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Diário de Carle Stalus (Parte 2)
[O diário descrito abaixo foi encontrado junto aos pertences do soldado de infantaria Carle Stalus, membro da 12ª Legião Teoriana, encontrado morto em ação durante a Campanha Imperialista de Caça aos Demônios, em um campo de batalha ao norte do Império Teoriano. Várias páginas foram perdidas, porém as que foram possíveis restaurar mostram-se de grande interesse aos Senadores e ao Imperador, não apenas por ser algo raro, um soldado raso de infantaria escrever tão bem, mas as palavras nele contidas retratam a realidade do que é a Caça e dos espíritos ao qual chamam de Demônios. O conteúdo foi recuperado pelo Legatus da 17ª Legião, Macsen Tauranis, considerado rebelde e traídor do Império]
Mapas sempre me impressionaram.
Imagino que esta seja o que vê o grande deus Mitikr, em seu castelo nas nuvens junto ao sol. Gravado em um grande pedaço de pele de porco com tinta preta, pude vislumbrar o que é Teora em sua totalidade. Me impressiona a quantidade de terreno que os nossos Imperadores conquistaram no passado. Me impressiona mais aonde o que alguns dos oficiais falavam enquanto mostravam o mapa. Muitas áreas ao norte do Império não haviam sido exploradas por serem terras muito frias. Ao sul do Império pude ver que existe uma grande cordilheira, com montanhas parecidas com espinhos.
Tão impressionado quanto fiquei quando vi quantas Legiões estão espalhadas por todo o império. Consegui contar dezoito ao total. Aproximadamente 90.000 homens da elite militar em campo. Sem contar com os soldados na reserva, e em treinamento. O Imperador prospera, assim como seu Império e seu povo.
Ainda assim, vivemos em uma época conturbada.
O traidor e seus seguidores, Legatus Macsen Tauranis, uma vez humilde seguidor e executor das ordens do imperador, aliou-se à demônios e confronta a autoridade do Imperador, desejando o seu lugar sobre o trono. Foi várias vezes consagrado com um dos maiores líderes do Império, uma das maiores armas do Imperador contra os bárbaros do oeste, enviando-os de volta para seja lá de onde vieram do mar, assim como de diversos invasores.
Alguns dizem que ele foi seduzido por um demônio fêmea, fazendo-o desejar o trono a qualquer custo. Outros dizem que, assim como o Imperador é o representante de Mitikr no mundo, ele é o representante do detestável Beludge, o deus da insensatez, da loucura, o algoz.
De forma ou de outra, ele é o motivo pelo o qual estamos indo cada vez mais para o leste, pois se tornou o líder dos demônios.
Como pude ver no mapa, quatro outras legiões seguem para o mesmo destino que nós, na tentativa de encurralá-los e confrontá-los em um embate final. Alguns dos Tribunos alertam meu Legatus sobre as possíveis artimanhas do traídor.
Depois de alguns dias as notícias passaram a correr mais rápidamente pelas fileiras. Descobri que o mensageiro da legião mais próxima do traídor informou que o esconderijo dos demônios é uma fortaleza natural, um pequeno arquipélago que pode ser alcançado a pé na maré baixa. No entanto, é tudo o que sabemos. Ainda assim marchamos cada vez mais para o leste, para nos encontrar-mos com as demais legiões. Com o término das construções das estradas imperiais, a locomoção de nossas tropas tem sido muito mais rápida, mas ainda somos retardados pelo medo que cresce em nossos corações.
Eu nunca vi uma vegetação tão verde e florida como essa antes...
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O Último Pescador
Era uma noite como outra qualquer na taverna Chifre do Touro.
Muitas mesas estavam livres e os poucos homens que lá estavam bebiam e falavam do dia de trabalho no campo ou na cidade. Merlen, o dono da taverna, um homem comum, esguio com uma barriga protuberante e cabelos ralos, quase careca devido à sua idade avançada – algo próximo dos cinquenta anos – estava dizendo para Bill dos porcos que aquela seria sua ultima bebida do dia. O pobre Bill não conseguia se controlar se passasse de seu limite e sempre terminava por arrumar alguma confusão, fosse na taverna, no caminho, ou na própria casa.
Além deles outros homens cansados viravam seus copos de madeira e pediam mais bebida para Annet, a mulher de Merlen, que era muito mais nova do que ele, beirando os trinta.
Era uma noite comum, em uma tarverna comum, cheia de gente comum. Nada fora do normal para uma cidadezinha próxima à grande cidade capital de Illien. Uma cidade onde a maioria dos homens trabalhava na agricultura, mas outros, como no meu caso, iam para a capital acompanhando as carroças lotadas para vender as mercadorias. Normalmente, nós, os mercadores, voltávamos muito cansados da viagem pelas estradas esburacadas e enlameadas, sem falar na constante preocupação com os bandoleiros, que eram cada vez mais frequentes com o policiamento raro das estradas. Por isso eu gostava de relaxar pedindo a bebida mais forte que Merlen tivesse, para curar as dores e o cansaço com seu amargo sabor inebriante.
Era difícil prestar atenção nas conversas alheias quando se estava bebendo várias doses de strich, e com o passar do tempo as conversas foram diminuindo até que o que eram quinze homens e uma mulher passou a ser apenas cinco homens bêbados, e Merlen. Eu não me importava, desde que minha dose estivesse cheia.
Bill, proibido por Merlen de tomar outra dose de cerveja, contava que os porcos vinham agindo de forma estranha nos últimos dias.
“Eles não querem sair, mesmo o dia tendo sido ensolarado e a lama ainda estando fresca da garoa das últimas noites”, disse ele.
O assunto era trivial de mais, mas algo despertou meu interesse: o tom de voz do criador de porcos estava mais sóbrio do que o normal e estranhamente nervoso.
“Essas coisas acontecem Bil”, disse Well, um dos meus companheiros de viagem. “Os animais sentem o perigo melhor do que nós, vai ver tinha alguma raposa ou lobo por perto e eles ficaram acuados. Ou então vai ver foi só seu bafo de cerveja que assustou os bichinhos”.
Todos riram.
Bill tinha problemas com a bebida, disso todos sabiam, pois sempre terminava causando alguma cena nos arredores da cidade. Mas Bill permaneceu cético, e algo no olhar do homem fez com que minhas risadas saíssem um pouco forçadas. Ele estava preocupado com alguma coisa, mas não sabia o que era. Se você nunca teve essa sensação então não sabe do que eu estou falando. A sensação de algo subindo pelo seu estômago, tirando um pouco do ar, como se estivesse entalado, sem motivo nenhum. Apenas instinto.
Eu estava embriagado, mas senti algo dentro da minha cabeça despertar quando ouvi o barulho da porta da taverna abrindo lentamente. O ar aparentou ficar mais pesado e parecia que todos tinham parado de respirar na mesma hora. Enquanto virava minha cabeça para a porta pude sentir o cheiro de merda e... sangue.
Quando me virei em meu banco e olhei para a porta vi apenas um homem magro, usando calças e camisa puídas de lã marrom com um colete de couro todo rasgado por cima. Seu cabelo estava empapado de suor; sua respiração ofegante; sua expressão estava cansada, mas seus olhos estavam tão alertas quanto os de um cão pastor. As pupílas, bastante dilatadas, iam diminuindo conforme ele se aproximava da luz das velas. Mas tudo isso foram apenas detalhes que minha mente em alerta enxergou, pois o que mais chamou a atenção no homem, e aquilo que trouxe medo para todos ali reunidos, foi o sangue.
Toda a parte da frente de seu corpo estava machada com o sangue. Seu pulso esquerdo estava visivelmente inchado, e o direito segurava um pedaço de pau com tanta firmeza que os nós dos dedos estavam brancos.
Ele olhou para todos nós por um tempo e depois se moveu lentamente para o bar para sentar-se em um��banquinho. Merlen cautelosamente aproximou-se do outro lado do balcão.
“Você está bem, amigo? Está ferido?”, perguntou ele. O homem balançou a cabeça e pediu uma cerveja. Rapidamente Merlen entregou uma caneca cheia até a boca e ele bebeu tudo de uma vez, sem tomar fôlego.
“Obrigado. Estava com muita sede”, respondeu ele. Juro pela luz que nem mesmo os ratos embaixo do piso de madeira se moviam.
“Por Mitkir! O que aconteceu com você, amigo?” perguntou Well, sem poder conter a curiosidade.
“Eu estou bem, eu acho” respondeu o homem, com a voz um pouco trêmula. “Meu braço esquerdo dói, mas fora isso não estou ferido”.
Percebendo que todos tinham os olhos voltados para si, ele baixou a cabeça e olhou para sua roupa. Só então notou o sangue que a cobria. Então, como se quebrasse um feitiço que afetava a todos, ele começou a gritar.
“Não! Não! Não! Não!” dizia ele enquanto tirava a roupa às pressas. Quando finalmente conseguiu, caiu sentado no chão com as mãos no rosto, com o completamente nu da cintura para cima, e chorando em desespero. “Eles morreram!” dizia ele em meio aos soluços. “Todos eles morreram!”.
Nenhum de nós havia se movido até então, mas no momento em que o silêncio morreu, todos começaram a se mover rapidamente. Eu peguei a roupa que o sujeito jogara no chão e, sem pensar em mais nada, a joguei na lareira, avivando o fogo e trazendo um cheiro diferente para o salão. Well e Bill ajudavam o homem a se levantar, como se tentasse amansar um cavalo nervoso, enquanto Jonas, um ajudante de Well, buscava água e panos secos do depósito de Merlen para limpá-lo. Mesmo estando a noite muito avançada, o homem parecia não sentir o frio da água ou do ar e continuava chorando e resmungando.
Merlen saiu por algum tempo e voltou com algumas roupas para vestir o sujeito. Depois Pop, outro fazendeiro que estava conosco, fez uma tala e prendeu o braço do homem.
Ou melhor, do garoto.
A sujeira e seu tamanho fez com que parecesse um homem mais velho, mas depois de lavado e vestido, percebi que não passava de um rapagão de vinte e poucos anos.
Merlen preparou uma sopa de peixe e a entregou com um pedaço de pão do dia para o rapaz. Ele comeu pouco e quando parecia mais calmo botei a mão em cima de sua mão direita. Assim que atraí seu olhar, perguntei:
“O que, por deus, aconteceu com você, rapaz?”.
Seus olhos voltaram a se enxer de lágrimas e podiamos ver o desespero estampada em sua face. Foi necessário mais algum tempo para ele se acalmar. Pop, que era famoso na cidade por acalmar os animais, conseguio usar sua magia no rapaz.
Mal parecia que estávamos bebendo em sorrindo a toa menos de uma hora atrás. Estávamos todos estranhamente sóbrios, até mesmo Bill.
Finalmente começou a falar.
No começo baixo, e sem forças. Contava sua história praticamente sem olhar, seus olhos não piscavam enquanto encaravam o fogo da lareira, e ninguém mais se movia no salão da taverna. Até mesmo o próprio fogo e o vento pareciam fazer silêncio para ouvir o que o rapaz tinha para contar.
“Meu nome é Tondur, ou Tond, como me chamam lá em casa. Eu sou de Lisverdan. Estava viajando com meu pai e sua tripulação. Meu pai, ele é... – fechou os olhos e com lágrimas neles voltou a falar. – ... ele era pescador. Nós estávamos voltando para nossa cidade depois de fazer uma viagem para Vallarys. Ouvimos boatos de que havia uma nova especiaria por lá. Um tipo de peixe seco. Incrivelmente saboroso e praticamente se desmancha na boca. Meu pai viu que essa seria uma grande oportunidade de expandir os negócios. Ele deixou meu irmão mais velho tomando conta de casa enquanto íamos conhecer o lugar para pescar esse novo peixe e tentar vender por essas bandas. Percorremos todo o rio Vallar até chegarmos ao sul da cidade capital de Zágoran. Lá enchemos barris com o novo peixe e tudo parecia que ia dar certo. Íamos voltar para casa, fazer bastante dinheiro. O pai compraria um novo barco e eu e meu irmão revezaríamos nas viagens para o sul. Meu pai dizia que esse seria um grande salto para a nossa ascensão no comércio.”
No caminho de volta não sabíamos exatamente onde estávamos. Uma neblina, que mais parecia uma parede, nos atrapalhou e terminamos encalhando num banco de areia. Os homens do meu pai desceram e descobrimos que estávamos próximos da margem leste. Montamos acampamento e como de costume os tripulantes começaram a tocar música com bumbos. A neblina não ia embora nunca, então eu resolvi dormir mais cedo. Ao som dos bumbos fui caindo no sono e comecei a dormir tranquilamente. De repente os bumbos pararam. Pude ver a luz da fogueira. O pior da neblina tinha passado. Me levantei e fui me juntar a meu pai, curioso com o silêncio repentino. Quando me aproximei todos estavam paralisados, olhando para as árvores. ‘O que foi?’ perguntei, mas todos fizeram sinal para eu ficar em silêncio. Meu pai fez sinal para que me aproximasse dele e quando cheguei mais perto ele sussurrou para mim: ‘acho que tem um urso nas árvores’. Mandou que eu fosse com o Trip a bordo para pegar alguns arpões ou azagaias, e uma rede, para capturar o animal. Corremos para o navio.”
“De lá ouvimos o primeiro grito. Pensei que estavam tentando afugentar o urso e estava empolgado pra captura-lo. Peguei um remo e dois arpões e corri na frente dizendo pro Trip trazer a rede logo. Quando cheguei no acampamento...”
Ele parou para enxugar as lagrimas que corriam pelo rosto. Todos permaneciam calados. Bill estava com um copo de cerveja na mão, mas ninguém fez objeções quanto a isso.
A minha dose de strich estava quente, Well não conseguia tirar os olhos do rapaz, Pop, que estava do lado dele, tentava dar forças passando o braço por cima do ombro. Merlen aproveitou a pausa para jogar mais lenha na lareira e antes que voltasse para perto do grupo Tondur continuou a sua história.
“Quando cheguei ao acampamento não vi um urso. Parecia com um; era grande como um, e tinha o pelo parecido com o de um urso. Mas era só isso. Aquilo, mais parecia com um homem velho e forte, com cabelos e barba brancos, mas tinha chifres e pele de urso e orelhas de raposa. Ele era mais alto do que o mais alto dos tripulantes do meu pai e quando eu cheguei ele estava olhando pra alguém, que estava caído no chão. Eu não sei quem era, mas estava embaixo do pé dele. As unhas dele pareciam com garras... Meu pai correu para mim e pegou um dos arpões da minha mão e atirou gritando ‘para o barco!’. Meu pai e mais três tripulantes se armaram quando Trip voltou e foram tentar encurralar a besta. Então ele olhou pra mim. Ele sabia o que estava fazendo. Não era uma besta, era um demônio. Ele estava atrás de nossas almas! Ele matou todos!”
O rapaz voltou a chorar mais forte. O seu sofrimento e medo eram praticamente palpáveis.
“Eu preciso de uma boa dose de strich”, disse Pop se levantando ao perceber que não conseguia mais enfeitiçar o rapaz.
“Eu vou com você”, eu disse, e logo atrás de mim veio Merlen.
“Você acha que ele matou aqueles homens e está inventando essa história?” perguntei para Pop.
“Não, veja como ele chora” disse o homem mais velho apontando com o queixo “Acho que ele está falando a verdade. Mas um demônio? Em Teora? Podemos ter problemas com bandidos, mas as Legiões do Imperador eliminaram todos os demônios dessa terra. Devia ser um urso que ele não viu bem por causa da neblina. Além disso, vai saber o que eles estavam bebendo”.
Demorou mais um bom tempo até que ele se recuperasse, mas ninguém estava disposto a sair enquanto não soubesse o fim daquela história. Voltamos para os nossos lugares e o rapaz continuou. Bill estava pálido e a bebida em seu copo, parecia não surtir o mesmo efeito de tantas outras noites.
“Meu pai jogou o primeiro arpão tentando acertar o peito da besta, mas ela conseguiu apanhar o arpão no ar e usou-o para matar o tripulante embaixo de seu pé. ‘Usem como se fosse uma lança’, alguém gritou e corremos para cima da fera. Ela era muito alta. Fomos nos aproximando lentamente e ela permanecia parada apenas nos seguindo com os olhos. Eu estava com muito medo. Falei para meu pai que devíamos ir embora, mas ele se negava em ir embora sem se vingar do tripulante. Meu pai se aproximou mais e foi atacado. Num reflexo ele consegui furar a mão do monstro. Era uma mão, não uma pata. Tinha polegares e dedos, e a mão era tão grande que poderia segurar uma melancia com facilidade. Ele rugiu e então se irritou de vez e nos atacou. Meu pai foi o primeiro a morrer. Tentei me aproxima dele, mas me impediram. Uma outra fera apareceu. Ela veio da nossa esquerda. Era menor, mas era mais rápida e mais violenta. Ambas as criaturas mataram todos os que as atacaram e quando me dei conta, eu era o último lá”.
“Peguei uma azagaia no chão e usei como se fosse uma lança para me defender. O maior se aproximou de mim. Aqueles olhos totalmente amarelos me encararam e apesar da mão ferida ele não parecia sentir dor. Vi o menor ao fundo cheirando os corpos, mas não comendo. Era menor, mas não deixava de ser grande. O primeiro ficou de cócoras e ficou com o rosto próximo ao meu. Com sua mão ferida ele pegou meu ombro direito. Eu ouvi algo dentro da minha cabeça. Uma voz, como se ele estivesse falando comigo, mas não entendi nada do que ele falou. Uma voz que parecia estar falando desde que os bumbos pararam, falado de uma forma monstruosa. Então ele deu um rugido e me jogou para o lado. Foi assim que machuquei meu braço esquerdo, com a pancada. Consegui me levantar e corri pro meio da floresta.
“Não olhei pra trás em nenhum momento. Não sei por quanto tempo eu corri. Por fim cheguei à uma trilha e esbarrei com um viajante. Ele estava a cavalo e usava uma capa maltrapilha. Deu uma boa olhada em mim e simplesmente falou para eu seguir para o norte que eu chegaria aqui. Disse para eu procurar por Tavius, que ele me levaria a Illien em segurança. Quem é Tavius?.”
“Sou eu”, respondi.
“Senhor”, disse o rapaz, “Eu preciso encontrar uma Casallach. Preciso encontrar mensageiros de luz, para salvar a alma dos meus amigos!”
“Podemos ir à Illien amanhã pela manhã”, respondi solidário. “Não é uma viagem muito longa. Mas agora você precisa descansar”
“O que foi que a fera falou”, perguntou Bill, subitamente. “Parecia com o que?”
O rapaz encarou Bill com um olhar de surpresa. “Eu não sei”, respondeu ele. “Parecia algo como um arroto, ou um rugido”.
Bill virou o que restava de sua cerveja de uma só vez, e então disse “Vá dormir garoto. Merlen, dê um chá de mato-noturno para o rapaz. Uma boa dose. Ele precisa descansar. Deve ter corrido por umas duas horas direto. O rio ao sul daqui fica a uns vinte quilômetros”.
Depois do que Bill falou foi que percebi o quão tarde já era, e o sono e o strich bateram na minha cabeça como um martelo.
Os outros pareceram ter sentido o mesmo, pois começaram a se despedir e desejar boa noite para o garoto. Merlen arrumou um dos pequenos quartos que disponibilizava para alguns raros viajantes com quem simpatizava.
Bill fora o primeiro a deixar a tarverna. Saiu falando sozinho, e Pop foi atrás dele, como de costume, para garantir que ele não faria nenhuma besteira. Fez isso mais por força do hábito do que por necessidade. Bill parecia mais sóbrio do que nunca. A história de Tondur realmente o tocara, de alguma forma.
Well e Jonas sairam logo atrás, e me vi sozinho na saída do Chifre do Touro.
Enquanto caminhava para minha casa, repassava toda a história na minha cabeça. Tudo aquilo se passaram em menos de meio dia de distância dali. Se as criaturas descritas por Tondur fossem como ele realmente as descrevera, elas poderiam estar por perto. Talvez o strich estivesse fazendo mais efeito nessa hora, mas não estava com medo. Apenas aquela sensação estranha que senti pouco tempo antes de nosso visitante inesperado chegar.
Lembrei-me do viajante.
Talvez fosse o mesmo que passara as duas últimas noites no Chifre de Touro. Um homem calado, completamente vestido de preto, com um curioso lenço violeta no pescoço, e perigosamente armado. Uma figura perturbadora, pela forma que se vestia, mas um sujeito sábio e agradável. Conversei com ele na noite passada, e acho que fui o único de quem ele se lembrou, para dar meu nome para Tondur. Ele dizia estar viajando em busca de um novo propósito para sua vida.
Os dois dias seguintes foram para ajudar Tondur em sua causa. Chegamos a uma das inúmeras Casallach de Illien, mas ao contar sua história, muitos preferiam chama-lo de louco.
“Demônios no Império?” perguntavam os emissari.
Fizeram pouco caso do garoto, e depois de mais quatro visitas com o mesmo resultado, o convenci de que seria melhor voltarmos para o campo. Lá tomariamos conta dele, até que conseguíssimos provisões para que ele viajasse com segurança até sua cidade natal.
Quando voltávamos pela estrada do oeste, encontramos Bill e Pop discutindo.
“São apenas lendas, Bill”, dizia Pop calmamente. “Lendas antigas, que aquele viajante colocou na sua cabeça”.
“Não! Me recuso a aceitar isso, Pop!” reclamava Bill, com o comportamento completamente oposto ao de Pop. “O viajante estranho chega, conta uma história, e um dia depois, o garoto chega com outra história muitíssimo parecida!”
“O que está havendo”, perguntei.
“Bill está bêbado de novo”, disse Pop.
“Nada disso” contrapôs Bill. “Eu sei bem do que eu estou falando. Primeiro o viajante, depois os porcos...” “Lá vem você de novo falar dos porcos”, interrompeu Pop. “Era só algum animal selvagem nas redondezas, Bill”.
“E agora a história do garoto”, continuou Bill, ignorando a interrupção de Pop. “Tavius, me diga se isso não parece coincidência demais”.
“Não estou entendendo nada, Bill”. Tondur permanecia calado ao meu lado. Se fosse um cão, aposto que estaria com as orelhas em pé.
“O viajante, o mesmo que falou com o garoto, o mesmo que passou duas noites aqui. O mesmo que viajante estranho que passou uma noite inteira conversando com você, sabe-se lá porque. Você mesmo disse que o homem era um contador de histórias. Que dizia conhecer o império como as próprias mãos, e que estava sendo seguido pelas lendas de antigamente. Ele contou a história dos povos de Teora, sobre aquelas criaturas estranhas, que caçavam homens que destruiam as florestas. Como se chamavam?”
“Värkäk”, respondi.
“Isso! Vorcoque, ou isso aí que você falou. Ele contou que eles cuida das florestas inabitadas, que protegem os animais, e que são feras inteligentes. Que falam com a mente das pessoas. Foi um vorcoque que o garoto viu! É por isso que os porcos estão estranhos. E aposto que eles estavam seguindo o viajante. Devem ter perdido o rastro dele e confundiram com a tripulação de Tondur”
“Quer dizer que você acredita em mim?” pergutou o garoto. “Acredita mesmo que os demônios existem?”
“Garoto, eu acredito apenas no que eu vejo. E o que eu vi nos seus olhos foi um tipo de medo que eu nunca vi. E aquele viajante. Eu já vi pessoas estranhas, doentes, ricas e pobres, na capital. Mas aquele homem não é normal. Ele mesmo deve ser um caçador de vorcoque. Eu sinto muito pela sua família, pelos seus amigos, Tond, mas é melhor deixar essa história de lado. Demônios é problema dos emissari e dos seguitos. Vamos voltar para nossas vidas”.
“Ele realmente exagerou na dose dessa manhã”, disse Pop com ar divertido.
Ninguém levava Bill a sério. Tondur acreditava nele. Sabia o que tinha visto. Sabia que o que Bill falava fazia sentido, e passou o resto da tarde ajudando o criador de porcos, fazendo perguntas sobre o viajante e os Värkäk.
Alguns dias depois realizamos uma viagem até Illien, e ajudamos Tondur a encontrar uma caravana que fosse para o oeste, para sua terra natal. Os dias passam, e pouca coisa acontece em nossa cidade. Mas a história do Último Pescador foi diferente. Por anos a história se repetiu, tomando proporções absurdas. Em algumas versões, Tondur era um grande guerreiro que assassinara um Värkäk junto ao rio, e usara sua pele para enganar os outros vinte ou quarenta para salvar sua tripulação.
As pessoas conta histórias absurdas para chamar atenção. Mas a real história é essa que eu conto.
No que eu acredito? Eu não sei.
A nossa pequena cidade recebendo a visita de demônios antigos, de um caçador de demônios, e de um jovem pescador - que abandonou a vida simples para tornar-se outro caçador de demônios em Illien?
“Merlen, por favor, mais uma dose de strich...” é só o que eu tenho a dizer,
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Diário de Carle Stalus (Parte 1)
[O diário descrito abaixo foi encontrado junto aos pertences do soldado de infantaria Carle Stalus, membro da 12ª Legião Teoriana, encontrado morto em ação durante a Campanha Imperialista de Caça aos Demônios, em um campo de batalha ao norte do Império Teoriano. Várias páginas foram perdidas, porém as que foram possíveis restaurar mostram-se de grande interesse aos Senadores e ao Imperador, não apenas de ser algo raro, um soldado raso de infantaria escrever tão bem, mas as palavras nele contidas retratam a realidade do que é a Caça e dos espíritos ao qual chamam de Demônios. O conteúdo foi recuperado pelo Legatus da 17ª Legião, Macsen Tauranis, considerado rebelde e traídor do Império]
[...] largadas em fuga como se os camponeses temessem as forças do Império. Não é a primeira fazenda que visitamos que reage dessa forma. Porque fogem? Não percebem que estamos aqui pelo bem de toda a Teora? Talvez não consigam reconhecer ao longe as bandeiras do Império, e fogem com medo de alguma possível ameaça. A não ser que os demônios consigam juntar um exército tão grande quanto uma legião, não há motivo para temer invasões. Quem seria louco de se levantar contra Teora? Alguns comandantes dizem que são traídores que se aliaram aos demônios em troca de prazeres mundanos, outros dizem que os demônios mataram todos do campo, e que esconderam as evidências. Mas não sabem o que falam. Cresci em uma fazenda ao sul da Capital. Sei o que vejo. A não ser que os demônios realmente estejam envolvidos, as pessoas que moravam aqui, sem sombra de dúvidas, fugiram para o leste.
Acampamos na fazenda. Os comandantes realizaram mais uma de suas reuniões habituais dentro da casa principal. Alguns mensageiros vêm e vão em disparada nos melhores cavalos de corrida de Teora, levando as informações dos Tribunus para o Legatus. Desde o nosso último encontro com os demônios, as mensagens têm sido trocadas com mais frequência. Os Tribunos discutem apenas com os Centúria, e estes nos passam apenas notícias boas e prósperas. Já as outras notícias, as que correm pelas linhas da infantaria, falam que os outros 2780 homens que seguem o Legatus na campanha do leste sofreram ataques muito piores do que os nossos, e que estamos perdendo tempo indo para o oeste atrás desses demônios enquanto nossos compatriotas sofrem baixas e perdem suas vidas. Mas para ser sincero, tenho medo. Mesmo em pouco número, em nosso único encontro, eu vi o que esses demônios podem fazer. Eu vi o fogo sair da boca de uma raposa, e uma árvore se mover como um homem. Eu vi uma serpente que anda por baixo da terra arrancar a perna de um soldado. Matar eles não foi difícil. Eram apenas três, pequenos e quase frágeis, até mesmo para o homem-árvore. Mas não digo opinião para ninguém, por medo de que me chamem de covarde ou de traidor. A verdade é que se no leste está o maior número deles, eu prefiro continuar indo para o outro lado.
É chegada a hora de dormir. As noites de verão têm sido agradáveis e generosas. As estrelas brilha e iluminam o céu. Quase não precisamos de fogueiras.
[Escrito com pressa e quase ilegível]: Fomos atacados. Alguma coisa atacou furtivamente nossa cavalaria. Muitos dos cavalos foram libertados e fugiram. Alguns homens seguiram os invasores e os capturaram. Eram três e pareciam pouco mais do que crianças. Mas as cordas não os seguraram por muito tempo. Os demônios estão usando a pele daqueles que matam! Quatro soldados foram mortos, e outros três estão muito feridos. Os braços de um demônio se tornou raízes, e matou dois dos quatro de uma só vez. A cabeça deles praticamente pulou de seus pescoços. Ele foi abatido. Dos outros dois, um derrubou vários ao redor com um sopro que parecia uma tempestade, e o outro causou uma explosão que transformou a noite em dia, como um raio caído do céu. Eles conseguiram escapar, e nossos homens morreram. Meu cabelo ainda fede com o cheiro da carne do que voou. Preciso me lavar.
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Have you ever?
Have you ever felt like a book upon the shelf? Waiting for the right hands to pick you up; Waiting for the right eyes to read you entirely; Waiting for the right lips to recite you And the right person discover every little bit of you, page by page? Have you ever felt like an umbrella? Protecting those who hold you close; Taking the rain for that right person; Willing to resist until you bend?
Have you ever be something tha important to someone? How’s that feeling?
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