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contemporaneaemfoco · 5 years ago
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Ghibli, a guerra e as memórias dolorosas
A história do Japão está envolta em muitos debates e o famoso estúdio japonês tem um posicionamento decisivo quando se trata das experiências de guerra
Me deixa muito satisfeita poder compartilhar, aqui, os resultados de mais um de meus trabalhos da faculdade. Em geral, como a proposta é justamente realizar uma “mini pesquisa”, eu busco sempre escolher temas que satisfaçam meus anseios de descobrir algo novo sobre algum assunto que me atrai.
Em três anos de curso, já estudei muitas coisas - e sei que preciso me aprofundar e conhecer muitas outras -, e uma das ultimas experiências que tive com esses estudos se mostrou bastante feliz e proveitosa. Na procura por um tema adequado à proposta de trabalho final, percebi como estudar Japão pode ser um desafio, entre eles pela barreira linguística, que me fez ficar simplesmente pasma diante da imensidão de coisas que eu sabia que não conseguiria devidamente acessar e compreender. Sendo assim, acabei, por fim, escolhendo tratar do estúdio Ghibli, mais particularmente de dois dos seus filmes e de sua visão no debate sobre a atuação do Japão durante a Segunda Guerra, uma escolha bastante diferente da minha proposta inicial, que era estudar órfãos de guerra, mas que me deixou igualmente feliz, apesar de ter sido um processo um pouco trabalhoso.
Pela análise que fiz, à luz das pesquisas de outras pessoas que pisaram nesse campo antes de mim, tirei algumas conclusões bastante interessantes e, diga-se de passagem, relevantes para o próprio momento que hoje vivemos. Comecemos pelo início...
Para quem não sabe, o estúdio Ghibli trabalha com animações e foi criado no Japão em 1985 por alguns contribuintes como os diretores Hayao Miyazaki e Isao Takahata, que buscavam, naquele momento, ter maior liberdade criativa nas suas produções, e e possível dizer que os filmes feitos a partir daí seguem bem essa tendência. Hoje em dia eles fazem muito sucesso dentro e fora do Japão, e o filme “A Viagem de Chihiro”, por exemplo, ganhou um Oscar de melhor animação no início dos anos 2000. 
No meio das várias discussões e narrativas sobre a guerra que surgiram no Japão, o Ghibli se insere de forma muito particular, pois carrega nos seus filmes, mesmo de forma indireta, uma forte mensagem pacifista e antinacionalista.
Antes de mais nada eu devo dizer que a minha análise, que levou a essas conclusões, foi feita a partir dos filmes “Túmulo dos Vagalumes”, dirigido por Takahata e lançado em 1988, e “Vidas ao Vento”, dirigido por Miyazaki e lançado mais recentemente, em 2013. No caso desse último, é interessante observar que ele trata da biografia do designer de aeronaves Jiro Horikoshi, e reflete também o interesse pessoal do Miyazaki por aviões.
Vamos, então, a uma breve apresentação desses longas.
A história de “Túmulo dos Vagalumes” acompanha dois irmãos, Seita e Setsuko, na tentativa de sobreviverem em meio à devastação da guerra. Carrega um forte apelo emocional justamente por eles serem crianças, e estarem em um clima constante de tensão e incertezas.
Um ponto que merece nossa atenção, nesse caso, é o contraste entre o lúdico, a inocência infantil, e um cenário devastador, marcado pela destruição e pela presença de corpos mortos, entre eles o da própria mãe, rodeado de mosquitos e larvas. Esse contraste fica ainda mais explícito através da analogia ente os vagalumes, seres brilhantes e inofensivos, e as bombas que caem do céu.
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Figura 1: Vagalumes se misturam a bombas em “Túmulo dos Vagalumes”
À parte dessa ênfase no sofrimento da população, o filme faz duras críticas à guerra em si, e à postura nacionalista, encabeçada por personagens como a tia de Seita e Setsuko, que usa a desculpa de eles “não contribuírem com algo útil à nação” para negar-lhes comida, e mesmo no próprio Seita, que, em várias ocasiões enaltece a grandeza do Japão e de seu pai - da marinha japonesa - que lutava na guerra e voltaria, segundo ele, para fazer justiça a todos aqueles sofrimentos.
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Figura 2: Feridos em “Túmulo dos Vagalumes”
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Figura 3: Cena que mostra o nacionalismo em“Túmulo dos Vagalumes”
Já “Vidas ao Vento” narra a trajetória de Jiro Horikoshi na sua carreira de projetista de aviões, e vale lembrar que é ele quem desenvolveu o avião que seria posteriormente usado pelos Kamikaze, os pilotos japoneses que adotavam táticas suicidas nos seus ataques durante a Segunda Guerra.
Aqui também é possível perceber um contraste, principalmente entre a leveza de viver, expressa no próprio título em português ou mesmo na constante presença do vento em várias cenas, que por sinal, também é um elemento fundamental para que um avião voe, e as abruptas interrupções em que cenários de violência e ataques aéreos são vislumbrados.
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Figura 4: Cena contemplativa em “Vidas ao Vento”
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Figura 5: Aviões destruídos em “Vidas ao Vento”
A crítica do diretor se insere no filme, dessa maneira, a partir disso ou mesmo da tristeza de Jiro ao perceber que a sua bela criação tinha sido usada com fins militares, causando muito sofrimento. O nacionalismo também é um alvo de crítica nesse filme, e isso acontece, por exemplo, pela presença das bandeiras nacionais (italianas e japonesas) em todos os aviões que aparecem em cena, e da perseguição que sofrem Jiro e seu amigo alemão pelas críticas ao regime de Hitler e do imperador japonês Hirohito. 
Mesmo que os filmes não tenham assumidamente essa postura, é possível inferir esse antibelicismo e antinacionalismo pelo que eu falei antes, a partir da observação dos filmes, pela postura crítica de Miyazaki, que é uma das principais figuras do estúdio, confirmada pelo colega Toshio Suzuki, e também por certos temas comuns que costumam ser explorados nos vários filmes do estúdio, como o senso de comunidade, e as próprias tradições religiosas Shinto e Budista, que podem aparecer de forma indireta em alguns filmes, e que estão bastante ligadas à questão de uma harmonia com a natureza e com os seres vivos. Essas perspectivas orientam os filmes, então, no sentido de explorar ou mesmo incentivar uma relação mais humanizada entre “eu”, os “outros” e o mundo.
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 Figura 6: Símbolo religioso em “A Viagem de Chihiro”
Sendo assim, “Túmulo dos Vagalumes” e “Vidas ao Vento” confluem no mesmo ponto e, enfatizando sempre o lado doloroso da guerra para o povo japonês, mostram também as culpas do Japão, deixando de ser, assim, simples narrativas vitimizadoras.
Esse posicionamento do Ghibli é muito importante e faz ainda mais sentido quando percebemos que desde os anos 1950 se arrasta, no Japão, um embate entre interesses antagônicos. De um lado, temos aqueles que, como o estúdio fez e continua fazendo, advogam por uma história que considere as complexidades e problemas do passado, e de outro aqueles que, por determinados interesses, insistem em ocultar questões fundamentais como as ações não tão glamourosas do Japão naquela época, entre elas os seus crimes de guerra.
É ainda mais problemático saber que essa segunda postura foi e continua sendo adotada por muitas autoridades políticas japonesas, como se vê pelo caso da reformulação do Museu da Paz de Osaka, em 2015. Esse museu, que era conhecido por sua perspectiva mais equilibrada da experiência da guerra, passou por mudanças ideológicas severas, que apagaram das antigas exposições esse lado obscuro das ações do Japão, e essa iniciativa parte das elites políticas locais, que têm vínculos com o atual primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe.
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Figura 7: Museu da Paz de Osaka
O objetivo aqui não é dizer que o Japão é ou foi “mau”, mas que na experiência da guerra ele não foi um elemento neutro, tendo promovido diversos ataques e mesmo crimes, e que há iniciativas de apagamento desse último aspecto. Essa questão pode ser aplicada à atuação de outros países, mas coube falar do Japão justamente por ser onde as narrativas do estúdio Ghibli mais se inserem.
Antes de encerrar, é importante entender, então, que os filmes de que eu falei podem ser considerados progressistas por essência e encarados como importantes vozes na divulgação de uma perspectiva histórica mais precisa e respeitosa, e em uma discussão que não deve cessar, principalmente diante da ameaça conservadora, extremista e neofascista, que se expressa em diferentes frentes, inclusive na disputa por narrativas históricas, e que se encara hoje não somente dentro do Japão, mas inclusive no próprio Brasil.
Eu espero que as ideias que eu trouxe aqui sejam, de alguma forma, significativas para vocês, e reforço que o Ghibli é, sem dúvida, um estúdio diferente, que me toca muito com as suas cenas contemplativas e abordagens sensíveis, como as que eu mostrei aqui. Eu recomendo aos leitores que, caso não conheçam, não tenham medo de mergulharem nesse mundo, seu tempo não será desperdiçado e vocês certamente sairão dessa experiência com o coração um pouco mais aquecido.
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Link para acesso ao vídeo que publiquei no YouTube, sintetizando essa discussão: https://www.youtube.com/watch?v=xDmEimMa4U8&feature=youtu.be
Agradecimentos:
À querida professora Raquel Gomes, que ministra a disciplina de História Contemporânea no departamento de História da UNICAMP, e sempre nos incentiva com esses trabalhos “fora da caixinha”.
Ao PED, Victor Menezes, por ser uma pessoa muito alegre, divertida e solícita, sempre disposto a nos ajudar, e que nos deu excelentes aulas ao longo do semestre.
E, não menos importante, aos PADs, por sempre contribuírem na disciplina e me ajudarem prontamente quando precisei.
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