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Até o céu acende e apaga
Colunata anda rareada, mas agora chega antes ou atrasada? Depende do ponto de vista, sempre.
Agradeço a cada par de olhos, seja seu par em pleno funcionamento (uma dupla vigilante), capengantes talvez (pois sabemos que o tempo nos leva a acurácia da retina e nos embaça o cristalino) ou mancos como o meu – o importante não é ser capaz de ver, mas ser capaz de pensar sobre o que é possível de ser visto ou sentido.
As colunatas vão dar um espacinho para outros projetos – não se assuste se reaparecerem como quem prega uma peça: bu! Não vou prendê-las: ideias não respiram em cárcere privado – são espíritos livres e já temos compromissos demais.
Se um texto surgir e me tirar a paz, postado de joelhos para ser compartilhado, chegará no seu e-mail. Não sou carrasca da minha escrita – há tempos fazemos gente para isso (chamados de “críticos” ou diluídos em pessoas de “opinião”).
Gostaria de lembrar que as colunatas contam com uma equipe formada pela escritora aqui, eu, Carol Padovani, que escreve, revisa, faz a arte, posta, responde as mensagens, paga por cada livro que lê, trabalha como psicoterapeuta e neuropsicóloga clínica, dá aulas e supervisões, tem rotina de treinamento de atleta (com tudo o que isso envolve) e ainda tem vida pessoal, acredite (com perrengues para ilustrar documentários escabrosos).
Se saber desses detalhes não sensibiliza você... fique uma rodada sem jogar, de preferência conversando com alguém, pois tudo indica que o seu umbigo está furtando energia do seu cérebro – que é o nosso coração com olhos, único órgão habilitado a nos possibilitar respeitar os vizinhos de planeta (empatia é processo de desenvolvimento constante e ajuste finíssimo).
Digo mais sobre as colunatas. Penso que a vida é esse lance mesmo, um remanejamento de pó de estrela, jogado de lá para cá, passando poeira de um para o outro. Até o céu acende e apaga.
Meus votos aos que me leem: que o ano que vem vindo aí... seja um ano para transformar. Transformar primeiro a nós, que é o mais difícil e exatamente por onde devemos começar.
Bom, depois dessa trabalheira das grandes, quero crer que o resto vira peixe pequeno e, como dizia mamãe: “por si se ajeita”.
Feliz 23!
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Uma cegueira caleidoscópica
Indo no contrapelo do corriqueiro, Saramago criou uma cegueira branca[1], pois há que tempos a cegueira é tida por espécie de breu, trevas da cor do carvão, da tinta de nanquim.
Nesse assunto, por experiência particular, me oriento com a maioria: digo que provavelmente é assim mesmo.
Pois saiba que, por desprendimento das minhas retinas, que capengaram feito papel de parede mal colado (e realmente o termo técnico é “descolamento”) perdi a visão total de um dos olhos: do esquerdo, só me aparece escuridão.
Não se preocupe que meu cérebro compensa a vista manca. Como? Conferindo plenos domínios ao lado apto ao cargo. A gestão do nosso corpo, na parte em que não nos metemos, funciona que é uma beleza.
Tomando a duplicidade da relação entre os olhos e a arquitetura do cérebro, mais uma informação para colocar à folha: os feixes do nervo óptico saem de cada uma das órbitas, cruzam pelo meio (na altura das orelhas) e mandam o que estão vendo tudo invertido, de ponta-cabeça, do avesso (para uma região próxima da nuca).
É de responsabilidade do guichê seguinte botar todo o registro em ordem e com sentido. Pensa numa trabalheira, mas ela tem sua razão.
A duplicidade de que somos constituídos nos serve à proteção.
Dois gametas engendram um embrião com duas cargas genéticas e, de lá para cá, dois cromossomos sexuais, dois braços, duas pernas, dois olhos... Sim, sei que no miolo temos uns caras unitários, uns órgãos solteirões, mas me acompanhe no raciocínio pegando o cérebro de exemplo.
Contamos com dois hemisférios cerebrais, conectados pelo corpo caloso. O cérebro direito é mais artístico, imaginativo e o esquerdo é mais linguístico, lógico e essas duas bandas se complementam – evidente que estou sendo simplista como quem tem a palavra num jantar com gente desconhecida e usa termos de amplo alcance.
Veja (verbo propício) que o duplo é uma maneira de compensar erros – por isso falei em proteção. É uma estratégia selecionada ao longo da evolução uma vez que ela passou a aumentar as nossas chances de sobrevivência.
Mesmo com o duplo ainda dá ruim, sabemos. Às vezes a mitose tropeça, envia cromossomo a mais, a menos, quebrado, frágil... às vezes a vida nos humilha sem cerimônias, tira-nos um joelho, um ouvido, uma retina, um emprego, uma pessoa querida. Pode acontecer de um tudo e misturado, porque problemas andam a panelinhas, como bandos de adolescentes – ora, não trago nenhuma novidade, estou ciente.
Com minha imaginativa em ação, maquiando o meu comportamento de ladrão que rouba ladrão, cato a metáfora da cegueira do Saramago: a nossa atual não é de leite nem de piche, mas multicolorida, fragmentada e esmigalhada – ela é caleidoscópica[2].
Observe: as redes sociais não se assemelham a um mar de cacos coloridos? De um descabimento perceptivo que coloca fermento no nosso cansaço. Já reclamou de vista cansada? A quantidade de estímulos foi intensificada além do que podemos ver numa condição normal, no concreto do dia a dia.
Apesar de ser uma cegueira de cores variegadas, como toda cegueira, arremessa o indivíduo num mundo apenas de tempo, de tempo presente.
Julgo ainda que esse exagero de percepção tem uma inconveniência a mais.
Segundo o neurologista Oliver Sacks, os processos perceptivos-cognitivos não são meramente fisiológicos, são inclusive pessoais, porque não se trata exclusivamente de um mundo que o sujeito percebe, mas se trata de seu próprio mundo[3]. Ou seja, como se percebe e como se entende o que se vê formam a nossa identidade individual.
Tenho a impressão de que as redes sociais fornecem um sistema que ocupa espaços internos (da cabeça mesmo) e tempos inteiros – sistema que, no fim, neutraliza nossa capacidade de pensar e de ver, pois pensar é um tipo de visão muito especial.
Ver “o quê”? A pergunta é “quem?”: quem vê quem hoje?
Não podemos esquecer que a vitrine das redes sociais é dissimulada, uma mentirosa das boas, pois no fundo não enxergamos o outro, tampouco nos vemos, apenas queremos ser vistos.
Há outro detalhe. Quem não aparece nas redes, parece que não existe – ou suspeita-se de que tenha algo a esconder. Com os cegos convencionais passa-se semelhante: as pessoas não estão presentes se não falam ou, se estão silenciosas, há risco de estarem aprontando, como o sabem as mães.
Mas quem enxerga alguém hoje? Quem se enxerga bem hoje?
A lorota nem é minha. Celular na testa, lanterna acionada e direcionada para o céu, pedindo intervenção extraterreste. Para além do fato físico da luz ter seus limites, seria melhor para nós que não nos enxergassem para evitar virarmos chacota intergaláctica – convenhamos, que papelão, homo sapiens. Como diria mamãe: “vê se te enxerga!”.
Volto ao duplo de novo (a brincadeira foi inevitável).
O trato com a alteridade é um jeito capaz de compensar nossas ideias mancas, calejadas de uso e reuso. Só que essa alteridade, isto é, esse outro precisa poder interagir conosco...
Progressivamente minando o tradicional contato com o outro, estamos sendo induzidos a severas incompreensões. Estamos cegos com os olhos sãos.
Tudo está intacto: íris, retina, cristalino, mácula, nervo óptico, cones e bastonetes – menos a educação, a empatia, o zelo. Tudo isso aí está com defeito, pois requer um duplo para funcionar.
Sem um par de gente, um mínimo de dois exemplares, não tem razão para ser educado, empático e afetivo, pois nada disso é efetivo com o próprio umbigo, mesmo que você considere que o seu seja o centro do universo.
Se acho que nossa visão vai melhorar? Não quero dar esperança sem fundamento e depois a vida vir para me desdizer. Um historiador otimista, nunca vi. Mas ele pode ter me alcançado pelo meu lado cego.
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[1] José Saramago, Ensaio sobre a cegueira.
[2] Caleidoscópio (ou calidoscópio): pequeno instrumento cilíndrico, em cujo fundo há fragmentos móveis de vidro colorido, os quais, ao refletirem-se sobre um jogo de espelhos angulares dispostos longitudinalmente, produzem um número infinito de combinações de imagens de cores variegadas. Em sentido figurado: sucessão rápida e cambiante (de impressões, de sensações). Fonte: Dicionário Aurélio.
Aproveito e dou a definição de variegar: dar cores diversas a; matizar; diversificar, alternar, variar.
[3] Oliver Sacks, Um antropólogo em Marte.
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Queria ver Epicteto manter a serenidade hoje
O estoicismo anda dando as caras por aí.
Repare na sua rodinha de conhecidos – fui anacrônica, ainda bem que notei rápido: timeline é o termo moderno, correto?
Por lá, alguém já “se encontrou” estoico[1]? Não digo de só repostar frase de Marco Aurélio, que é coisa fácil, pá-pum.
Digo de gastar dedo com legenda para atestar dedicação no controle das emoções, na indiferença ao prazer e na prática das virtudes, tudo em conformidade ética com a natureza, claro.
Essa é a receita dos estoicos (e neoestoicos) para uma vida serena, plena e feliz.
Não ria.
Não convém contra-argumentar a respeito da intenção de alcançar uma vida plena e feliz nos dias em que vivemos. Ademais, boas ou ruins, verdadeiras ou fictícias, sabe-se que a maioria das intenções carreiam para o mesmo lugar.
Epicteto foi um grande filósofo do estoicismo. Olhe um de seus conselhos:
“Diga a si mesmo: ‘Lidar calmamente com este aborrecimento é o preço que pago para ter minha serenidade interior, para livrar-me de perturbações. Não se consegue nada de graça’”[2].
Pois bem, Epicteto, hoje não se consegue nada nem pagando.
Ligue no banco, na operadora de telefone, na empresa responsável pelo aporte energético de sua residência: a gravação finge digitar para procurar nosso cadastro. A tal da inteligência artificial nos convoca a uma espécie de idiotia que devemos adquirir.
É de um descabimento sem precedentes. Nessas ocasiões, meus neurônios têm ímpetos suicidas diante de fendas sinápticas – pudessem elas valer como abismo, eles se arremessavam e quem restar que se vire com o suprimento de neurotransmissores.
Temos opções? O algoritmo oferece um cardápio que não tem o item que resolve o nosso problema. Às vezes faz pior: fornece link de acesso para quem entra em contato por falta de internet. Acessa como, criatura? Quero crer que é o senso de humor peculiar dos programadores. Piada boa para todo mundo é raro de alguém conseguir contar, não é mesmo?
Tem mais. Nada funciona. O serviço de atendimento não atende o cliente. Agenda o serviço que não presta, cancela sem informar.
Nem falo dos nossos dados: estão roubando nosso tempo. Reclama-se com quem? Até para reclamar há consumo de horas e produção de suco gástrico como se fosse para fazer ponche de festa no estômago – para ser servido de concha em copinhos coloridos, bem estilo americano, sabe?
Nada se resolve com tranquilidade. Depois de muitos robôs, finalmente um ser humano?
Agora requer gritaria, empunhadura de voz. Tem que demonstrar disponibilidade para a pugna. Eis que tudo se resolve, sem nenhuma novidade, nenhum procedimento foi alterado, nenhuma rota foi cortada – apenas o seu estado de espírito encapetado é capaz de abrir portas.
A tecnologia é uma benção equívoca: nunca sei se veio de cima ou de baixo – é uma disputa de jurisdição das mais ferrenhas.
Não é por acaso que do Direito se cai na Saúde Mental. Não vou dar o nome da doença que a situação me lembra porque não gosto de usar quadros psiquiátricos como metáforas. Levo a sério entidades nosográficas – atrás delas tem gente doente e sofrimento –, mas convenhamos que o sistema da pós-modernidade é de enlouquecer.
Como é a insanidade pós-moderna? Progressivamente ficamos apáticos e retraídos.
Nem passamos pela melancolia ou mania e não acho que seja por pressa.
Aos poucos e então de repente, ocorre uma deterioração da personalidade: a mente pensa diferente, sente diferente, perde a vontade própria (passa a ser influenciada), o corpo fica catatônico, altera-se a memória e a atenção.
O senso de perseguição também pode aparecer. A pessoa recebe um comentário e julga que é a opinião de uma manada.
A publicidade – que agora é homem a homem –, pode dar a sensação de pensamentos roubados. Não é alucinação, é algoritmo: é a machine learning da inteligência artificial no encalço da nossa idiotia em processo avançado de aquisição.
Parece que há um adoecimento que ainda não é doença – ainda.
Como o início é insidioso não nos damos conta. Melhor criarmos logo um consórcio estoico.
Referências bibliográficas
Epicteto. (2018). A arte de viver. Rio de Janeiro: Sextante.
[1] Que dureza não acentuar, mas é a nova grafia, alterada pelo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] (2018, p.39).
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Crise na educação social
Há tempos reconhecemos que pessoas autistas enfrentam dificuldades nas relações sociais recíprocas.
Por essa razão, parte considerável dos programas terapêuticos destinados a essa população trabalha em prol da adoção de comportamentos adequados no âmbito das habilidades sociais.
Assim, especificamente direcionados para condutas socialmente esperadas, esses programas tratam com itens básicos como distância na interação social (que gira em torno de um metro de distância, ou seja, o tamanho de um braço esticado paralelamente ao chão), não falar tudo o que vem à cabeça (sinceridade demais nunca combinou com boa socialização) e esperar a vez numa conversa (o que chamamos de “troca de turno”).
No geral, tais programas são voltados para autistas verbais e fora da faixa de deficiência intelectual (o que é minoria, diga-se de passagem).
Agora parece que temos de estender esses programas para mais gente que, apesar dos comportamentos muito semelhantes que apresenta, não se encontra clinicamente dentro do espectro autista. São, portanto, normais, mas socialmente mal-educadas. E há fortes indícios de que elas não têm a menor noção disso.
Do ponto de vista das avaliações clínicas, existem menos inventários e questionários sobre empatia e habilidades sociais que as críticas que posso fazer a respeito deles.
Para dar um gostinho ao leitor curioso, um exemplo do tipo de crítica que faço: a aplicação de linguagem metafórica quando o respondente está em investigação para autismo e, pasme, autistas têm dificuldade com linguagem metafórica (quem constrói o instrumento não se coloca no lugar do sujeito de pesquisa: pois é, acontece muito do pesquisador falar sobre empatia e não a usar).
Empatia não é apenas a capacidade de se colocar no lugar do outro, mas a habilidade de perceber estados emocionais no outro. E ter empatia não quer dizer ser “empático” como se costuma pensar no senso comum.
Psicopatas têm o que chamamos de “empatia fria”: percebem o sofrimento alheio, entretanto apenas não ligam ou o usam com satisfação. Em contrapartida, a “empatia quente” é aquela que gostamos de valorizar: evitar que o outro sofra porque, por sermos todos humanos, sabemos o que é sofrimento (no geral, tende a valer a ideia de não fazer ao outro o que não queremos que façam conosco).
Voltando às avaliações, no Inventário de Empatia (IE) temos uma série de afirmações a respeito de diversas situações sociais acerca das quais o sujeito respondente deve informar como lida com elas, atribuindo uma pontuação de frequência. Vou pinçar algumas dessas afirmações.
“Quando faço um pedido, procuro me certificar de que este não irá trazer incômodo à outra pessoa”. Pare e pense: quando foi a última vez que alguém ignorou completamente a ideia de esperar? Sei, algo em torno de cinco minutos e ontem, não muito além. Fazer um pedido a outra pessoa não é usar um aplicativo de comida: a outra pessoa pode estar ocupada, pode se sentir incomodada com o pedido e pode, acredite se quiser, não querer acatar o nosso pedido.
Outra afirmação do inventário vai nessa linha. “Se eu fizer um pedido e receber uma negativa, procuro entender as razões do outro, mesmo me sentindo frustrado(a)”. Entender que o outro pode nos dizer “não” deveria valer ouro, mas alguém lembra se isso já aconteceu com a gente?
“Costumo me colocar no lugar da outra pessoa quando estou sendo criticado, para tentar perceber os sentimentos e razões dela”. Uma das mentiras mais batidas é que existem humanos que gostam de críticas. Ninguém gosta. Precisa de tempo digerindo as negativas. Primeiro odiamos a pessoa que nos critica; depois, bem depois, uma das últimas coisas que fazemos é pensar sobre o que a outra pessoa sente e quais são suas razões para nos criticar.
“Ao ter que fazer um pedido a uma pessoa que está ocupada, declaro o meu reconhecimento do quanto ela está atarefada, antes de fazer o pedido”. A percepção de informações no ambiente é fundamental para nossa sobrevivência e para a empatia funcionar.
No caso de querer se manter vivo, o ser humano precisa ser capaz de verificar se o semáforo está verde para pedestres antes de atravessar e ainda checar se não tem um contraventor na via prestes a ignorar as leis de trânsito.
O mesmo serve para falar com pessoas. Devemos observar as condições em que elas se encontram: a pessoa realmente está disponível? “Antes de desabafar meus problemas com um amigo procuro me certificar de que ele está receptivo a me ouvir”.
E intimidade leva tempo. O que vemos com frequência são atitudes inconvenientes. Um dos maiores exemplos são os toques corporais.
Corpo tem limite estendido para além da pele, recorda? Uma braçada de distância – aproximação menor que isso requer intimidade. Espaço pessoal precisa ser respeitado. Não se pode esquecer que a qualidade de ser touch refere-se à tela do seu celular, do seu tablet, não à pessoa que sequer sabe o seu nome (e imagine qual será o interesse dela em saber a temperatura da sua mão?).
“Antes de expressar a minha opinião sobre algo com que não concordo, eu procuro compreender o lado de todas as pessoas envolvidas”. Em tempos de disputa eleitoral nem preciso dizer que olhar para o outro lado requer uma virada de pescoço que o torcicolo polarizado não permite.
Ataques verbais ou grosserias podem buscar serem disfarçadas com a fala “ah, era brincadeira”. Convenhamos que colocar algodão nas pontas não minimiza a furada do alfinete.
Temos programas para o desenvolvimento de habilidades sociais em autistas, mas como educar adultos normais?
Talvez sinalizando o desconforto. Comece pelo sutil e observe a resposta da outra pessoa.
Não adiantou? Utilize a clareza e objetividade que usaríamos com alguém que simplesmente tem dificuldade de perceber sinais sociais – como um autista.
E não se esqueça que, além do povo sem-noção, existem os psicopatas – muito mais resistentes aos manejos pedagógicos.
A esperança não tem um dia de sossego, eu sei. Com o povo sem-noção temos alguma chance, porém requer trabalho duro de uma equipe extensa, ou seja, de todos nós. Quem faz vista grossa acaba como cúmplice.
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Era uma vez todas as vezes
Como a nossa linguagem evoluiu?
Momento para embaraço – ah, já deveríamos estar acostumados em passar vergonha com a nossa espécie – pois supõem os darwinianos que, nos primórdios, lá na lasca das pedras, tempo dos pés rentes à fogueira, nossa fala vingou frondosa pela semente da fofoca.
Existe cola social mais potente para unir dois exemplares dos nossos do que falar de um terceiro? É uma Bonder que dispensa geladeira – acessível à mão (à boca e aos ouvidos) em caráter vitalício.
Não é só fofoca, convenhamos.
Os fuxicos têm seus enredos, principiados por suspenses, atrelados a reviravoltas e por onde se escamoteia a linha editorial do mexeriqueiro. Somos bichos gamados em histórias. Elas entregam a verdade dos outros ou a nossa?
Alegam os darwinianos que, tendo o bando ao redor do fogo, comida girando no espeto, contávamos os feitos nas caças, criávamos intrigas entre nós e os espíritos malignos – oras, como bichos sabidos, só podíamos ser ludibriados e prejudicados por forças negativas das mais poderosas.
De longa data que o acaso não é digno de mérito. Antes sem internet, sem podcast, o mote não era o “auto melhoramento”: alguém tinha de intervir em nossa defesa, mesmo que de forma atrapalhada ou até ambígua.
Não se engane: de maneiras diferentes, a vida sempre foi difícil.
Íamos a oráculos em busca de adivinhações. Depois nos agarramos em deuses benéficos para fazer parcerias do tipo “se eu fizer o bem, você me agracia?”. O mercado das virtudes segue aquecido.
Enquanto nos debatemos com o mal e as calamidades, é de suma importância aparecerem os heróis. Como coragem é raridade, rápido as façanhas ficam batidas e precisamos de outros assuntos.
No miudinho do dia a dia, continuamos no lance de comentar sobre uns e outros. Afinal, o mal também é nosso vizinho – de caverna, de cerca, de parede, de perfil em rede social.
Eis o nosso caldo: somos cozidos com muita superstição, ladainhas e fofocas.
Há dificuldade maior do que se abster de nossas narrativas? Quem já se embrenhou em terapia sabe bem do que falo.
Temos narrativas que, com razoável frequência, sequer nos damos conta, mas que justificam (mesmo que de forma capenga) os nossos comportamentos: amenizam ou retiram a culpa (e até a responsabilidade) – tudo depende de quão vítima o nosso papel está no roteiro, pois o bacana de ser vítima é ganhar imunidade. O mal são os outros, certo?
Problema que não existe discurso neutro. Narrativas se esbaldam em nossas premissas e princípios. Atuam como guias, mapas e crivos – nos orientam e prescrevem o certo e o errado. E nos confundem, claro.
Assim que era uma vez a mesma história, todas as vezes. Só não enjoamos porque somos, se não o personagem principal, certamente o roteirista. Narcisismo e fofoca nunca nos faltaram no drama.
Sugestão de leitura
GIGLIOLI, D. (2020). Crítica da vítima. 3ª ed. Belo Horizonte, Veneza: Editora Âyiné.
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Às vezes falta-nos o erro grave que abre uma porta
Túlio acordou como de costume. Não lhe escapou sequer um hábito: varreu os dentes, banhou-se, vestiu-se para o trabalho. Sentou-se à mesa para o café da manhã. Lourdes seguiu-o como quem nada na raia ao lado. Verdade que estava mais quieta – era expectativa, logo entrego o motivo. Todos temos os nossos afazeres.
Para não estafar o leitor e a troco de acelerar o suspense, atravessou-se o dia. Túlio e Lourdes voltaram para casa, calçaram os chinelos e o casal jantou. Enquanto Lourdes conduzia a louça à pia, Túlio teve agilidade de gato. O primeiro som audível surgiu no inevitável raspar do fósforo. Lourdes virou-se. Uma vela iluminava um bolo, daqueles bonitos de festa. Túlio segurava um pacote com laço, sorridente feito criança que acaba de aprender a amarrar os próprios sapatos.
Lourdes deparou-se com a cena. Num autocontrole espetacular, devolveu as costas inexpressivas, mas revelando muito. Voltou-se novamente para pia. Túlio apagou a vela, largou o pacote. Começou a gritaria de parte a parte. O que aconteceu?
Túlio queria corrigir o ano anterior. Para Lourdes, a surpresa não o absolvia. Gastou o dia remoendo que o marido havia esquecido – como sempre, era o que repetia. É preciso reconhecer que cada um reage ao próprio aniversário com seu quinhão inseparável de traumas e manias. Por seu lado, Túlio gastou a semana preparando tudo para não ser descoberto – oras, disse ele, surpresas não ocorrem assim?
Foi como o estalo da chama do fósforo. Lourdes percebeu o erro. Doeu-lhe fundo, porque o amadurecimento dói como um luto – é crônico, contínuo e vez por outra dá pontadas das mais doloridas.
Lourdes rompeu em choro de amolecer carrascos. Túlio deduziu que esquecimentos anteriores, não só o seu, a magoaram perpetuamente. Assim, ambos passaram da fúria à melancolia.
“Se não ficamos a todo momento constrangidos com quem somos, é porque a jornada de autoconhecimento ainda não começou” (BOTTON, 2017, p. 242).
Não bastasse o suposto deslize de Túlio, Lourdes tinha repertório mental coletado em diferentes stories de declarações de amor das mais pomposas, cheias de glitter e likes. Criticou o marido para todas as amigas. Recebeu doses de outros venenos para encorpar o seu.
Pensou em tudo – traição, separação, terapia de casal. Mas ali deu nota do exagero: como encontrando um caroço em uma uva Thompson, achou que ia se engasgar, então culpou o agricultor quando era suficiente cuspir o caroço e comer a uva. Vamos ser sinceros que o cotidiano não é para amadores e nunca será fácil a despeito do que podem alegar os especialistas.
Ninguém em sã consciência jura lealdade a ações na bolsa, mas com muita rapidez nos enganamos tentando operar pela lógica da contabilidade nos relacionamentos, como se amar e ser amado fosse uma transação comercial ou o resgate de pontos do cartão de crédito. Pelo menos Túlio contou com essa ideia: a surpresa traria saldo positivo.
Somemos ao caso que vivemos na época do desempenho. Os projetos de aperfeiçoamento multiplicam-se. O melhoramento de si mesmo, escreve Byung-Chul Han em Sociedade do Cansaço (2017), chega ao ponto da autoexploração e não aceita sentimentos negativos. Em tudo: no trabalho, nos estudos, nos relacionamentos, na criação de filhos, o erro virou um abominável. Qual o problema de Túlio e Lourdes?
“Faltava-lhes o peso de um erro grave, que tantas vezes é o que abre por acaso uma porta” (LISPECTOR, 2020, p.79).
Ninguém faz o ideal, mas o possível é que é feito. E comprometer-se é encarar a repercussão dos erros. Depois da treta, pasme, houve até festa. Como fizeram as pazes?
Não era a primeira discussão do casal e certamente não será a última. Porém, revelado o quanto são capazes de decepcionar um ao outro, Túlio e Lourdes andam tentando julgar o que é e o que não é essencial, o que é e o que não é importante. Qual a receita?
“Isso eles o faziam a modo deles: com falta de jeito e de experiência, com modéstia. Eles tateavam” (LISPECTOR, 2020, p.76).
Moral da lorota: errar pode levar a um resultado que não se calcula.
“Podemos afirmar que começamos a entender alguém apenas quando essa pessoa nos decepcionou muito. Porém, os problemas não são apenas delas. Quem quer que venhamos a conhecer, será bastante imperfeito: o estranho no trem, a velha conhecida da escola, o novo amigo virtual... Cada um deles com toda certeza virá a nos decepcionar. Os fatos da vida deformaram nossa natureza. Nenhum de nós saiu ileso, todos fomos (necessariamente) criados de maneira aquém do ideal: brigamos em vez de explicar, implicamos em vez de ensinar, irritamos em vez de analisar nossas preocupações, mentimos e atribuímos culpa onde não existe” (BOTTON, 2017, p. 240).
Referências bibliográficas
BOTTON, A. (2017). O curso do amor. 1ª ed. Rio de Janeiro: Intrínseca.
HAN, B. (2017). Sociedade do Cansaço. 2ª ed. Ampliada. Petrópolis, RJ: Editora Vozes.
LISPECTOR, C. (2020). Felicidade Clandestina. 1ª ed. Rio de Janeiro: Rocco.
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P.S.: Por falar em erro, na colunata passada troquei letras, escrevi “inume”, mas era “imune” =D
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A cinta sumiu
Convites para eventos sociais são de chacoalhar nossos neurônios. A estrutura de cada um responde pela gravidade dos estragos. Os casos inumes a tais abalos sísmicos requerem estudo com lupa – e está aí uma amostra de sujeitos da categoria dos unicórnios: nem o pesquisador mais obstinado consegue coletar um n[1] suficiente.
Sem fugir à maioria, os axônios de Dulce andavam dando nó e curto depois de confirmar presença em chá revelação de uma colega de escola.
Contabilizou os dias que antecediam a festa e traçou plano de manter-se a gelo e alface, orando por adquirir habilidades de clorofila para ter energia de fotossíntese para sobreviver e entrar em um vestido inversamente proporcional à sua vaidade.
Não sei quem percebeu, mas o homem é capaz de cavar um poço numa caixa de areia de gato à procura de água.
Dulce foi no encalce de uma blogueira fitness. Modificou a lista do mercado. Adotou o jejum matinal e a esteira. Ganhou tontura e mau-humor, mas alegou labirintite. Dulce não seria nem a primeira nem a última pessoa a fazer uso de desculpas esfarrapadas.
Dois longos dias de sufoco e um número menor apareceu na balança. Tudo indicava que a vitória era certa até Dulce receber um feedback daqueles “não-positivos” no trabalho: pasme, a vizinha de baia foi promovida em seu lugar.
Tal como desgraça nunca é pouca, fatia única é bobagem. Dulce poupou o prato, porém o bolo desapareceu inteiro, como um abduzido. A blogueira não mencionou – se é que sabia – que restrição alimentar potencialmente acarreta compulsão como espécie de efeito rebote porque afeta nosso sistema de saciedade. Mas falar sobre isso seria quase uma heresia no mundo dos milagres.
As informações nas redes sociais criam e sustentam um sistema de crenças em formas de obter resultados que a realidade da vida insiste em não se adequar.
Bom lembrar que as mudanças em si mesmo, quando levadas muito a sério, são perigosíssimas.
A blogueira garantiu que bastava querer. Dulce embarcou em reflexões modestas sobre seus atuais resultados mediante a ótica míope dos últimos fracassos.
Concluiu que era auto boicote. Nem por isso o contratempo era culpa dela. Tudo fora intrinsecamente forjado pela sua história pessoal. A culpa elementar era dos seus pais por sua relação (que julgava patológica) com a comida. Nesses tribunais, acontece de os pais escaparem alguma vez?
Como doença também costuma isentar de responsabilidade, Dulce chegou aos comprimidos. De lá para cá foi de enxaqueca, gastrite e recebeu duas codificações na CID[2] – uma para o combo desatenção e impulsividade, outra para o desânimo. Em duas semanas tinha mais sintomas que dedos nas mãos. Como não saiu da internet, descobriu mais outros para não fazer ciúmes aos dedos dos pés.
Não é mera coincidência. Alguns problemas aparecem à medida em que são conhecidos.
Tem mais. A nossa memória é de uma seletividade relapsa.
Houve a moda das cintas que prometiam reduzir barrigas – não momentaneamente, mas a médio prazo.
As cintas tinham colchetes de titânio e barbatanas que não faziam menos que nenhum exoesqueleto visto neste planeta.
Em seguida seu uso foi acoplado a cremes que geravam vermelhidões na pele como urticárias. A ideia prometia resultados absurdos e convenceu muita gente.
Passados seis meses alguém notou que a blogueira parou de usar a cinta? Pois segure o abdômen como puder que a cinta sumiu. Na verdade, o patrocínio é que sumiu. Sei que a blogueira parecia sincera – é que amor sincero custa caro, já dizia Eduardo Almeida Reis.
Agora o que emagrece é chá que esvazia. Com novo contrato bem pago, o patrocínio mudou. A cinta virou ex.
Dulce passou esta colunata de um chá para outro. Já eu vou é correr e tomar chá de sumiço antes que essa lorota ainda sobre para o mensageiro.
Como escreveu Dalrymple, “o homem não é um animal que resolve problemas, mas sim um animal que os cria” (DALRYMPLE, 2017, p.16-17).
Referências bibliográficas
DALRYMPLE, T. (2017). Evasivas admiráveis: como a psicologia subverte a moralidade. 1ª ed. São Paulo: É realizações.
[1] N: número de participantes de uma amostra de pesquisa.
[2] Classificação Internacional das Doenças.
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O solo das expectativas pode transtornar a semente
No dia em que Jobina surtaria, havia acordado às quatro horas da manhã. Não culpe o horário. Tampouco se incomode com a vulgaridade desta notícia, quase boato em fila de padaria. Vou mesmo direto ao acontecido: Jobina surtou.
Pode alegar plágio, não me defendo: esta é a lorota de um surto anunciado[1]. Agora vamos à minibiografia de Jobina, que era para ser Jobin, afinal, a vida tem esse hábito de não nos honrar as expectativas – mas se tenta acochambrar como dá.
Na metade dos casos, como sois acontecer quando dois gametas de nossa espécie se unem para reprodução, gerou-se um tipo homogamético – aquele tal de duplo X.
Jobina podia ter recebido o nome de Elis, podia. Só que era doçura demais para cumprir destino cantado com antecedência. Na confirmação do sucesso da concepção, o pai, que tinha vocação para mandar e costume de decidir, decretou: “vai ser filho para a medicina”.
Veio filha, estamos informados, mas como se sabe desde Pandora, esperança fica no fundo do pote – se fechar rápido, não escapa.
Fatiando um tender de dar gosto ao mais obsessivo dos metódicos, Jobina permitiu ao pai pensar ter se saído bem: “boa com a faca, será uma excelente cirurgiã”.
Verdade que queria futuro seguro para a filha e, em minha falível opinião, para sua conhecida hipocondria – conforme se escutava entre aquelas mesas que soltam guias de convênio.
O pai tinha, então, preocupações para dar e distribuir. Justiça seja feita: a maioria com intenção das mais benevolentes. Como escreveu Machado de Assis, infelizmente “não é só inferno que está calçado de boas intenções. O céu emprega os mesmos paralelepípedos” (ASSIS, 2017, p.97).
Com tenaz esforço de ambos os lados, Jobina fez vista grossa ao seu apreço natural pela culinária. Alguém notou? Não acuse ninguém que nem todo gosto vira profissão.
Digo mais: não é fácil seguir o próprio caminho e é muito difícil escapar dos roteiros que recebemos na vida.
“Não significa que o futuro é fixo, mas apenas que algumas alternativas são possíveis, e outras não. Uma semente pode brotar ou não, mas de qualquer modo uma semente de nabo nunca vai originar um rabanete” (ORWELL, 2021, p.49-50).
O futuro não é fixo e a genética tem seus limites: o melhor dos solos não altera a índole da semente, todavia pode afetar seu desenvolvimento – e num belo de um tanto.
Jobina entrou na medicina para agradar ao pai e não fazer desfeita à profecia. Desde a Grécia Antiga, nenhuma novidade que as profecias costumam acabar em tragédias.
Entre gente como a gente, raramente o evento é dos grandes.
Chegou o dia em que Jobina não aguentou mais os minúsculos desgostos do cotidiano. Nós somos daquele tipo que morre e antes disso temos um monte de maneiras de nos estragar. O mundo também anda com um ar de malfeito, você deve ter percebido, e Jobina não queria o peso do risco que corria em contribuir.
Vamos ao ocorrido. Jobina acordou quatro da matina, assumiu o plantão às sete horas. Às dez, ganhou asilo político em um atestado de afastamento por burnout. Recolheu-se em casa por cinco dias. O pai estava convencido de que era enfermidade viral. Não estava de todo equivocado, há culpas da ordem do contágio e algumas calham em tratamentos perpétuos.
Não cansarei o leitor com mais pormenores. Jobina largou a medicina e foi para a gastronomia. Levou consigo um punhado de neuroses, é claro, com quem se passaria diferente? Assim se tempera a vida, misturando-se angústias e alegrias.
Jobina não deixou de tentar agradar ao pai. Descobriu que nem o alimentando com sorvete de erva-doce cravejado de amêndoas, lhe tiraria aquela cara de frustração impregnada. Mas os minúsculos gostos do cotidiano escolhido faziam Jobina sorrir.
Algum deus deve ter vindo em seu socorro?
O que eu sei é que o solo das expectativas pode transtornar a semente. Ou seja, o ambiente importa, mas não é tudo. Nada é tudo, exceto a morte que não tem meio-termo.
Há Jobinas e Jobinas. É sabido que todas as histórias diferem, mas “todos os cemitérios se parecem” (ASSIS, 2017, p.80).
Nem todo solo é destino. Nada como crescer e poder mudar de vaso. No fim, é a terra que nos espera.
Referências bibliográficas
ASSIS, M. (2017). Máximas, pensamentos e ditos agudos. 1ª ed. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras.
ORWELL, G. (2021). Por que escrevo? 1ª ed. São Paulo: Penguin-Companhia das Letras.
[1] Menção ao livro Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel García Márquez.
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Nem todo pomar produz amor
Casais à mesa costumam render boas lorotas.
Era um desses fins de almoço, enquanto a água do café era aquecida – sabem que paulista é dado a essas manias. Sem qualquer requisito ou anúncio público, pasmem, Benito engatou-se em abrir lichias para sua namorada, a fim de poupar aquelas unhas semanalmente polidas e esmaltadas.
O processo foi percebido pela irmã dela, Dora, que desembrulhava as próprias lichias instantes atrás – com cerca de meia dúzia das mais suculentas já mandadas para dentro.
De pronto, como se de susto, mas, em verdade, mais por velocidade do melindre, parou a atividade.
Gritou em direção ao marido – como se ele estivesse a léguas de distância e não justamente na mesa de nossa cena –, requisitando o mesmíssimo serviço prestado por Benito à irmã caçula. Evidente que, para o cunhado – atordoado e semi surdo pelo grito de Dora –, Benito virou um parente dos mais malditos.
Domingos têm o hábito de revelar esses grandes demônios da vida doméstica.
“Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”, assim Tolstói começa Anna Kariênina. Não é frase de se dar conta da profundidade sem boa dose de honestidade, experiência ou anos de análise e talvez sejam necessárias as três condições juntas. Fui utópica, eu sei.
Fato é que a felicidade é fácil de reconhecer e, por ser muito parecida entre os exemplares de nossa espécie, acaba sendo enfadonha em certa medida – e pouca coisa aproxima mais dois espíritos humanos que uma porção de queixumes. Porém, em termos de particularidade, nada mais distintivo que a infelicidade. Deixo então a minha versão pocket da frase de Tolstói: cada um é infeliz ao seu jeito.
Muito ajuda quem não atrapalha? Benito é peixe pequeno.
Numa pesquisa descompromissada em botecos estilizados, coletei dados que indicam que, depois de Rodrigo Hilbert, nenhum homem brasileiro e casado desfrutou um grão de plena paz conjugal. Tempos sombrios para os casais heterossexuais? Não estão sozinhos: para qualquer um que usa a internet, uma hora chega a vez.
Cobrada por todos os tipos de atitudes, da entrega total e descabida à pasmaceira das mais desleixadas, a esfera dos afetos sofre minuto a minuto. Culpa das redes sociais? A mesa do almoço é que foi esticada. Não é novidade, apenas um triste aumento da oportunidade.
De fruta vamos aos frutos.
Kierkegaard, em As obras do amor, escreve que o amor se reconhece pelos frutos, pois pelos frutos se reconhece a árvore. Claro que as folhas podem dar indícios de qual árvore se trata, todavia são sinais incertos: o fruto é a marca essencial.
Longe de mim achincalhar com a beleza desta metáfora, mas o que quis dizer Kierkegaard?
Palavras e comportamentos – também aquelas imagens com legendas fofas – são como folhas: podem parecer um sinal para o amor, acontece que são um rastro incerto.
“O próprio amor, num certo sentido, mora no oculto, e justamente por isso só se dá a conhecer nos frutos que o revelam”, tal como “a vida da planta é oculta, o fruto é a revelação” (KIERKEGAARD, 2013, p. 22).
Por ser oculto, não podemos exigir continuamente ver os frutos do amor. Como sempre temos o risco de seguir uma pista falsa, não convém, por medo do engano, deixar de crer no amor.
É o que nos diz Kierkegaard: crê no amor. Acreditar no amor é o que nos permitirá ver os seus frutos. Certo que não devemos esquecer de ter cuidado ao avistar apenas as folhas – nem todo pomar produz amor.
Moral da lorota desta colunata: quem compete por folhas, não prova dos frutos.
Referências bibliográficas
KIERKEGAARD, S. A. (2013). As obras do amor: algumas considerações cristãs em forma de discursos. 4ª ed. Petrópolis: Vozes.
TOLSTÓI, L. (2017). Anna Kariênina. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras.
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A autoestima com o nosso avatar e o caráter inconcebível dos nossos desejos
Encontro no vestiário da academia uma meia dúzia de mulheres debatendo as modificações que gostariam de fazer no corpo. Nada de pouca coisa: era um tal de corta aqui, enche ali, serra acolá.
Não venho maldizer nenhuma intervenção cirúrgica. Por estética ou sobrevivência, finda a anestesia, a dor humilhará cada um à sua maneira – seria descabido não esperar que valesse à pena. Quem já encarou um bisturi sabe que não exagero.
Não bastasse o custo de manutenção do corpo que o destino nos confere, ainda nos arrebatam desejos de muitos reparos e nem nossa mente escapa desse ímpeto de melhoria: quem não quer ser um sujeito mais produtivo, mais atento ou mais disciplinado?
Para esta ocasião, tenho uma frase boa da peça rei Lear de Shakespeare: “é comum perder-se o bom por querer o melhor” (Shakespeare, 2020, p.38).
Sei que ganharei, num futuro próximo, a fama de biscoitinho chinês, mas o que seriam destas colunatas dominicais sem seu punhado de frases roubadas?
E melhorar não é legal? Depende, e para ficarmos entre rimas, melhorar depende menos do ideal do que do real: podemos mirar em um (no ideal), mas o outro (o real) vai invariavelmente nos recalcular a rota.
Inclusive, graças às redes sociais, podemos vislumbrar o abismo instalado entre os nossos desejos e a realidade.
Claro que ninguém promete vender o impossível nomeando-o no rótulo, afinal não ornaria com a chamada da propaganda “basta querer” e quem quer pouco, hoje, é porque anda meio desconectado, já que a Internet é boa para extrapolar os limites de nossa criatividade: feito fonte, jorra cascatas de ideias de desejos – respingam até em quem lhe bate o olho muito de vez em quando.
John Gray, em Cachorros de Palha, escreve que “a Internet confirma o que há muito se sabia – que o mundo é governado pelo poder da sugestão” (Gray, 2007, p. 185). Acho que é de Ernest Becker a frase: o sádico não cria o masoquista, ele o encontra pronto – se não for dele, me perdoa e me corrige?
Fato é que somos bichos sugestionáveis e poucas situações na vida nos fabricam mais minhocas na cabeça que uma inveja das graúdas.
Com truques de luz e sombra, filtro e verbas arrojadas – sem esquecer das legendas em prol do amor-próprio – ficou fácil perturbar: cada avatar que lute para ser amado por seu dono.
Como que se ama a si mesmo? Mais um desejo da categoria dos complicados.
Minha opinião é a de Otelo, porém não se preocupe que a retiro amanhã: “nunca encontrei um homem que soubesse como é que se ama a si mesmo” (Shakespeare, 2017, p. 157). Agora como se tenta, isso podemos ver bem.
Volto a Gray: “o conhecimento não nos torna livres. Ele nos deixa como sempre fomos, vítimas de todo tipo de loucura” (Gray, 2017, p. 14), “o livre-arbítrio é um truque de perspectiva” (Gray, 2007, p. 84).
A troco de tentar equilibrar o jogo contemporâneo, que anda de um otimismo sem cabimento, trago Schopenhauer: “ninguém é verdadeiramente digno de inveja” (Schopenhauer, 2014, p.27).
Na dúvida, se aproxime, conviva que logo passa (a dúvida e a inveja).
Mais de Schopenhauer – ainda será pouco para igualar o placar: “o mundo é o inferno, e os homens dividem-se em almas atormentadas e em diabos atormentadores” (Schopenhauer, 2014, p.28) e “cada um é o diabo do seu vizinho” (Schopenhauer, 2014, p.37). Eu sei, você sabe
Hora de encerrar a colunata.
Tenho comigo que o Dr. Frankenstein, se não foi precursor do Instagram, algum dedinho colocou lá (trocadilho infame, percebi, bem a minha cara). Oportuno lembrar aos Prometeus modernos que o médico criou um monstro, não uma pessoa?
Referências bibliográficas
GRAY, J. (2007). Cachorros de palha: reflexões sobre humanos e outros animais. 5ª ed. Rio de Janeiro: Record.
SCHOPENHAUER, A. (2014). As dores do mundo: o amor, a morte, a arte, a moral, a religião, a política, o homem e a sociedade. São Paulo: Edipro.
SHAKESPEARE, W. (2020). O rei Lear. Porto Alegre: L&PM.
SHAKESPEARE, W. (2017). A tragédia de Otelo, o Mouro de Veneza. 1ª ed. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras.
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Num piscar de olhos
Período de eleições. Momento para nossos despautérios tomarem proporções de assuntos a serem esmiuçados por especialistas e mequetrefes – difícil dizer quem é quem quando todos despontam no horizonte tal qual predadores, salivando pelo palco, sedentos por aplausos.
Período conhecido para ter amizades à prova, participar de almoços dominicais acalorados e para protagonizar saídas barulhentas de grupos de Whatsapp – tivessem eles portas, certamente as bateríamos, no alvoroço de que é capaz o nosso interno pubescente que conversa apenas com nosso terapeuta e arruma conflitos com todos.
Período também de zombarias, os tais dos memes, vocês têm visto?
Dei com um que mereceu uma coluna. Composto por dois vídeos, recortados de um debate com candidatos, havia à esquerda, uma mulher e, à direita, um homem. A legenda fazia menção ao controle das pálpebras da moça: a velocidade de suas piscadas trouxe para análise a sua condição psicológica. Análise, não, estou sendo gentil. A palavra é “diagnóstico”.
Andamos em tempos de vigilância ferrenha da nossa saúde mental. Todos muitos versados em bater os olhos – não resisti ao trocadilho – no gingado das pálpebras alheias e saber do que se trata. Piscar ou não piscar, Shakespeare, eis a questão do contemporâneo.
Deixo para a poesia falar em janelas da alma, mas fato é que os olhos são os queridinhos da psicologia no campo dos estudos das percepções. Por quê? Porque, dentre os outros receptores de informação, calha de ser o mais fácil de pesquisar. Mesmo assim, ainda temos chão para entender todos os processos envolvidos.
Seguimos tentando, como quem tateia objetos numa sala escura. Alguns estudos que buscam refinar o diagnóstico de autismo têm se debruçado no exame chamado de eye tracking[1], ou seja, técnica para aferição do posicionamento dos olhos frente a estímulos específicos – o termo é comportamento ocular (do inglês, gaze behaviour).
O pressuposto para aplicação desse tipo de exame é que a maneira como os autistas rastreiam informações é diferente – em todos dos sentidos seu processamento de informações é incomum, é válido dizer – sendo o olhar o receptor mais acessível aos nossos aparatos tecnológicos, portanto acaba emergindo como o mais utilizado.
Animados? Abram os olhos, leitores, tanto as crianças surdas quanto as cegas também movimentam os olhos de forma não usual. Por que ainda achamos que diagnóstico em saúde mental se faz num piscar de olhos?
Ademais, alguns estudos não encontraram diferenças significativas entre autistas e o grupo controle, muitos outros apontaram que há formas de processamento distintas entre crianças e adultos (a percepção visual desenvolve-se com a idade) e, para encerrar o assunto técnico, que a natureza do estímulo afeta o comportamento ocular.
Voltemos ao meme. A legenda alegava que a mulher estava nervosa – num estalar de dedos qualquer mulher partilha a fama de D. Maria I.
Não sei se quem escreveu o texto do meme já usou lentes de contato em ambientes climatizados para pinguins. Não fosse o bastante ter o ar-condicionado posicionado na versão “frigorífico”, simultaneamente vamos recebendo canhões de luz na cara – quem tem experiência com gravação em estúdio não me deixa mentir.
Evidente que não sei se a mulher do meme usava lentes de contatos, então parti para outras hipóteses, como pozinho de maquiagem esfoliando a córnea ou aquelas micro vassouras que chamamos de cílios postiços – em mim, pesam que é uma desgraça.
Estou longe de ter resposta para o enigma das piscadelas, mas bater o martelo que era nervosismo da moça, nem cogito. Continuo na minha de pensar que nada melhor do que perguntar. Se olho falasse, não se precisava de boca – esta frase só não é mais lamentável que os diagnosticadores de Instagram e eles não estão sozinhos.
Pois na mesma semana do meme, recebi de uma amiga uma lorota das boas. Em reunião de discussão de caso clínico, uma psicóloga aventou possibilidade de autismo num sujeito que olhava fixamente e não piscava.
Eu ri lembrando a ela de que psicopatas, idem. Na verdade, a literatura há anos relata que autistas têm dificuldade com contato visual direto, mas eu posso estar no acervo bibliográfico errado. Inclusive, tenho livros que contam que psicopatas olham fixamente para nós porque não se intimidam. Vale acrescentar que o caso clínico era de violência doméstica? Podem visualizar uma piscadinha minha.
O senso-comum diz que quem mente, não olha nos olhos, mas pelo visto quem procura mentira, olha. Bentinho endoidou tal como um Otelo, caçando pistas e mais pistas de traição nos olhos de ressaca de Capitu[2].
Conselho que daria aos Bentinhos por aí: nem o polígrafo consegue detectar mentiras[3], por que estamos a nos arriscar pelas pálpebras?
[1] Eye tracking e autismo: Prejuízos no processamento de informações há muito tempo são descritos em autistas, dentre eles, um muito estudado é o processamento de informações sociais, como a análise da face humana. Existem agora equipamentos que permitem registrar o comportamento ocular com mais acurácia (Boraston, Z., & Blakemore, S. J. The application of eye‐tracking technology in the study of autism. The Journal of physiology, 581(3), 893-898, 2007).
Um dos primeiros artigos com uso de eye tracking em autistas teve uma amostra (bem da modesta) de cinco adultos autistas que, em relação ao grupo controle, gastavam mais tempo examinando a famosa zona T (olhos, nariz e boca), com poucos da amostra fixando o olhar, mas as diferenças não foram significativas entre os grupos (Pelphrey, K.A., Sasson, N.J., Reznick, J.S. et al. Visual Scanning of Faces in Autism. J Autism Dev Disord 32, 249–261, 2002).
Um artigo de revisão apontou que, contraditoriamente à sabedoria popular, o processamento de faces pode não estar particularmente prejudicado nos autistas (Jemel, B., Mottron, L. & Dawson, M. Impaired Face Processing in Autism: Fact or Artifact?. J Autism Dev Disord 36, 91–106, 2006).
Mais informações sobre o tema: Laskowitz, S., Griffin, J. W., Geier, C. F., & Scherf, K. S. (2022). Cracking the Code of Live Human Social Interactions in Autism: A Review of the Eye-Tracking Literature. Understanding Social Behavior in Dyadic and Small Group Interactions, 242-264.
Finalmente, para um apanhado sobre autismo: Volkmar FR, Lord C, Bailey A, Schultz RT & Klin A (2004). Autism and pervasive developmental disorders. J Child Psychol Psychiatry 45, 135–170.
[2] Menção ao romance de Machado de Assis, Dom Casmurro.
[3] “Apenas sinais de emoção” (Paul Ekman, Telling lies, p. 51).
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Os adolescentes e a internet: no virtual, a realidade do medo
Agradecemos por sermos adultos. É raro, mas acontece. Num relâmpago, o cotidiano de gente grande é de transportar qualquer um para nostalgias proustianas, naquele conforto quentinho do leite com achocolatado. Ah, a infância, nunca a adolescência.
Dessa última, é a terapia que se esbalda. Adulto que se preze tem cicatriz no joelho, souvenir de tombo no quintal, e uma porção de noias a ponto de ferida, com casquinha que se arranca em dois minutos numa reunião de feedback do time – feridas que costumam ser conseguidas na passagem pelo ensino médio. Aliás, ocorre-me perguntar, qualquer semelhança com a Idade Média, seria mera coincidência?
Mas como se fala mal de adolescente. Coisa de adulto. Não é à toa.
Todas as fases têm suas dificuldades, mas a capacidade de pensar sobre elas chega junto com hormônios enlouquecidos e, não bastassem eles, nascem também espinhas e crises existenciais. Tudo isso se esquece quando se alcança a Idade dos Boletos. Mas não se preocupe: quem faz terapia sabe como se refresca a memória.
Piaget chamou a entrada na adolescência de estágio do pensamento formal, balizando seu início ao redor dos onze e doze anos, quando fica possível libertar-se da concretude do pensamento anterior para se raciocinar sobre hipóteses abstratas, abrindo-se inúmeras possibilidades.
Libertar-se? Só se for para se arremessar num precipício.
“Estrutura-se um espaço percorrido e de significados que, associado a um tempo vivido, lhe permitirão estruturar os projetos existenciais que, quando escolhidos e assumidos, o farão entrar no mundo adulto. Esse período irá, assim, caracterizar-se pelas dificuldades que a abertura dessas infinitas possibilidades apresenta, com o surgimento dos mecanismos de enfrentamento, de oposição social, de construção de uma cultura própria e, principalmente, da angústia consequente ao perceber-se só enquanto ser único, responsável pelos seus próprios atos e, principalmente, artífice de seu próprio futuro com suas consequências” (ASSUMPÇÃO-JR, 2008, p. 11).
Que ninguém se engane: quem pode evitar, evita.
O adolescente é sensível e reativo ao ambiente, o que configura um risco graças à fragilidade de suas bases subjetivas. Na ânsia por ser aceito pelo seu grupo de referência, topa qualquer negócio.
Antes era meia dúzia de uma galera, uma sala, estourando uma escola toda, mas o adolescente de hoje está num descampado para ser acertado por críticas potenciais do mundo inteiro. Chamamos isso de internet.
O clima paranoico conduz a crer que é melhor estar em casa do que na rua. Criam-se hábitos eremitas e, com o tempo, atrofiam-se os sábios e florescem os vícios.
O jovem em seu quarto, seguro e dócil, virou exemplo contemporâneo batido da máxima que diz que dos vícios privados se fazem as virtudes públicas. Por quê? Porque eis o ambiente familiar harmonioso, sem divergências: cada um em seu respectivo celular.
O que acontece durante a adolescência?
As aquisições oriundas de novos modelos de pensamento são acompanhadas por alterações nas dinâmicas relacionais. Segundo Piaget, o adolescente passa da heteronomia à autonomia. Trocando em miúdos, de serzinho pau-mandado passa a serzinho ninguém-manda-em-mim. Bem, era o que se esperaria.
O encolhimento da autoridade dos pais, parte do caminho para maior autonomia, é uma das realizações psíquicas mais significativas na vida do indivíduo. Porém, com essa autoridade não precisando dar as caras – já que o jovem vai lá muito bem, quietinho em seu metro quadrado – não há resistência.
Mas a cana dá caldo depois de muitos apertos.
Apesar de alcançar uma estrutura cognitiva que permite o pensamento por hipóteses abstratas, nesse cenário de serenidade doméstica, constroem-se poucos mecanismos de enfrentamento. Na atualidade, não se enfrentam os pais e tampouco o restante. Como eu disse: quem pode evitar, evita.
O adolescente ainda é capaz de se perceber só, mas é cada vez mais angustiado pelo que acham a seu respeito. Como pensar em seu próprio futuro diante de uma plateia que se conta aos milhares? As vaias podem ser estrondosas e são.
A restrição de contatos ativos, portanto reais, restringe o espectro de experiências. Não que as críticas nas redes sociais não sejam reais. Elas são e potencializam nossa insegurança porque são capazes de minar nossa autoestima: será que receberei muitas curtidas? Amigo de verdade comenta nossos posts, inimigos também. Uma publicação e, em segundos, uma reputação é arruinada.
Por que não priorizar os jogos virtuais? Pensando por hipóteses abstratas: e se eu ficar aqui, sem me expor, apenas participando de jogos e trocando uma ideia com gente no mesmo intuito?
Pois é: das infinitas possibilidades escolhe-se a que, aparentemente, é a menos ruim.
Os jogos online permitem uma vivência social mais segura, com o adendo de possibilitarem um status no grupo que é difícil de alcançar no pátio do colégio. No jogo virtual posso ser bem aceito porque sou bom no manejo da lança – depois de morrer mil vezes e ressuscitar outras novecentas e noventa e nove.
Na realidade, aprendemos assim: por tentativa e erro. Mas com medo não tentamos. Por mais que perambulemos pelo virtual, o medo não deixa de ser real.
Referências bibliográficas
ASSUMPÇÃO-JR., F. B. (2008). Psicopatologia evolutiva. Porto Alegre: Artmed.
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Moralismo: um tipo de tara?
Amadurecer. Estou para ter conhecença daquilo que define, tim-tim por tim-tim, um adulto amadurecido. Nunca vi um exemplar dessa espécie, só que tampouco vi uma infinidade de outras coisas muito mais quiméricas. Talvez se trate de um bicho em extinção? Não sei, mas como sou míope, convém não confiar muito em mim.
Entoamos que passamos, ou que deveríamos passar, por algum protótipo de processo de amadurecimento. Para-se no meio, retoma-se, fatalmente se regride.
Como sois dizer: processo é processo – frase de agregar quilates de sabedoria numa dessas conversas do dia a dia. Uso muito para parecer que participei de algumas e, se a cortina não descer encerrando o espetáculo, serve para cavar uma saída delicada.
Virou parte da nossa moral sermos sábios, versados em todos os assuntos. Requer cuidado, como disse Max Nunes, “opinião é uma coisa que a gente dá e, às vezes, apanha”. Atente ao trocadilho, pois das ambiguidades nascem boas piadas. Se vale conselho, repense sua opinião antes de manifestá-la. Não se esqueça: processo é processo.
É que, no anonimato, cabe a cada um usar a própria consciência. Moral depende de público. Chega a ser um tipo de tara nossa.
Melhor, uma “obsessão pela moralidade”, como escreve – com mais requinte – o psicólogo Jonathan Haidt em A mente moralista: por que pessoas boas são segregadas por política e religião (2020).
Para Haidt, “a moralidade é a extraordinária capacidade humana que tornou a civilização possível” (HAIDT, 2020, p. XVI). Aliás, como diz mais para frente, “nossas mentes moralistas são basicamente mentes tribais” (HAIDT, 2020, p. 227).
Trocando em miúdos: fazer patota vem no nosso código genético, comportamento coladinho com nossa vocação a julgar – o outro, claro; julgar a si mesmo requer treinos exaustivos e constantes, quem aguenta? No máximo, na base da intermitência faz-se algum progresso – sempre questionável.
Haidt transita dentro da teoria evolutiva e entende a moralidade como “um aspecto do nosso projeto evolutivo” (HAIDT, 2020, p. XVII), “a natureza humana não é intrinsicamente moral; ela é intrinsecamente moralista, crítica e propensa ao julgamento” (HAIDT, 2020, p. XVII).
Tendemos a delinear o certo e o errado de forma precisa, como se contornássemos pressupostos com canetinha grossa. As nuances são a nossa dificuldade. A razão disso (prepare-se para outro trocadilho) é que não somos tão racionais assim.
É raro pensarmos de pronto. A emoção é dada a vir primeiro:
“(...) reações afetivas são tão fortemente integradas à percepção que nos vemos gostando ou não de algo no instante em que o percebemos, às vezes antes mesmo de sabermos o que é” (HAIDT, 2020, p. 58).
Ou seja, o julgamento do que se gosta ou não antecede o raciocínio. As nossas justificativas (ou desculpas) chegam depois, porém já trabalhando em cima de dados filtrados, selecionados.
“Na prática as reações afetivas são tão rápidas e convincentes que agem como anteolhos em um cavalo, elas ‘reduzem o universo de alternativas’ disponíveis para o pensamento subsequente” (HAIDT, 2020, p. 59).
Falei em tara, lembra-se? Não foi à toa. Fetiche é recorte, estreitamento de perspectiva, redução do “universo de alternativas”.
Pessoas fazem julgamentos morais de maneira rápida, emocional e, portanto, recortada, limitada. “O raciocínio moral com frequência é escravo das emoções morais” (HAIDT, 2020, p. 26).
É possível funcionar diferente? Segundo Haidt, “um julgamento independente é possível em teoria, mas raro na prática” (HAIDT, 2020, p. 50).
Tem mais: “a moralidade agrega e cega” (HAIDT, 2020, p. XIX), pois auxilia a formação e a manutenção do grupo enquanto influencia as possibilidades de se enxergar, com variável acurácia, quem não pertence ao nosso grupo. É certo que nem a seleção natural é perfeita: arruma de um lado, estraga de outro. Conosco se passa igual.
Como resolver? Haidt sugere a empatia como um antídoto para a moralidade – empatia no sentido de se colocar no lugar do outro. Para isso, precisamos de oportunidades para assumir papeis e encarar problemas sob a ótica das outras pessoas. Nada fácil.
Investigando a psicologia moral em crianças baseado nos trabalhos de Jean Piaget, o psicólogo americano Lawrence Kohlberg, descobriu que “relacionamentos igualitários (entre colegas) favorecem a troca de papeis, mas relacionamentos hierárquicos (com pais e professores) não”.
Haidt dá a dica: “se quiser que seus filhos aprendam sobre o mundo social, deixe-os brincar com outras crianças e resolver conflitos” (HAIDT, 2020, p. 9).
Acontece que costumamos ouvir (e falar) muito a frase não fale com estranhos. Agora a ciência nos fornece evidências de que temos que falar com alguns estranhos, pior, nossos colegas?
Como escreveu o psicólogo Yves de La Taille no prefácio à edição brasileira de O juízo moral na criança, de Piaget:
“Por esta razão, uma educação moral que objetiva desenvolver a autonomia da criança não deve acreditar nos plenos poderes de belos discursos, mas sim levar a criança a viver situações onde sua autonomia será fatalmente exigida”.
Para Piaget e Kohlberg pais e professores (figuras de autoridade, no geral) acabam sendo obstáculos ao desenvolvimento moral: não adianta obrigar (ou apenas no começo), pois é preciso vivenciar.
Primeiro a criança aprende pela coação e depois pela cooperação. Como o próprio desenvolvimento da inteligência, o juízo moral também se desenvolve.
“As crianças descobrem por conta própria, mas apenas quando seus cérebros estão prontos e quando são expostas aos tipos certos de experiências” (HAIDT, 2020, p.6).
Esse é o caminho para a construção de uma moral autônoma, apoiada no respeito mútuo.
Para encerrar, mais um trecho de La Taille:
“No que tange à moralidade, as relações sociais vigentes em nosso mundo raramente são baseadas na cooperação; por conseguinte, grande número de pessoas permanece a vida toda moralmente heterônomas, procurando inspirar suas ações em ‘verdades reveladas’ por deuses variados ou por ‘doutores’ considerados a priori como competentes e ‘acima de qualquer suspeita’”.
Talvez parte do nosso amadurecimento dependa disso: lidar com estranhos sem ser direcionados cegamente por estranhos. Não me parece fácil.
Pois é, processo é processo e, sabemos, nossas taras podem render alguns. Não se esqueça: a moralidade agrega, cega e vigia.
Referências bibliográficas
HAIDT, J. (2020). A mente moralista: por que pessoas boas são segregadas por política e religião. Rio de Janeiro: Alta Cult Editora.
PIAGET, J. (1994). O juízo moral na criança. Prefácio de Yves de La Taille. São Paulo: Summus.
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Um sistema imunológico contra o fanatismo
“Eu fui uma criança curiosa. Quase toda criança é curiosa. Mas pouca gente continua a ser curiosa em sua idade adulta e em sua velhice”, escreve Amós Oz em Como curar um fanático.
O autor prossegue: “(...) em minha opinião a curiosidade também é uma virtude moral”.
Será que vale qualquer tipo de curiosidade? Imagino que seja sempre desafiador discriminar curiosidade de bisbilhotice.
Agora, para nos ajudar com a virtude, temos Aristóteles. O filósofo grego deixou um livro para seu filho (e nós fomos contemplados, agradeçam) intitulado Ética a Nicômaco. Nele, Aristóteles escamoteia a virtude e a define como questão de hábito: há que se praticar a virtude, ela depende da experiência e é alcançada, pois, por exercício.
Voltemos a Amós Oz:
“(...) a curiosidade, juntamente com o humor, são dois antídotos de primeira linha ao fanatismo. Fanáticos não têm senso de humor, e raramente são curiosos”.
“Nunca vi em minha vida um fanático com senso de humor, nem nunca vi uma pessoa com senso de humor tornar-se um fanático, a menos que ele ou ela tenha perdido o senso de humor”.
Por falar em riso, Henri Bergson em Ensaio sobre o significado do cômico também observa sua característica medicinal: “poderíamos dizer que o remédio específico para a vaidade é o riso, e que o defeito essencialmente risível é a vaidade”.
Por que estou a falar de um livro mencionando outros?
Porque Amós Oz defende a literatura, a boa literatura, como forma de estimular a curiosidade, de nos abrir uma espécie de terceiro olho, de nos estimular em nossa aptidão para “imaginar a vida na pele” do outro, como forma de “traduzirmos nossas profundas diferenças individuais no milagre das pontes construídas por palavras”.
Amós Oz trata do longilíneo conflito entre Israel e Palestina, mas certamente o que diz sobre obsessões e disputas pode ultrapassar as fronteiras. Afinal, o que é um fanático?
Além de carecer de imaginação, ele é ruim de matemática, “só sabe contar até um, dois é uma cifra grande demais para ele”.
Outro aspecto essencial é seu “desejo de forçar outras pessoas a mudar”. O fanático quer tudo do jeito que ele acha que tem que ser e não está aberto a discussões.
Não se precipite em investir contra um fanático, apontando-lhe um dedo sem dar-se conta de outros três voltados para si. “O fanatismo é fácil de pegar, é mais contagioso do que qualquer vírus”.
Nós, humanos, gostamos de ideias que pareçam mais verdadeiras que a verdade, para emprestar algumas palavras de Hannah Arendt que ando usando um bocado, eu sei, é que serve tanto e para tanta coisa.
Viver o mundo rasgando-o em uma divisão entre o eu e o resto, sendo eu o certo e o resto estúpido, é atitude nossa de longa data. Mudar isso exige muito esforço, muitos tombos e muitos risos. Lembre-se de Aristóteles: é questão de hábito. Quais os seus?
Receita de Amós Oz contra o fanatismo: curiosidade, boa literatura e bom humor. Acrescenta uma frase elegível para legenda de foto em rede social: nenhum homem é uma ilha.
Prefiro a ressalva que vem na sequência. Amós Oz complementa que, mais do que isso, o homem é peninsular: parte dele voltado para o mar, parte dele agarrado ao continente.
A que se refere a metáfora do continente? À família, às tradições, à nossa história. Impossível se desgarrar do próprio passado, o que não quer dizer deixar de nos projetar para o futuro, o que se faz no presente.
Peguemos carona no assunto já morno de ontem, as vacinas, e vamos trabalhar nessa imunização proposta por Amós Oz: “um senso de humor, a capacidade de imaginar o outro, a competência de reconhecer a qualidade peninsular de cada um de nós poderá ser pelo menos uma defesa parcial contra o gene do fanatismo que existe em todos nós”.
Que tal estimular sua curiosidade, pegar no par de mãos um livro de abrir terceiro olho e rir um pouco de si mesmo?
Dica de Amos Óz e de sua filha: “nada é tão sagrado que não mereça uma zombaria ocasional”.
Onde temos razão, flores não podem crescer.
Yehuda Amichai
Referências bibliográficas
Aristóteles. (2015). Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret.
Bergson, H. (2018). O riso: Ensaio sobre o significado do cômico. São Paulo: Edipro.
Óz, A. (2016). Como curar um fanático. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras.
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O mal está em nós?
Philip Zimbardo não queria estudar o mal. Seu propósito era estudar a psicologia do aprisionamento, ou seja, entender a mentalidade dos prisioneiros e da equipe correcional. Como se costuma dizer, de boas intenções o inferno está cheio.
Em 1971, Zimbardo empreendeu seu bem-intencionado experimento na Universidade de Stanford e, apesar de todos os resultados que obteve acerca do comportamento humano, em seu livro O efeito Lúcifer: como pessoas boas se tornam más (2019), o psicólogo não deixa de pedir desculpas (repetidamente) por todo sofrimento que causou aos participantes.
Dentro da psicologia há, basicamente, duas formas de enxergar a origem do mal.
A mais comum é atrelada a um conceito individualista padrão, isto é, de que o erro – ou o mal - é derivado inteiramente da índole da pessoa.
Simular uma prisão com jovens universitários saudáveis, sem histórico de doenças psiquiátricas ou delitos, deu a Zimbardo a outra perspectiva: o quanto as circunstâncias são “mais poderosas em modelar nosso comportamento em muitos contextos” (ZIMBARDO, 2019, p.15) e, portanto, capazes de produzir o mal a partir do bem. Claro que a relação não é de via única: os anjos podem se tornar demônios e vice-versa.
Para se ter uma ideia, o experimento previsto para transcorrer ao longo de duas semanas foi interrompido no sexto dia. A constatação que perturbou o psicólogo é que qualquer um de nós pode ser vulnerável aos poderes sutis e penetrantes da influência social: qualquer um de nós pode ser mau, o difícil é não ser.
No experimento de Zimbardo, os jovens estudantes eram voluntários que recebiam quinze dólares por dia e podiam largar o experimento em qualquer momento (vai um spoiler: ninguém o fez). Eles foram divididos entre prisioneiros e guardas.
As detenções foram realizadas num domingo. Em seguida, os prisioneiros foram preparados para apagar suas individualidades: eram uniformizados, numerados e vestiam uma meia de nylon na cabeça – já durante essa preparação, os guardas começaram a zombar dos prisioneiros. Na sequência, foram determinadas as regras, estabelecidas as punições, organizadas as chamadas para contagem de prisioneiros – as chamadas logo se tornaram meios de disciplinar mediante tarefas arbitrárias. Na segunda-feira, já houve uma rebelião e a criação do Conselho Reclamatório. Conforme passava o tempo, os guardas efetuavam punições cada vez mais indiscriminadas e um dos prisioneiros passou a demonstrar uma “desordem emocional”.
Impressionado, pois todos começaram iguais – nada diferenciava os jovens que eram os prisioneiros dos que eram os guardas -, Zimbardo percebeu que as pessoas se tornavam o papel que representavam (ZIMBARDO, 2019, p.224).
Sob esse aspecto é interessante resgatar Erving Goffman em A representação do eu na vida cotidiana (2014). Usando a metáfora teatral para estudar a vida social do homem, o antropólogo e sociólogo canadense, apresenta uma perspectiva sociológica dividida em palco/cenário/bastidores, ator/ personagem/ atores e plateia. O ator, no palco, diante da plateia precisa convencê-la, e o tenta valendo-se de atos, vestimentas e falas, incorporando e exemplificando os valores reconhecidos na imagem que deseja projetar, ou seja, o ator no palco quer dar a entender que possui certas características sociais, que é de fato o que pretende que ser.
Mesclando Goffman e Zimbardo temos que o papel social importa e ele não está apartado da pessoa (do ator no palco), nem da situação (do contexto comportamental), nem do sistema (dos agentes e agências que fornecem as ideologias, os valores, o poder).
Em seu livro, Zimbardo ainda retoma outro experimento, ocorrido na década de 1960, de Stanley Milgram. Esse pesquisador quis, sim, estudar o mal, ou melhor, a “obediência cega à autoridade”. Milgram tinha em mente “a prontidão com que os nazistas obedientemente assassinaram os judeus durante o Holocausto”, o que lhe gerava “profundas preocupações pessoais” (ZIMBARDO, 2019, p.374).
O anúncio do experimento de Milgram, conduzido na Universidade de Yale, oferecia quatro dólares por hora ao participante, dizendo que o objetivo era melhorar o aprendizado e a memória das pessoas mediante o uso de punição.
Configurava-se da seguinte forma: eram estabelecidas duplas em que cada participante tinha um papel específico – um era o professor e, o outro, o aluno; a instrução era associar palavras que eram aprendidas em pares. O professor falava uma palavra e o aluno deveria associar a outra palavra, referente ao par. Se o aluno acertava, escutava do professor: “bom”, “isso mesmo”; se errava, o professor lhe administrava um choque. Havia um sorteio para definição de papeis que, obviamente, era falso. O participante era sempre o professor. Quem coordenava era o pesquisador (representando, assim, a figura de autoridade), que insistia para que o professor prosseguisse com os choques, aumentados sucessivamente conforme o aluno errava (e seu erro era proposital, mas ignorado pelo participante-professor). O resultado obtido pelo experimento é que 2 em cada 3 pessoas (65%) iam até o fim, isto é, chegavam no choque de maior voltagem.
Milgram realizou uma série de estudos posteriores mudando as variáveis, o que lhe revelou que “quase todo mundo poderia ser totalmente obediente ou quase todo mundo poderia resistir às pressões da autoridade. Tudo depende das variáveis situacionais que vivenciam” (ZIMBARDO, 2019, p.382).
“A contribuição da Psicologia Social à compreensão da natureza humana é a descoberta de forças maiores do que nós mesmos, que determinam nossa vida mental e nossas ações – o líder dessas forças [é] o poder da situação social” - Mahrazin Banaji, psicólogo de Harvard, citado por Zimbardo (ZIMBARDO, 2019, p.374).
“Não há diferenças de gêneros no que se refere à obediência” (ZIMBARDO, 2019, p387). O que Zimbardo destacou foram os principais processos que levam a uma pessoa boa a fazer o mal: desindividuação (ou desumanização), obediência à autoridade, passividade perante ameaças, autojustificativas e racionalização. Aliás, ele foi além.
A partir dos estudos de Milgram, Zimbardo identificou as principais características que levam à submissão. Seriam: estabelecer um contrato, atribuir papeis, apresentar regras básicas, alterar a semântica (fazer uso de uma retórica), criar condições para evitar ou difundir a responsabilidade, ter um primeiro passo pequeno e aparentemente insignificante, estruturar em níveis que aumentam gradativamente, gradualmente mudar a natureza da figura de autoridade (inicialmente justo e razoável, para injusto, exigente e até irracional), tornar alto o preço da desistência e oferecer uma ideologia ou uma grande mentira (algo que funcione como uma justificativa).
“Os sistemas criam hierarquias de dominação”, o processo começa com a “criação de noções estereotipadas do outro” atreladas a “percepções desumanizadas”. Tem mais. Duas condições parecem importantes: o desligamento moral (pensando a moral como um câmbio, ele estaria no ponto morto segundo Albert Bandura) e a sensação de anonimato.
Sentir-se anônimo diminui “a sensação de responsabilidade social e cívica pelas ações” (ZIMBARDO, 2019, p.50). Será que a internet facilita essa combinação hoje?
Bom, repito que as redes sociais injetam esteroides na nossa necessidade de aprovação social e, portanto, potencializam a influência social, para o bem e para o mal.
Há espaço para a esperança? “Havia sempre aqueles indivíduos que resistiam”, aponta Zimbardo (ZIMBARDO, 2019, p.18). Quanto mais inclinações egocêntricas temos – o que evidentemente está muito presente em sociedades que estimulam o individualismo -, mais tendemos a pensar que as origens do mal estão em traços, genes e patologias individuais (ZIMBARDO, 2019, p.28). Todavia, “pessoas e situações estão em estado de dinâmica interação” (ZIMBARDO, 2019, p.28).
Como escapar dos impactos das influências sociais indesejadas? Receita de Zimbardo: diga “eu errei”, “eu estou atento”, “eu sou responsável”, “eu sou Eu, o melhor que posso”, “eu respeito a autoridade justa, mas me rebelo contra a autoridade injusta”, “desejo a aceitação do grupo, mas valorizo minha independência”, “serei mais vigilante com o quadro geral”, “eu equilibrarei minha noção de tempo para evitar excessos de presente”, “eu não sacrificarei minhas liberdades cívicas e pessoais pela ilusão de segurança” e “eu posso me opor a sistemas injustos”.
Afinal, o que é o mal? Zimbardo tem uma definição de bolso, para ter sempre à mão: fazer o mal é “saber o melhor, mas fazer o pior” (ZIMBARDO, 2019, p.27).
Seguramente que nós, aqui, somos seres especiais, mas que ninguém coloque nossa integridade à prova. Para a nossa pergunta, “o mal está em nós?”, a psicologia social responde: quem procura, acha, ou mais acertado dizer, quem veste o papel, o encontra.
Referências bibliográficas
GOFFMAN, E. (2014). A representação do eu na vida cotidiana. 20ª ed. Petrópolis: Editora Vozes.
ZIMBARDO, P. (2019). O efeito Lúcifer: como pessoas boas se tornam más. 7ª edição. Rio de Janeiro: Record.
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A estupidez nossa de todo dia
Preferimos falar sobre a sabedoria, mas não deixamos de atacar o que supomos ser um caso de estupidez – sempre alheia: ninguém posta em rede social frases como “hoje eu disse uma coisa estúpida” ou “isso foi estupidez de minha parte”. Pelo menos, nunca vi.
Se acalenta o leitor, tampouco publiquei algo semelhante. Certamente mais um dos limites da minha autocrítica, mas quem é capaz de identificar a própria estupidez?
Por sinal, o que é estupidez?
Em Sobre a estupidez, texto proveniente de uma conferência proferida em Viena no ano de 1937, Robert Musil realiza um estudo preliminar sobre o tema: “(...) prefiro admitir de saída minha fraqueza em relação à estupidez: não sei o que ela é” (MUSIL, 2020, p.11).
O assunto está longe de ser o único difícil de tangenciar: alguém aí consegue definir o que é beleza, por exemplo?
Carlo Cipolla, em As leis fundamentais da estupidez humana, de 1976, atravessa linha análoga ao afirmar que temos conhecimento o suficiente para ver que os assuntos humanos estão sempre em estado deplorável. Nós é que caminhamos, fingindo muito do bem fingido, que somos patrões de nossas razões.
Mesmo sem uma definição formal, em Cipolla, a estupidez aparece como uma força sombria e poderosa “que impede o crescimento do bem-estar e da felicidade humanos” (CIPOLLA, 2020, p.19). De cara, até o mais sonolento, intui que não deveríamos negligenciá-la.
Vamos às leis de Cipolla? Apesar do livro ser curtinho, vou resumi-las:
Lei - Descrição
1ª - Subestima-se o número de indivíduos estúpidos em circulação.
2ª - Qualquer um pode ser estúpido.
3ª - Um estúpido perde e faz perder – ou não ganha nada, mas nos faz perder.
4ª - Subestima-se o poder de dano dos estúpidos.
5ª - A pessoa estúpida é mais perigosa do que um bandido.
A primeira lei diz que subestimamos o número de indivíduos estúpidos em circulação. Claro que, a depender da timeline de cada um, o número estimado pode variar. Conjuntamente, os algoritmos ajudam salientando amostras enviesadíssimas e nos deixando nas famosas “bolhas”. Cabe perguntar: será que estamos compartilhando o mesmo balde de estupidez? Por que não?
A segunda lei é democrática: qualquer um pode ser estúpido. Segundo Cipolla, é um privilégio indiscriminado e distribuído de maneira uniforme – como são tantas outras características humanas. Além disso, para Musil, todos nós podemos ser estúpidos, senão sempre, com certeza de vez em quando. Melhor não nos iludirmos achando que a estupidez nunca está conosco.
A terceira lei começa a assustar com mais sustância: um estúpido perde e faz perder – ou não ganha nada, mas nos faz perder, pois ataca de maneira irracional, insiste e persevera. Uma desgraça. Pessoalmente, tenho a impressão de que muitos estúpidos ganham, sim, alguma coisa, como a atenção dos demais. Também considero que as perdas que acarretam são significativas, mas Cipolla fala disso na próxima lei.
A quarta lei informa que subestimamos o poder de dano dos estúpidos. O sujeito escreveu uma bobagem? Os mais coléricos inflamam-se e facilmente erram a medida ao retrucarem. Os fleumáticos fazem vista grossa a ponto da omissão. Difícil saber como reagir, em qual dose, mas não podemos esquecer que algumas bobagens levadas a sério podem prejudicar muita gente.
Por fim, a quinta lei é de arrepiar os cabelos: a pessoa estúpida é mais perigosa do que um bandido. Para Cipolla, como contei, o estúpido perde e faz perder, enquanto o bandido ainda tem algum ganho com sua ação.
Parece que não temos muito para onde correr: o número de estúpidos é mais alto do que estimamos, qualquer um de nós pode ser estúpido e estúpidos causam danos. Será que dá para lutar contra?
Musil escreve que um dos mais importantes meios contra a estupidez é a modéstia e aconselha: “abstenha-se de julgar e decidir tudo o que você não entende o bastante” (MUSIL, 2020, p. 50). Justo, não?
Penso nisso diante das enxurradas de autorreferências – eu, eu, eu – e dos enxames de recém-formados donos de mais saber que os próprios proprietários da sabedoria (supondo que existissem, evidentemente).
Nunca vi tanta gente dando pinta de sábia por polegada de tela – e olhe que estou na internet desde que tudo era mato.
Pipocam fotos com legendas ornamentadas por trechos de escritores famosos. É para imaginar que os livros foram lidos? Ou chegamos no ápice da evolução intelectual em que concordar com um sábio virou algo contagiante, que pega por osmose – do meio mais concentrado para menos concentrado?
Memes viraram frases para serem inseridas nos diálogos: “não é falta de tempo, é falta de prioridade”, “senão lhe faz feliz, não faça”, “o ‘não’ você já tem”, “tudo é uma questão de equilíbrio”. Nem preciso gastar meu HD que o leitor tem uma penca de exemplos.
Mas isso, em vez de estupidez, não seria senso comum? Provável que seja. Então, como diferenciar? Pois não basta saber se uma pessoa é estúpida ou se está sendo estúpida: o mais valioso a saber é se estamos ou não diante de uma estupidez.
Em minha singela reflexão do tema, eis alguns apontamentos – não sei se discriminam adequadamente, apenas espero que ajudem como alerta.
Geralmente a estupidez nasce colada em assunto quente, que está chamando a atenção ou chamaria a atenção por si só. A estupidez floresce no terreno fértil para as opiniões. Inclusive, as opiniões da estupidez precisam ser fortes, contundentes, bem amarradas.
Estupidez tem que ter impacto. Deve ser soberba, com a arrogância de cravo que enfeita beijinho – arrogância que você tolera porque não engole, afinal, tem mais interesse onde ela se espeta.
Aliás, a estupidez costuma ser saborosa, apesar de reduzido valor nutricional. Sabedoria requer preparo e nem sempre sai agradando nosso paladar. Às vezes, muito pelo contrário.
Estupidez tende a ser longa, precisa ter um bom comprimento sem ser extensa. A pessoa explica seu ponto, com aparentes argumentos que cabem bonitinho em sua narrativa. A explanação fica mais redonda que um círculo de compasso ou, parafraseando Hannah Arendt, mais verdadeira que a realidade.
Sou do time parceiro de Cipolla, só digo diferente: considero que a estupidez é muito mais perigosa que a ignorância. A estupidez acha que sabe do que diz e, pior, nunca se cala: fala pelos cotovelos.
Pena que não se cansa. Jamais vi uma estupidez se retirar para as montanhas para nos dar dez anos de sossego, mas sempre a encontro se comportando, diante da plateia, como um Zaratustra.
A miséria é que essa falsária pode estar muito bem sendo encenada por um de nós.
Referências bibliográficas
CIPOLLA, C. M. (2020). As leis fundamentais da estupidez humana. São Paulo: Planeta.
MUSIL, R. (2020). Sobre a estupidez. 3ª edição. Belo Horizonte, Veneza: Editora Âyiné.
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Para que serve um diagnóstico?
O que é um fenômeno? Um fenômeno é aquilo que se apresenta e não as considerações teóricas a seu respeito. Tais considerações são, na maior parte das vezes, derivadas unicamente da mente do pensador.
Pode parecer óbvia a discriminação do que é e do que não é um fenômeno, mas logo você vai entender o porquê de eu partir daí.
Recentemente dei de cara com uma vinculação entre autismo e nazismo. Não bastasse o absurdo por si só, o vínculo tem sido endossado por intelectuais[1] que, obviamente, não tratam na lida do dia a dia com pessoas com esse diagnóstico.
Especificamente sobre o nazismo, sugiro a leitura de Hannah Arendt para se compreender a complexidade do que foi o regime nazista – muito longe de algo simples e capaz de separar o mundo entre vilões e bonzinhos feito água e óleo.
“Antes que os líderes das massas tomem o poder para fazer com que a realidade se ajuste às mentiras que proclamam, sua propaganda exibe extremo desprezo pelos fatos em si, pois, na sua opinião, os fatos dependem exclusivamente do poder do homem que os inventa” (ARENDT, 2012, p.483).
Nem vou estender a discussão acerca da limitação que é definir o mal a partir de um único evento hediondo e tomá-lo como paradigma de qualquer atuação humana lamentável – que não se esqueça: temos uma lista enorme de condutas abomináveis. Pensar que a humanidade foi má apenas uma vez seria um alívio senão fosse uma mentira.
Ouviu falar sobre a Nau dos Insensatos? Referia-se a um barco onde se colocavam todos a serem excluídos. O barco era, então, largado no mar. Destino? O destino era sumir tal qual sujeira: aquilo que não se vê, não incomoda.
A atitude era validada pela sanção de lei do Rei Luís XIV que, em 1656, autorizava a eliminação pública ou reclusão de libertinos, charlatões, errantes, indigentes, mendigos, ociosos, ladrões, luéticos (sifilíticos), lunáticos, dementes, alienados, insanos de todas as espécies, leprosos e qualquer indivíduo que perturbasse.
Quer mais? Estima-se que 8 a 10 mil deficientes mentais[2] foram queimados na Idade Média. Naquele momento, a noção de doença mental estava ligada a possessões demoníacas, isto é, considerava-se a etiologia (causa da doença) como sendo mágico-religiosa e a terapêutica consistia em exorcismo, condenação à fogueira, crueldade, perseguição, intolerância.
Que bárbaros, não? Calma, não olhe para trás com os olhos de agora, até porque nem faz tanto tempo assim.
Não somos biologicamente orientados para o cuidado com o diferente. Na verdade, essa é uma decisão ética e está na base da psiquiatria. Humanos modernos caminham sobre a Terra há cerca de 800 mil anos. A ética é mais recente, tem ao redor de 2500 anos, enquanto o cuidado com o doente mental tem entre 300-400 anos[3].
Chego ao que quero discutir: além da questão do autismo, é a declaração de que o nazismo teria sido um regime diagnóstico – uma ideia que corre o risco de ser transformada em uma premissa e de se tornar porta de entrada para fazer do diagnóstico em saúde mental o vilão da história. Como se precisássemos de mais essa...
As primeiras descrições oficiais que temos sobre o que se convencionou chamar de autismo datam de 1943, com Leo Kanner nos Estados Unidos, e de 1944, com Hans Asperger na Alemanha. Como eu disse, estas são as descrições oficiais. Descrições semelhantes são encontradas antes, em 1700, com relatos de crianças abandonadas e, em 1800, há informações parecidas sobre crianças em escolas para alunos com deficiências mentais.
Volto à questão inicial: o que é um fenômeno? É aquilo que se apresenta e não as considerações teóricas a seu respeito. Ou seja, podemos mudar a forma de descrever, agregando material, modificando conceitos e critérios diagnósticos, transformando a maneira de tratar, mas o fenômeno, em si, não se altera: crianças com atrasos de desenvolvimento e características específicas como comportamento ritualístico, tendência à mesmice, alterações de linguagem e de comunicação, não nascem quando inventamos um nome para o diagnóstico. O clínico observa, descreve o que vê, depois arruma um nome para aquele conjunto de dados.
Por falar em nome, diagnóstico é reconhecimento. Termo de origem grega, diagnóstico em medicina é, portanto, reconhecer uma patologia em um indivíduo. É um processo mental dedutivo, que produz conclusões sobre casos particulares a partir de regras gerais. É realizado em casos individuais, pois se considera sua singularidade. Além disso, para a consideração de um determinado diagnóstico, faz-se necessária a integração de conhecimentos (ASSUMPÇÃO-JR & PADOVANI, 2021).
Tivemos (e ainda teremos) várias tentativas de classificação em psiquiatria. Diferentes propostas são levantadas conforme diferentes formas de ver o homem e o seu mundo. Por isso dizer simplesmente que o nazismo foi um regime diagnóstico e usar esta fala para vilanizar os diagnósticos é, no mínimo, falta de conhecimento histórico: existem tábuas de diagnósticos e prognósticos médicos desde 2000 a. C.
Ocorre-me que tais questões deveriam nos levar a pensar no desenvolvimento de uma especialidade, pois isso permite revelar como o conhecimento médico evoluiu, demonstrar a natureza efêmera das teorias médicas, compreender a competição entre atitudes profissionais e comerciais e visualizar o contexto social no qual emergiram as ideias (ASSUMPÇÃO-JR., 1995).
Oportuno dizer que o diagnóstico é uma operação mental complexa. Não é apenas dar um nome, de bate-pronto.
Vivemos momentos de exagero de diagnósticos? Não me oponho a esta constatação. Porém, isso não invalida a importância de um diagnóstico. Ele é feito para tratar alguém: o foco da psiquiatria é tratar o doente, não a doença. Há quem faça diferente? Sempre há.
Todavia, o estabelecimento de conceitos e leis sobre as manifestações mórbidas mentais ou mesmo estudar as condições e leis a que estão submetidos os fenômenos psíquicos patológicos ou anormais, permitiu uma maior consideração pelo doente mental, uma vez que somente a partir do seu estudo é que se passa valorizá-lo como um ser humano em sofrimento, passível de cuidado (ASSUMPÇÃO-JR & PADOVANI, 2021).
O uso do diagnóstico como um produto, como uma definição pessoal mediante ao (desatino) autodiagnóstico, não passa de estupidez moderna. Não que nosso passado seja muito melhor, mas podíamos ter a desculpa de que fazíamos o que fazíamos porque não tínhamos dados históricos que nos servissem de lição. Temos agora? Temos, mas falta usar e não de qualquer jeito.
Como escreveu Arendt, a coerência da ficção é o perigo, ao explicar o mundo sem contradições:
“O pensamento ideológico arruma os fatos sob a forma de um processo absolutamente lógico, que se inicia a partir de uma premissa aceita axiomaticamente, tudo mais sendo deduzido dela; isto é, age com uma coerência que não existe em parte alguma no terreno da realidade” (ARENDT, 2012, p.628).
Apesar do fato de que qualquer tipo de classificação possa ser mal utilizado, as classificações são indispensáveis, na medida em que possibilitam desde a troca de informações entre indivíduos diferentes até a sistematização do pensamento técnico visando aos seus objetivos vinculados, principalmente, à configuração de um projeto terapêutico (ASSUMPÇÃO-JR & PADOVANI, 2021).
Leve para a vida: diagnóstico serve para tratar. Se é usado para outra função, demonizá-lo é fazer o mesmo que responsabilizar uma tesoura que foi usada para matar alguém ao invés de ser usada apenas para cortar papel: afinal, ela só caiu nas mãos erradas. A mesma desgraça acontece aos diagnósticos.
Referências bibliográficas
ARENDT, H. (2012). Origens do totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras.
ASSUMPÇÃO-JR., F. B. (1995). Psiquiatria infantil brasileira: um esboço histórico. São Paulo: Lemos Editorial.
ASSUMPÇÃO-JR, F. B. & PADOVANI, C. R. (2021). Neuropsicologia na infância e na adolescência: casos clínicos em psicopatologias. 1ª ed. Barueri, SP: Ed. Manole
[1] A cada vez tenho mais medo dessa palavra.
[2] Estou usando o termo em sentido amplo.
[3] Os direitos dos doentes mentais têm um pouco mais que 50 anos e, já que estou balizando datas, a farmacoterapia começou em 1950. Praticamente ontem, eu sei.
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