se levantou. Respirando com dificuldade e com dor a cada arfada. Ouvi ele pegar algo do chão e entendi. Aquele era meu fim, não havia volta. Eu lutei e lutei, mas acabaria ali. Tudo bem, eu não queria manter aquela luta mesmo, era difícil demais e doloroso demais. Não queria. Acabe comigo, colega inimigo. Por favor.
Não implorei de novo enquanto senti sua espada sendo cravada contra minhas costas. E não senti nada, quando a vida deixou meu corpo. Apenas mais uma, no meio das milhares naquele campo maior. Meu companheiro de batalha, o homem que me matou... Espero que ele viva. Ele não merece isso tanto quanto eu não merecia. Espero que ele viva até se tornar velho. Eu não pude fazer isso... Quem sabe ele possa.
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eikedandrade · 3 years ago
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Vozes em Ondas
De vez em quando eu só as ouvia. Era tão estranho... Tentar dar nome e rosto há coisas que eu não sabia se possuíam isso.
Caminhar era complicado, mas cantar era mais ainda. Os peixes dourados nadavam em meu aquário e eu era quem me sentia preso.
Vozes eternas embaralhavam minha mente e era isso que complicava. Uma delas dizia que eu não sabia cantar.
Outra delas dizia que eu mal sabia ouvir... Não sabia em qual delas eu devia acreditar.
Era poético, se não desastroso, que eu pudesse ver as vozes em ondas que me assolavam, uma de cada vez.
Me deseje adeus, querida, pois eu serei o homem enforcado na encruzilhada. O diabo me queria ali, mas Deus não deixou.
Essa balada só deveria ter uma página, assim deixarei menos espaço para as vozes.
Ondas e ondas... Elas molhavam a tinta. Talvez elas quisessem uma onda mais negra que o oceano mais escuro, mas não posso dizer.
Se eu tivesse asas, como aquele pássaro que voava lá em cima, eu diria que esse é meu fim. Cairia de cabeça e racharia minhas asas!
Mas asas não racham e não falam. Elas voam e plumam e.... Elas estão ali.
Não vamos voar. Não! Não por agora, pelo menos. Vamos ficar aqui por mais tempo...
Vamos... Vamos ficar aqui.
As Ondas... Elas lavam tudo.
Não é mesmo?
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eikedandrade · 3 years ago
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O Meio Termo
- Caramba... - ela disse, passando a mão pelas costas dele e suspirando, confusa. Ela se sentia bem, mas não sabia se era por conta de eles terem feito amor, ou de terem fodido tão bem que ela mal sentia suas pernas.
- Sim... - ele concorda, ofegante - Caramba.
Se deitaram, juntos e beberam água do mesmo copo.
- Difícil superar essa - ela disse, tomando um grande gole e olhando para ele com seus olhos castanho claro. Ele olhou para ela, com os olhos negros como a noite. Ela nunca sabia se eram castanho escuro ou se eram pretos mesmo. Não importava muito, no final. Ela quase sempre observava eles melhor durante o ato, no escuro.
- Claramente.
- Como o dia?
- Claro. - ele ainda estava meio entorpecido, ela reparou.
- Hoje foi melhor que os outros dias, o que te inspirou tanto? - ela pergunta, se deitando em seu peito e correndo os dedos pelas têmporas dele, ela adorava isso.
- Ninguém precisava de inspiração pra foder bem. - ele sorriu, beijando ela e deixando o copo na cabeceira... Do lado dela da cama.
- Alguns precisam.
- Eu fodia mal então? Antes?
- Não...
- Eu sei.
- Ah, não sei. Algo foi diferente hoje.
- Diferente bom? - ele estica a mão e toca nas costas dela, bem na lombar, ela se arrepia toda com aquele toque.
- Diferente bom.
- Então não importa, não é?
- Não sei. Importa? - ela pergunta com um tom mais grosso do que pretendia. Não planejava que a conversa tomasse aquele rumo, mas aparentemente havia tomado.
- Se importa, se não importa... É um toque delicado demais para meus dedos grosseiros. - ele dedilha as costas dela, como se ela fosse um piano. Ela adorava aquela massagem, mas não sairia da conversa tão facilmente assim.
- Eu tô falando sério. - fez a melhor impressão de “mulher brava” que conseguia fazer. Sobrancelha arqueada, boca contraída e tudo. Esperava que funcionasse. Meio que funcionou.
- Sempre falamos sério. Qual o problema?
- Não sei se tem problema.
- Não onde eu vi, não foi a porra de uma boa foda? - ele estica os braços, estressado.
- Uma boa foda não significa uma boa conversa depois.
- Nunca significa.
Ela se senta na frente dele, agora realmente brava. Mas ele a olha como se nunca a tivesse visto antes, com olhos brilhantes e expressivos. Ela estica a mão (bem menos do que da última vez) para beber mais um gole de água. O tempo de acabar a água é o mesmo tempo que ele leva para se sentar, escorado na cabeceira da cama. Ela deixa o copo ali mesmo.
- O que você quer? O que você entendeu? - ele pergunta, ela mal percebe que são duas perguntas separadas.
- O que eu quero é que você me fale mais do que: “Sempre falamos sério”.
- Mas nós sempre falamos.
- Na verdade, na maioria das vezes nós nem falamos.
- É recente. - ele inclina a cabeça, como se intrigado por ela.
- Recente... Mas intenso. - ela fala, subitamente - Ou só eu sinto isso?
Ele suspira, e passa os dedos pelo cabelo negro.
- Não é só você.
Ela sente o coração pular algumas batidas.
- E o que você sente?
- Não sei... - ele responde, meio indiferente - O que você sente?
Ela sente o rosto queimar de raiva.
- Não consegue nem falar o que sente? Não tem o vocabulário suficiente pra falar?
- Não acho que preciso falar tanto assim....
- Fale alguma coisa, pelo menos... Mas fale sério - ela aponta o dedo pra ele, ainda raivosa.
- Eu... Não consigo me decidir...
- Como assim se decidir? Ou você sente ou não sente!
- Eu sinto, só não consigo decidir o que eu sinto, não existe um meio termo pra essas coisas. - ele passa a mão no queixo, pensativo - Acho que sinto mais ou menos o que você deve sentir.
- Você não vai falar né...
Ela cruza os braços, estressada até demais. Não queria ficar ali, não queria ter transado com ele... Nunca.
- É um sentimento bonito... Mas é estranho. - ele começa, balbuciando - Eu meio que sinto que nós dois somos um, principalmente na cama. Eu comecei a sentir isso há um tempo já, mas... Hoje foi quando eu realmente senti, sabe? E foi tão estranho, foi tão... Sorrateiro. Como um susto, daqueles de filme de terror. Eu só tava ali, fazendo o que eu queria fazer com você e de repente eu tava sentindo junto com você também... Foi algo tão lindo e tão surpreendente. Não sei se tem alguma palavra pra definir isso.
Ela fica calada por alguns instantes, deixando tudo que havia ouvido penetrar bem fundo em sua mente. Ela deixa as memórias se grudarem perfeitamente a cada frase e a cada palavra e deixa elas ficarem ali, flutuando... Antes de serem sugadas para baixo, junto de todo o resto.
- Mas é esquisito falar isso em voz alta. - ele fala, meio que abaixando o rosto e olhando para suas próprias pernas - Eu... É assim?
- O quê? - ela pergunta, se aproximando dele e tocando os cabelos dele novamente.
- É assim que você se sente?
Ela o beija, com força e sinceridade. Ela sente como se estivesse engolindo ele e sente como se ele fosse ela mesma. Ela se sentiu assim essa noite também e ela amou esse sentimento. Mas também não sabia se existia alguma palavra para definir aquilo... Queria descobrir junto com ele.
- Algo assim - ela sorri e deita no peito dele, desejando nunca mais sair dali.
Quem sabe dessa vez ela visse os olhos dele no nascer do sol e poderia, finalmente, definir qual a cor exata deles.
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eikedandrade · 3 years ago
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Obrigação do Homem Novo
O meu campo era frio e maciço, sim, ele era.
Aquelas obras de outono, avulsas, que todos viam que provinha das chuvas.
Nós não tínhamos ideia de como rega-lo, era um campo eterno de plantas e plantas e capim sem fim. O mais óbvio seria abandona-lo e seguir até onde ele acabaria. Mas era sem fim... Como eu saberia o fim do infinito?
Quem dera eu saber essa resposta naquele dia, quem dera eu dar fim naquela luz que pairava ali acima, aquela luz opressora e fria, toda contrária daquela quente e acalentadora, que antes pairava em seu lugar.
O Fim estava tão próximo, e mesmo assim, eu, o jovem que era, não percebia.
Afim de amamentar o meu filho, eu não entendia como podia, eu fui atrás e o segui pelo caminho aberto em suas folhas que caíam. Senti o toque doce de suas frutas e o gosto molhado de sua boca. Me senti completo e vazio, me senti aquele que se desviava do caminho.
Como pudera eu saber o fim do infinito? Eu era apenas um homem jovem, com nada a perder... apenas a vida. Como poderia? Não havia maneira, não! Não adianta julgar isso agora, mas é assim que eu via. O campo sem fim se estendia aos meus olhos, tocava ele todos os dias, bebia do leite que o céu fazia cair. Bebia e bebia, até me embebedar...
Mas como podia o homem mais novo fazer algo? Ele mal sabia seu nome. Mal sabia o que havia feito até ali, mal sabia que podia contar algo além da tristeza e do sofrimento. Olhou para trás e era difícil demais voltar ao início, olhou para frente e achou ainda mais difícil de ver para onde ia. Caiu no chão e bebeu do seu campo leitoso, aquele campo branco que se enchia à sua volta, mas sempre sem crescer.
A falta de esperança era sua amiga.... A falsa, mas era. Ela não empurrava ele, mas as vezes falava algumas coisas que podiam ser boas para ele, o fim do seu caminho estava apenas ali, se levante e ande. Andava e caía, no fim do dia chovia de novo. Apenas aquele pouco para mantê-lo vivo, o leite para o filho, mas aquele pouco mantinha tudo vivo.
Quem dera ele saber, não era? Não podia saber, era verdade. Era muito novo. Não podia e nunca iria saber, era o fim da juventude, era o fim da velharia que eram seus dias antigos. HAHAHA, que bons dias eram aqueles. Ria e ria, chorava e não chorava, jovens não choram. Homens, no entanto, já é outra história. E era isso que ele era agora, não era? Um homem. Novo. Mas um homem. Existem homens novos? Existem! O caminho frio do homem leitoso e seu filho campado. Era difícil passar por ele. Era e seria. Ela dizia que estava bem ali, não sabia?
Nunca soube se ele chegou ao fim, nunca soube se ouve um fim... Não sabia, não havia como saber... Eu era muito novo, muito jovem. E é isso que eu sou, não é? Um homem novo.
Existem homens novos?
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eikedandrade · 3 years ago
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Vizinhos
- Como foi seu dia? - perguntou, escorando as costas na parede e pegando um copo. O copo mal se encheu, ele bebericou enquanto esperava por alguma fala, algo para se apegar e continuar dali.
- Merda - respondeu a voz abafada do outro lado. Com uma leve pretensão, como se assumisse que a resposta era a mesma dos dois lados. Não era uma pretensão errada.
- O que rolou?
- Nada.
- Nada mesmo?
Demorou um pouco para falar, mas falou:
- Talvez alguma coisa.
- Quer conversar sobre?
- Você sempre me faz falar primeiro, fale você dessa vez.
- Mas é meio tradição você ir primeiro...
- Não ligo pra tradição, foda-se a tradição.
Silêncio.
- Ok - concorda, depois de alguns segundos. Bebe um gole - eu posso ir primeiro.
- Ok.
- Ok. Então... Eu acordei, escovei os dentes, coisa normal. Tomei meu leite com cereal.
- Você comeu seu leite com cereal.
- É a mesma coisa!
- Não concordo.
- Foda-se. Enfim, comi ou tomei o leite com cereal e mantive a cabeça pra cima sabe. Saí do prédio me sentindo bem. Me sentindo uma nova pessoa.
- E então?
- Bem. Então eu fui pegar o ônibus, perdi ele.
- Típico.
- Sim, mas não era típico dessa nova pessoa.
- Certo. - parecia ter suprimido uma risada
-Enfim, eu só esperei pelo próximo, ele sempre chega na hora mesmo.
- Sim, mas é melhor chegar antes da hora.
- A nova pessoa sabia disso, cale a boca.
- Ok.
- Eu esperei, esperei e esperei. Faltando alguns minutos pra eu me atrasar completamente, eu percebi. Hoje é feriado.
- Sim. - falou como se já soubesse disso desde sempre.
- Pois então.
- Pois então aquele era o último ônibus?
- Sim. Ele era. Eu tive que pagar 25 reais em um táxi.
Silêncio.
- E o resto do seu dia?
- Bem. Cheguei atrasado, não adiantou. Tive que pedir permissão para entrar, foi algo mais complicado do que pensei.
- Deu certo?
- Vai me deixar acabar ou não? Por isso falei pra você ir primeiro!
- Ok.
- Enfim. Eu consegui convencer, consegui seguir caminho com meu dia. Seria uma nova pessoa ali dentro então. Eu entrei e o meu chefe berrou comigo.
- Que nem berrava com a antiga pess...
- Cala a boca! Enfim, eu estava lá e ele gritando comigo e eu só conseguia olhar pra ele e pensar: Que boca esquisita.
- Muito esquisita?
- Sim, sabe aquelas bocas meio... Que parecem salsichas?
- Sei.
- Então. Assim. Quando ele fala, parecia duas salsichas batendo.
- Eca.
- Pois é. Enfim, ele parou e me mandou pro setor. Eu fiquei lá a maior parte do dia, você sabe. Eu fui almoçar, meu código de ponto não queria funcionar. Bem, eu reclamo no RH, eles fazem funcionar rapidinho, nada demais. Enfim. Eu vou almoçar e o almoço é frango ao molho.
Silêncio.
- E o que tem? - pergunta a pessoa de lá.
- Eu odeio frango ao molho! - a de cá parece irritada que a de lá não se lembra.
- Ah - um som de concordância - Continue.
- Eu como, apesar de odiar. E sigo em frente, pego meu livro, vou dar uma lida, mas... Não sinto vontade, a nova pessoa parece estar fazendo as coisas que a antiga pessoa fazia. Sinto uma leve raiva nessa hora e jogo meu livro no chão. A pessoa nova se arrepende e vai atrás do livro e limpa ele.
- É um livro bom?
- Muito bom, depois te conto sobre ele. Enfim, eu sigo em frente com meu dia. Volto para o trabalho, percebo que não vou conseguir ser uma nova pessoa lá dentro, não posso ir para outro lugar. Ali dentro eu abro uma exceção sabe.
- Entendi.
- E ai... Bem, o dia acaba. Eu acabo com meu dia e é isto, eu vou bater o meu ponto novamente e... Bem, ele não funciona de novo.
- Ah não...
- Sim. Então eu tenho que ir na porra do RH de novo e pedir para consertarem tudo isso e bem, não tem ninguém lá, eu não sei como faço, não sei como resolvo. Eu espero lá por quase meia hora até um deles aparecerem... Sabe o que ele me falou?
- O quê?
- Ele me disse que eu podia ter falado no dia seguinte.
Silêncio.
- Cheguei em casa há pouco tempo, fiz um pouco de comida, mas não comi ainda. Tô bebendo.
- Justo, foi um dia difícil.
- Foi um dia chato...
Toma mais um gole e se levanta para encher o copo. Quando volta, de lá está falando:
- ... e agora, você é, não é?
- Perdão, eu fui pegar outro copo, o que foi?
- Vai se foder, você sempre faz isso.
- Eu não sabia que você ia falar.
- Foda-se.
Silêncio.
- Enfim - ele decide terminar - Eu acho que não posso ser alguém novo todo dia. Acho que ser alguém novo leva mais tempo, não acha?
- Acho que sim.
Toma outro gole.
- E o seu dia? - pergunta, sentindo a língua um pouco adormecida.
- Merda, já falei.
- Sim. O meu também. Pensei que íamos compartilhar as histórias.
- Você compartilhou, eu ouvi, eu falei.
- Ah, valeu Doutor Phil.
- Vai tomar no seu cu.
- Ok.
Silêncio. Gole.
- Foi uma bosta completa. Rochinha parece tá pior.
Estava tentando se lembrar do que era rochinha.
...
- Meu cachorro!
- Ata. Pobre cachorrinho, o que ele tem?
- Não sei. Ele não consegue falar, não é?
- Bem, talvez ele comeu uma pedrinha, você deu esse nome para ele por...
- Não. Nada a ver. Rochinha, vem cá...
Sem latidos.
- Bem. É isso, Rochinha tá uma bosta.
- Então o dia do Rochinha tá uma merda, não o seu.
- Se o dia dele tá uma merda, o meu fica uma merda também.
- Entendi.
Gole, gole.
- Estranho como minha língua está enrolada já - comenta, passando a boca nos lábios - Você acha que minha boca lembra duas salsichas batendo?
- Não sei. Nunca te vi... Rochinha, vem cá!
Sem latidos.
- Justo - responde - O que mais rolou no seu dia?
- Foi uma merda, chato. Tentei fazer algumas coisas, não consegui fazer nada. Não consegui andar para frente com meus projetos, acho que os prazos estão quase vencendo...
- Acha?
- Não olho prazos, eles me deixam nervosos.
- Deveria olhar dessa vez, se acha isso.
- É verdade.
Já havia passado das nove horas, era impressionante como o tempo passava rápido durante essas noites de conversa.
- Rochinha? - o de lá chamou.
- Está tudo bem?
Silêncio. Passos. Um urro desesperador.
- QUE PORRA? - se levanta.
- O CORNINHO SÓ PRECISAVA CAGAR - o de lá grita, pelo buraco na parede.
O de cá parece assustado e põe a mão sob o peito.
- Caralho. Que susto.
- Foi mal.
Latidos, do outro lado.
- Caralho, que susto.
- Já falei foi mal.
- Foi muito mal, desgraça.
Se senta de novo, escorando contra a parede. Será que de lá estava assim também? Agora, o silêncio é quebrado por latidos estridentes.
- Ok. Sai daqui - diz de lá, depois de um tempo. - Acho que vou deitar.
- Justo, também vou, amanhã estou lá de novo. Rochinha está 100%?
- O corno está dando pulinhos e girando, então imagino que sim.
- Ok. Que bom.
Dá um sorriso.
- Ei - diz - O dia foi ruim, mas a noite até que não foi tão mal, né?
- É. Acho que a gente sempre esquece que os dias merdas acabam.
- Sim. Também acho.
- E amanhã? Como vai ser?
- Não dá pra saber. Mas espero ser alguém novo amanhã.
- Acho que você estava certo.
- O quê?
- Bem. Você começou o dia falando que você ia ser uma nova pessoa. Chega desafio, acaba desafio, você muda e aprende e agora, você é, não é?
Para e pensa um pouco. Realmente, se sentia meio novo em comparação com o de mais cedo.
- É. Acho que você tá certo.
- Eu sei que tô.
- Boa noite. Não esquece de olhar os prazos.
- Sim, claro. Boa noite também.
Deixou seu copo na pia, o lavando e se preparando pra escovar os dentes. Na frente do espelho, brincou mais um pouco com os lábios e decidiu que eles não se pareciam em nada com salsichas batendo.
Quando acordou, no dia seguinte, respirou fundo, engoliu a ressaca e comeu seu cereal. Ao passar pela sala, ouviu o som de um latido vindo do buraco.
Sorriu, enquanto atravessou a porta.
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eikedandrade · 3 years ago
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Aqui, onde estou
Oi. Percebi que você tem estado mal ultimamente. Não só ultimamente, claro, mas...
Bem, você sabe do que estou falando. A falta de ajuda, a falta de compreensão, vejo que você fala muito sobre sentir a minha falta. Oh, minha querida, eu te entendo tão bem.
Vejo que você diz que estamos separados, afastados um do outro, em outros planos, em outros andares ou em outros mundos. Acho que você vê o mundo de um jeito diferente de mim, agora. Bem, você deve pensar que isso é bem sacana com você, afinal, você ainda vê o mundo daí, enquanto eu vejo o mundo daqui... E onde é aqui? Eu não sei dizer. Aqui é.... Bem, aqui é onde estou.
Eu estou fisicamente aqui? Não sei. Não sei nem se esse papel existe, mas eu sei que vai existir quando chegar até você. COMO? Você deve estar se perguntando. Bem, eu também não sei isso. Mas você deve estar ficando curiosa, bem, eu moro aqui agora. Quando eu cheguei, fui recebido por... ninguém. Bem, aqui nós não somos realmente recebidos, nós só aguardamos. Alguns esperam por outros, alguns esperam por coisas. Conheci um que está esperando seu livro chegar, um livro que viu em um sonho. Ele anda por aí, conversa com todos, mas espera um livro. Parece idiota, eu sei. Mas é o que ele espera. Aparentemente é um livro lindo. Eu já conversei com ele sobre, e ele me disse que realmente precisa desse livro.
Conheci uma que não sabia muito bem o que ia esperar. Ela disse que não se lembrava, mas que sabia que era importante. Eu sei o que é, eu vi. Ele chegou há pouco tempo. Era um cachorro. Você ia adorar vê-lo, é uma raça que nós nunca havíamos visto, uma espécie de animal feito de luz e vida. Ele era amizade pura, e quando ela tocou nele, sua pelugem reluzia e parecia abraçar sua mão. Ela nunca mais foi a mesma, agora ela anda por aí com ele e o ama tanto quanto poderia amar.
Andar por aí, isso é outra coisa. Você deve imaginar campos gigantes de capim, lugares imensos de natureza linda e bela. Você deve imaginar passarelas de tijolos e coisas bonitas... Bem, é realmente muito bonito, mas eu não saberia te explicar como é que isso se define. Você vai me chamar de clichê, mas, você realmente precisa ver para entender.
Você deve estar se perguntando, também, como eu sei que você tem estado mal. Bem, eu posso te ouvir. Na verdade, não só você, eu posso ouvir todos que já conheci, quase em uníssono. Milhares de vozes ao mesmo tempo dizendo coisas aleatórias. Eu desliguei algumas... Na verdade eu só deixei a sua. Queria me atentar a você, queria te ouvir.
Eu me preocupo contigo, apesar de não estar mais aí... tecnicamente eu ainda estou. Sabe quando eu disse que você estava mal por motivos como eu estar em outro plano? Outro andar... Outro mundo.
Bem, eu não estou. Tecnicamente eu nunca estive tão próximo. Eu te ouço, eu te entendo, eu te escuto. Eu posso agir melhor, eu posso ser melhor. Mas você tem me percebido, você tem se fechado aos outros. Ah, meu amor... Você tem estado tão mal. Eu me sinto mal por te ver assim, apesar de saber que isso é quase impossível, onde estou. Mas eu me preocupo, como já disse. Pois sabe, enquanto ele espera seu livro, ela esperava seu cachorro... Eu espero você. Meus dias não existem, mas eles passam comigo em sua mente. Eu te vejo em todo momento, eu te sinto em todo instante. E acho que talvez tenha sido isso que tenha lhe feito ficar pior, essa presença minha em sua mente, pairando por ali como uma sombra que não te abandona, nem mesmo no escuro. Eu me sinto mal por ter feito isso com você, apesar de você nem entender direito o que fiz. Eu não aguentava mais esperar, não aguentava mais te aguardar.
Mas meu tempo chegou, e o seu ainda é longo.
Eu devo me despedir agora, a carta está ficando muito longa. Mas saiba que estou te esperando, amor. Eu te aguardo todos os dias. E quando eu finalmente te ver, pode saber que toda a felicidade que senti na vida não é nada comparada ao que vou sentir aqui, na morte.
Espero que você se cuide, meu amor. Espero que agora, você possa viver enquanto eu possa morrer. Vou me despedir agora, bela minha. Eu sinto sua falta, tanto quanto você sente. E saiba que vou te esperar... Aqui, onde estou.
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eikedandrade · 3 years ago
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Ligação Perdida - por Alguém que não sabe ligar
Absolutamente perdida
Ela era a última vida
A minha Berlim na guerra
A flor na minha terra
 Eu lembro de agarra-la em meus braços
Tratamento de deusa, óbvia e inteira
Olhando para ela em seus chumaços
Só pensando em lhe dar uns amassos
 E naquela bela noite em que a luz desligou
Dançando em nosso próprio jeito e ritmou
Não me importo se inventei, apenas rimou
Pois você sabe que é assim que eu sou
 Eu dou meu jeito, garota
Lhe pego para ser minha
E ainda faço você perder a linha
Como? Venha aqui e descubra qual a cor da tinta
 Pintei meu quarto com a cor escura
Para o reflexo não cegar seus olhos na manhã
Não ligo para o documentário solitário na TV amanhã
Mas me perdoe, a propaganda é bem divertida
 Pois é assim que eu sou, o poeta burro bebê
O homem que rima com o que ele espera e vê
E em um milhão de anos, eu amei milhões de mulheres
Não lhe parece errado sentar aqui tão perto do estado?
 Beijar o dourado
Queixar-se do mal amado
Depois beber de mal grado
E sorrir do seu estado
 Droga... Eu usei a mesma palavra de novo...
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eikedandrade · 5 years ago
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Fim Amargo - Por Eike D. Andrade
Moscas, saliva
O brilho da lua e a sua vida
Monstros, a luz
Eu canto as palavras que eu mesmo pus
 Como podemos curar algo incurável?
Como poderia ver o incalculável?
Qual é a cor da água?
Eu não sei qual seria a verdade e qual seria apenas a sua lábia
 O melhor de tudo é sempre a mesma coisa
O melhor de tudo é sempre o fim, mas por que em meu fim há apenas moscas?
A vida é imperceptível até que alguém perceba ela e te apresente
Como um guia sorridente que diz: “Apenas veja o que sente”
 Ferido e solitário, o Cavaleiro se ergueu
Como uma criatura da noite presa em seu breu
A forma do sangue é a mesma da água
Eu digo que te amo, mas não significa nada
 O início, surgindo
O Labirinto da vida é Sombrio e se descobre sozinho
Anjos, as Trevas
Me guie para fora de tão vis terras
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