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A lógica e o Direito: brevíssimo exame da decisão de 16/02/2021 no Inquérito n.º 4.781/DF
A lógica convém ao indivíduo dedicado ao conhecimento da realidade, pois, enquanto arte, serve de instrumento para que o intelecto alcance a verdade com ordem, com facilidade e sem erro[1]. De modo particular, a lógica convém ao jurista e, especialmente, aos juízes, advogados e membros do Ministério Público, na medida em que lhes confere o ferramental necessário para que alcancem, pela razão, o verdadeiro e o justo e possam discerni-lo do injusto, a fim de que promovam o primeiro e evitem o último.
Vê-se, assim, de início, que o reto emprego da lógica supõe uma postura de sujeição à realidade e de abnegação da vontade própria do jurista diante daquilo que se reconhece como verdadeiro e como justo. Pois bem.
Enquanto ciência, a lógica tem por objeto os atos do intelecto segundo a ordem pela qual alcançam o conhecimento da realidade, que se estruturam em três operações, que têm finalidade e obra próprias:
(i) a primeira dessas operações é a mera abstração, que tem por obra o conceito, que, por sua vez, consiste em uma expressão mental da essência, ou da quididade, de um ente conhecido. Tem por finalidade, portanto, responder à pergunta “quid sit?” (o que é isto?);
(ii) a segunda operação é o juízo, que tem por escopo afirmar ou negar a verdade do conceito apreendido. Sua obra, por seu turno, é a proposição mental e o juízo visa a responder à pergunta “quia sit?” (isto é assim?); e
(iii) a terceira operação do intelecto é o raciocínio, que tem por finalidade a extração, por implicação, de uma proposição verdadeira, até então não conhecida, a partir de duas proposições anteriormente conhecidas. Tem como obra a argumentação e visa a dar resposta, portanto, à pergunta “propter quid sit?” (por que é assim?), explicando uma realidade a partir de suas causas (material, formal, eficiente ou final).
Aplicando ao Direito, pois, os conhecimentos referentes aos atos e às operações do intelecto, é possível também aferir a correção dos conceitos (expressões mentais de entes jurídicos, imateriais), das proposições (hipotético-condicionais) e das argumentações jurídicas (demonstrativas ou dialéticas, separando-as das sofísticas), bem como das respectivas operações que lhes deram origem. A partir da aferição da correção de cada uma das operações do intelecto, é possível avaliar, também, a verdade ou a falsidade de cada uma dessas operações intelectuais, assim como a justiça ou a injustiça de uma proposição que repercuta na esfera jurídica de uma ou mais pessoas.
Nesse sentido, interessa tomar por objeto de análise a recente decisão monocrática proferida aos 16/02/2021 no âmbito do Inquérito n.º 4.781/DF, em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal – STF --- a decisão ficou mais conhecida por ter determinado a prisão em flagrante do Deputado Federal Daniel Silveira.
Essa decisão teve por fundamento a prática de suposto crime inafiançável cometido pelo aludido Parlamentar ao disponibilizar vídeo em plataforma de streaming no qual teria tecido comentários injuriosos à honra de Ministros do STF e que, segundo a própria decisão, visam “a impedir o exercício da judicatura, notadamente a independência do Poder Judiciário e a manutenção do Estado Democrático de Direito”[2].
A partir de juízo feito pelo Constituinte Originário, ficou consignada no art. 53, § 2º, da Constituição da República, a seguinte proposição hipotético-condicional: “[d]esde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável”.
Essa primeira proposição é, necessariamente, a premissa maior de um raciocínio que conclua pela justiça da determinação da prisão de um membro do Congresso Nacional. Assim, a conclusão alcançada pela decisão monocrática em comento (“o Deputado Federal Daniel Silveira deve ser preso”), somente poderia decorrer de uma relação de implicação entre essa primeira proposição (premissa maior), e uma segunda proposição (premissa menor), que afirmasse que “o Deputado Federal Daniel Silveira incorreu em flagrante de crime inafiançável”.
A decisão define nominalmente crime inafiançável, com esteio no art. 324, IV, do Código de Processo Penal, como aquele em que se fazem “presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art. 312)”.
Examinando, assim, os termos do art. 312 do CPP[3], verifica-se --- sem que se faça qualquer juízo acerca da referida definição de “crime inafiançável”, apreendido a partir de um acidente (“presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva”) ---, que, segundo a definição oferecida pela decisão em exame, a premissa menor que implicaria a conclusão alcançada pelo mesmo provimento seria a seguinte: “o Deputado Federal Daniel Silveira incorreu na prática de crime cuja existência e cujo indício suficiente de autoria e de perigo pelo seu estado de liberdade, inclusive em relação à ordem pública, à ordem econômica, à conveniência da instrução criminal ou à garantia da aplicação da lei penal, estão provados”.
A análise da argumentação resultante do raciocínio desenvolvido pela decisão revela, porém, que a conclusão não foi alcançada a partir de proposições que revelam a pertinência da causa apontada ao ente [crime inafiançável: “quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art. 312)”].
Embora a argumentação expressa na decisão apresente proposições que apontam no sentido da ocorrência de crime e da configuração de flagrante delito, não apresenta qualquer proposição que afirme a ocorrência de qualquer dos motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva --- não se afirmou, e. g., que: (i) a prisão do Deputado Federal serve à garantia da ordem pública; ou (ii) há indício suficiente de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado.
Assim, constata-se que o raciocínio desenvolvido pela decisão é um paralogismo, ou um sofisma, “raciocínio errado, com aparência de verdade”, cujos elementos básicos são “uma verdade aparente – certa capacidade de convencimento” e “um erro oculto – conclusão falsa”[4]. Nesse caso, o erro oculto decorre de se ter partido de premissas que se deveriam provar (configuração de algum dos motivos previstos no art. 312 do CPP) como verdades já provadas (o Deputado Federal cometeu crime inafiançável).
As circunstâncias do caso e, em particular, da instauração do Inquérito n.º 4.781/DF – notoriamente conhecidas – levam a crer que a Corte não orientou seu juízo, no caso, por aquela postura de sujeição à realidade e de abnegação da vontade própria diante daquilo que se reconhece como verdadeiro e como justo, que o reto emprego da lógica supõe para que a lógica alcance seus fins próprios.
Vê-se, então, o quanto custa – não apenas ao Investigado, mas também ao Direito – a renúncia dos tribunais a uma postura humilde diante da realidade e do justo, considerado objetivamente. Alfredo Augusto Becker, com palavras duras, aponta que a terapêutica da “demência jurídica” pressupõe uma “atitude mental jurídica”, em as partes “se sujeitarem aos efeitos jurídicos resultantes da incidência daquela regra jurídica sôbre [sic] sua hipótese de incidência (“fato gerador”)”[5].
Assim, uma vez que se decida buscar e se sujeitar à verdade e à justiça, a arte da lógica servirá de importante ferramenta ao jurista. Valendo-se dos seus postulados, os juristas podem ordenar sua razão para que essa faculdade do intelecto humano possa alcançar seus fins próprios e, então, guie sua vontade e sua ação no exercício da arte de buscar e promover o justo, sem a esses valores sobrepor quaisquer outros fins.
[1] MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. Manual esquemático de filosofia. 4ª ed. São Paulo: LTr, 2010, p. 161.
[2] BRASIL, República Federativa do. Supremo Tribunal Federal. Inquérito n.º 4.781/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, decisão monocrática proferida aos 16 de fevereiro de 2021.
[3] “Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”.
[4] MARTINS FILHO, op. cit., p. 180.
[5] BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1972, p. 39.
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