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A MISSÃO DAS FOLHAS
Naquela tarde quebrada
contra o meu ouvido atento
eu soube que a missão das folhas
é definir o vento
Ruy Belo | "Obra Poética de Ruy Belo" - Vol. 1, pág. 50 | Editorial Presença Lda., 1984
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Sentia-se muito jovem; ao mesmo tempo indizivelmente velha. Penetrava em tudo como uma faca; ao mesmo tempo estava de fora, observando. Tinha uma sensação constante, enquanto olhava os táxis, de estar fora, longe, muito longe no mar e sozinha; sempre tinha a sensação de que era perigoso, perigosíssimo viver mesmo que fosse um único dia.
Virginia Woolf, Mrs. Dalloway (1925)
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Fragmentos disso que chamamos de “minha vida”
Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.
Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida". De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.
Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.
Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível". Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.
De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito joias encravadas no dia a dia.
Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.
Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.
Caio Fernando Abreu
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"E existem aquelas pessoas, que por mais distantes que estejam, ainda continuam perto. Aquelas, que passe o tempo que passar, serão sempre lembradas por algo que fizeram, falaram, mostraram, ou nos fizeram sentir. É isso. As pessoas são lembradas pelos sentimentos que despertaram em nós, e quanto maior o sentimento, maior se torna a pessoa."
Caio Fernando Abreu
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“E quanto mais te perco mais te encontro morrendo e renascendo e sempre pronto para em ti me encontrar e me perder.”
Manuel Alegre
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ARTE DE NAVEGAR
Vê como o verão
subitamente
se faz água no teu peito,
e a noite se faz barco,
e minha mão marinheiro.
~ Eugénio de Andrade
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“Começarei morrendo pelo coração. Gostarei sempre dele, como se gosta do que está extinto, sejam os dragões, os anjos ou as distâncias. Histórias de coisas que não voltam. O meu coração sem visitas perderá a memória e, quando nos separarmos de vez, certamente será mais feliz. Se me perguntarem, direi que nasci sem ele. Jurarei e mentirei sempre.”
— Valter Hugo Mãe, A desumanização.
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AS VEZES O PRESENTE
As vezes o presente tem presença a mais, presente de mais. Sente-se a luz a passar nos dedos, as casas a encolher. É preciso então orientar o tempo, traçar um caminho, azangar um fosso, seguir uma formiga, caminhar só.
Louise Warren
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…
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.
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“Perguntas em forma de cavalo-marinho”, Carlos Drummond de Andrade [em “Claro Enigma”].
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SÍSIFO
Recomeça...
Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças...
~ Miguel Torga
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