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lacuna.
18h10 de uma rotina batida. roupa vestida, bolsa feita.
me encaro no espelho. (suspiro).
o pincel que ergo não maquia tão somente a minha estética, mas também a minha preguiça. a minha aversão. o meu desamparo. maquio a minha irritabilidade, a minha impulsividade, a minha agressividade. associo, entendo, encaro; sem, porém, admitir. apago as luzes e o espelho sai de cena abandonado, encarando uma cama arrumada às pressas.
1, 2... e pronto. desvencilho-me do idealismo barato e inicio um técnico malabares pelas ruas retas, estreitas e sufocantes da cidade. é tudo um circo. os animais ferozes, os fortes trapezistas, as mulheres barbadas. e o palhaço. figuras carimbadas. as ruas do meu coração parecem ser um pouco mais curvas.
eu sempre soube lidar com adversidades. a idade me trouxe como benefício a capacidade de refutar meus demônios e fomentar minhas virtudes. traço uma luta cósmica contra feras que pouco consigo enxergar. desfiro golpes que não sei se foram de fato atingidos. ouço murmúrios – mas de onde vêm? cego em tiroteio.
por quantas praias já não andei, por quantas primaveras já não passei.
entre idas e vindas, subidas e descidas, sorrisos e choros, abraços e socos, beijos e sussurros, encontro-me girando num mesmo ponto, procurando a melhor posição para me encaixar, como um cão faz, antes de dormir. confortável é não encarar; dolorido é enfrentar o desconhecido. uma luta interna, cuja vitória jamais aparecerá aos meus olhos apressados e sedentos por mudanças. a mente pede trégua e o corpo padece.
glórias passadas não me sustentam. vislumbro um futuro do qual jamais seria possível alcançar com esse presente do indicativo. sinto-me uma cigarra, que vê no trabalho da formiga um trabalho robótico e desalmado, desinteressante, desapaixonado. não há tesão. na verdade, não há tesão em ser cigarra ou formiga. não há tesão em ser um inseto.
da rotina cumulativa e trituradora, a fuligem poderia ao menos ser colorida, e não tão negra. persigo um idealismo que só existe na minha cabeça. idealismo social, idealismo amoroso, idealismo profissional – mas sobretudo, um idealismo pessoal. tomo meu facão e golpeio cipós e folhas que barram meu caminho; porém, encontro-me perdido. a quantas estou? onde estou? minha autoanálise é o meu GPS, que, digamos, custa a funcionar.
em uma palavra? estagnado.
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aérea.
rafaela estava debaixo da mesma árvore de sempre, e pensativa, como sempre. olhava pro nada, descansando um olhar castanho, perdido no horizonte, enquanto apoiava suas largas costas no generoso tronco, que a aceitava sem pestanejar. o dia era nublado e o vento soprava incessante, mesmo que gentil. as folhas caem e, como os pensamentos de rafaela, voam. no que pensa rafaela?
os sons dos carros, das pessoas. distantes. tudo está distante. o horizonte se perde e a imagem se mistura com devaneios aleatórios, se fundem, mesclam, pertencem a um mesmo espaço-tempo. sons se criam. cores se destoam. formas se projetam. o nada mais o nada, e ela mesma. e fica por muito tempo assim, perdida, porém consciente, mesmo que distante.
– está frio; pensa ela, que traz pra mais perto do seu corpo o seu casaco de tricô cinza, feito pela avó. rafaela está sozinha e a sua única companhia é aquela árvore, firme, sólida, eterna, protetora. tudo o que ela queria era fechar os olhos e descansar, ali mesmo. dormir. sonhar involuntariamente, sem coordenar a imaginação. sem mesclar imagens. sem projetar formas. sem criar sons. sem destoar cores. apenas sonhar, descansada, despreocupada, com algo que ela não tivesse controle.
os olhos, aos poucos, vão se fechando... o som vai sumindo... as imagens sucumbindo... as cores apagando... as memórias se despedindo... o inconsciente surgindo. e aí, como um gesto de protesto, o celular toca. rafaela se assusta com tamanha interferência e atende o celular.
- alô?
- oi, é a rafaela?
- sim... quem é?
- é a Vida. tá na hora de acordar.
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