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arteriaemchamas · 2 months ago
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A estética da Vida - Graça Aranha
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Resumo
O excerto apresentado, proveniente do livro "A Estética da Vida" de José Pereira da Graça Aranha, mergulha em uma profunda reflexão sobre a natureza do universo, a consciência humana e a busca pela unidade entre o indivíduo e o Todo. O autor defende uma visão monista e estética do universo, argumentando que a compreensão da realidade se dá através de uma experiência subjetiva e sensorial. Em oposição à dualidade cartesiana entre mente e corpo, Aranha propõe uma fusão entre o sujeito e o objeto, onde a consciência humana é capaz de "imaginar" e "sentir" a unidade infinita do cosmos. A obra estrutura-se em diferentes seções, explorando a função psíquica do terror como um motor da consciência, a religião como uma expressão da busca pela unidade, a filosofia como o caminho para compreender a unidade essencial do universo, a arte como a expressão da experiência estética, o amor como a fusão de dois seres na unidade, a metafísica brasileira e a imaginação como traço característico da cultura brasileira, os trabalhos do homem brasileiro para vencer a natureza, a metafísica e a inteligência, a melhor civilização, a nação, o nacionalismo e comunismo, a história do Brasil, o otimismo brasileiro, o pragmatismo brasileiro, o estilo brasileiro, o tipo brasileiro, a língua brasileira, as visagens da literatura brasileira, a música, a crítica literária, a mística de Cristo, a arte e a história e a ruptura com o classicismo. A proposta de Aranha, portanto, reside em transcender a visão fragmentada e utilitarista da realidade, buscando uma experiência estética e integral do universo.
Temas principais
Unidade infinita
Sentimento do universo
Função do terror
Arte e beleza
Brasil e cultura
GRAÇA A R A N H A
A Esthetica da Vida
A tragédia fundamental da existência
está nas relações do espirito humano com o Universo.
A concepção esthetica do Universo é a base da perfeição.
LIVRARIA GARNIER 109, RUA DO OUVIDOR, 109
RIO DE JANEIRO 6, RUE DES SAINTS-PÈRES, 6
P A R I S
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A ESTHETICA DA VIDA
GRAÇA ARANHA
A Esthetica da Vida
A tragédia fundamental da existência
está nas relações do espirito humano com o Universo.
A concepção esthetica do Universo é a base da perfeição.
LIVRARIA GARNIER 109, RUA DO OUVIDOR, 109
RIO DE JANEIRO
6, RUE DES SAINTS-PÈRES, 6
P A R I S
A UNIDADE INFINITA DO TODO
O UNIVERSO E A CONSCIÊNCIA
Como definir o Ser ? Restrinjamos a nossa impossibilidade a este axioma: o Ser é o Ser. E' a substancia com os phenomenos e só nós o conhecemos pelos phenomenos. Para o espirito humano só ha realidade no que é phenomenal; fora d'ahi o Universo, a unidade infinita, é uma pura idealidade. Nem a Substancia, nem a Vontade, nem o Inconsciente, nem as Idéas são o principio causai da existência. Se o fos­ sem, o supremo problema metaphysico se expli­ caria por um incorrigivel dualismo, inherente a estes conceitos primordiaes, porque o nosso espirito teria necessariamente de comprehender a dualidade de uma força ou energia agindo sobre a matéria, embora se pretendesse explicar que a substancia é força e matéria e que não ha matéria sem força, nem energia indepen­ dente da matéria. O dualismo subsistiria como uma fatalidade da nossa comprehensão, e por lie jamais chegaríamos a explicar o Todo e a
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perceber a essência da causalidade. Ora, o sen­ timento da Unidade infinita do Universo é o facto transcendente do espirito humano. E' um sentimento e não uma realidade objectiva, sen­ timento que reside na consciência. Todo o pro­ blema metaphysico (philosophico, religioso ou esthetico) está subordinado á consciência que nos explica o Universo, e este só existe na sua realidade subjectiva pelo facto da consciência. Sem a consciência metaphysica o Universo não nos seria realisado, como uma unidade abstracta e transcendental, e assim a questão philosophica, ou melhor a explicação da causa­ lidade, está restricta ao raio de luz da consciên­ cia. Uma demonstração lógica de um principio causai, seja o noús, a vontade, o inconsciente, é impossível. O Universo é porque é, e só nos é dado explicar scientiíicamente os seus phe­ nomenos, o que importa na fragmentação do Todo, infinito e inattingivel á investigação da sciencia. Mas, por uma necessidade fatal do espirito, aquillo que é indemonstravel pela lógica é comprehendido como realidade ideal. Ha uma unidade infinita do Ser que se impõe ao espirito e á consciência.
A formação da consciência metaphysica é o mysterio do espirito humano. Fora da consciên­ cia o Universo não existe. Só por ella e para
O UNIVERSO E A CONSCIÊNCIA D
ella o Universo se realisa. Póde-se ter a consciên­ cia de si, a consciência individual, sem se ter a consciência metaphysica. A consciência de si tem o indivíduo quando percebe pelas suas sensações que elle fôrma um todo separado e distincto dos outros seres. Essa consciência se estende e se amplia, quando o indivíduo applica á percepção introspectiva dos pheno­ menos subjectivos a mesma attenção, que em­ prega na observação dos phenomenos objectivos. Mas o indivíduo ainda não attingiu ao domínio da consciência metaphysica da existência, isto é, a explicação ou o sentimento da sua própria existência, o sentimento do Todo, a causali­ dade. O indivíduo pôde sentir e conhecer que elle não é outro ser, que está separado das outras cousas, tendo a consciência da sua uni­ dade perfeita, e os outros seres lhe apparecem como unidades differentes sem necessidade de as ligar intimamente e compor com ellas a unidade absoluta e infinita. A consciência de si dá ao indivíduo o sentimento da separação, a consciência do seu próprio eu e a interpretação dos phenomenos subjectivos dos outros seres. Antes dessa consciência conceituai o indivíduo se considera um entre os outros objectos, e não um em opposição aos outros objectos. Elle ainda não é sujeito e não comprehende que
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outros o sejam. 0 estado a que se chega pela consciência conceituai, metaphysica, é o que explica as unidades psychicas perfeitas, nós e os outros, sendo todos objecto de conheci­ mento de sujeitps conscientes, que somos nós mesmos.
Para estes estados de consciência que são de preceitos ou de conceitos, o Universo não existe, o sentimento do Infinito ainda não foi despertado. O indivíduo é indifferentc a tudo que não seja objecto da sua sensação real. Tem a inconsciencia do Todo, não se sente como uma expressão, uma simples apparencia phenomenal do Universo. Ha uma perfeita incorporação do indivíduo no Todo universal, e pelo facto da inconsciencia metaphysica ha uma unidade infinita e completa na essência do Ser.
A FUNCÇAO PSYCHICA DO TERROR
A consciência no homem não é um phenomeno transcendental, fora das leis naturaes. A cons­ ciência é um facto natural, um « modo » da substancia universal. Phenomeno neurológico, commum aos animaes, a consciência, que tem os seus órgãos physicos, se desenvolve na escala dos seres. Mas no processo dessa evolução ha um instante em que se fôrma no cérebro do animal superior a consciência metaphysica do Todo universal. E' o instante da creação do homem. Por essa consciência o homem se revela, porque entre todos os seres só elle comprehende o Universo, o interpreta, e sente a sua separação das outras cousas no Todo infinito. Os outros animaes têm a consciência individual, a cons­ ciência dos outros seres, mas estão privados da consciência metaphysica, objectiva e subje-ctiva. Para explicar esse magno problema da philosophia, a hypothese do terror inicial for-
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mando a consciência humana não é fortuita, e seria uma luz neste insondavel enigma.
O homem herdou dos seus anthropoides o medo. E' um animal em que o medo é uma das primeiras manifestações psychicas. No período infantil, qualquer alteração do equilíbrio, a im­ pressão da água, os menores animaes e os mais inoffensivos, o aterram. N'esse cérebro assim predisposto, as grandes commoções, provocadas pelos inexplicáveis phenomenos da Natureza, determinaram a formação de idéas transcenden-taes para explicar a origem e a causa desses phenomenos, que pelo mysterio apavoram o espirito dos homens. A necessidade de explicar, de entender, é essencial ao cérebro humano. E' uma conseqüência psychica do seu próprio desenvolvimento physiologico. Não dispondo de meios scientificos para explicar a matéria universal, que o cerca e espanta, interpreta-lhe os phenomenos por uma ideologia rudimentar, vaga e incerta, que se torna a expressão do mysticismo inicial, pelo qual se balbucia o conceito da fragmentação do Universo e da separação dos seres.
Esse terror inicial fica permanente no espirito humano e transmitte-se aos descendentes pela hereditariedade psychologica. No homem civi-
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lisado, em cujo espirito a cultura intellectual tem combatido o medo, este perdura como um traço psychologico dos antepassados, e por elle se dá no homem uma regressão physica e moral ao estado psychico dos primitivos formadores da espécie. Sob a influencia do medo vemos os homens mais civilisados reproduzirem gestos e actos dos homens selvagens e dos animaes superiores de que descendemos. E essa regres­ são é uma das provas da origem animal do homem. Pela hysteria e pelo somnambulismo, que são muitas vezes manifestações nervosas do medo, o homem entra no estado de sub-cons-ciencia, em que viviam os primitivos homens perdidos no terror do Universo. A um estado semelhante de sub-consciencia^propicio ao mys-ticismo animista, que transfigura a Natureza, volta o homem civilisado, quando se transporta ao meio physico, cujo assombro o apavora eter­ namente. Não é somente por uma manifestação physica retrograda que o terror reside no ho­ mem ; é também pelo retrocesso á alma antiga dos antepassados, reacção em que a cultura adquirida se esváe, como a luz solar no mysterio da infallivel noite. Esse retrocesso á sub-con-scienciase accentúa na vida collectiva, nas socie­ dades humanas, em que o estado de agglome-ração faz despertar os instinctos selvagens
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dos anthropoides e homens primitivos, que vi­ viam em tribus.
Outra causa do medo é a dôr. Antes do soíTrí-mento moral, a dôr physica, agindo nos cen­ tros nervosos do animal, determina o pavor do desconhecido e no homem crea o sentimento da morte. A dôr moral tem um effeito idêntico, o de despertar esse sentimento vago do medo, que está no inicio da formação da consciência humana. Durante essa reacção physica e moral do softrímento, o espirito humano procura pro­ teger-se do terror ancestral, que persiste na sua memória, e a imaginação lhe crea as forças tute-lares, que o devem amparar na sua dôr. E o effeito mágico do soffrimento moral é o de crear a consciência, que nos explica a nossa separação do Universo, que nos confina no nosso próprio ser, que nos faz sentir o Infinito, que nos dá a divina tentação de desapparecer para sempre no Todo universal.
Nas relações do indivíduo com o mundo exterior dão-se factos que, causando espanto, ficam inexplicáveis á intelligencia. A necessi­ dade de ligação de causas e effeitos, essencial ao espirito, transportada a esses factos inexplicá­ veis, revela a separação entre o indivíduo e uma força mysteriosa, implacável e fatal, que não reside positivamente nos outros indivíduos
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ou objectos exteriores. A homogeneidade cós­ mica está quebrada, e no indivíduo o terror gerou a consciência metaphysica. Começa então o cyclo da tragédia fundamental do espirito, e a vida passa a ser a dolorosa, infatigavel e múltipla expressão desse sentimento : a não conformidade com o cosmos. O terror cósmico é o principio de toda a vida reflexa. A consciên­ cia desse terror crea o sentimento do Universo, de um Todo infinito. A dualidade, eu e' o mundo, e a interpretação das forças ignoradas da natu­ reza passam a ser a cogitação incessante do espirito humano. O sentimento da unidade do cosmos é essencial á consciência antes da sua revelação metaphysica pelo medo ou pela dôr. O espirito tende sempre a voltar a essa uni­ dade, que permanece como o estado profundo e intimo da sua vida inconsciente. O senti­ mento do Infinito, a indeterminação dos seres, a fusão destes n^quelle sentimento, dominam a consciência. E o espirito mysticamente realisa esse sentimento ideal da unidade cósmica nas manifestações transcendentes da sua actividade.
Sem a consciência o Infinito não existiria, nem a Unidade, nem o ser, e sem o sentimento do Infinito não haveria religião, philosophia e arte, manifestações da actividade do espirito, que realisam aquelle sentimento da Uni-
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dade. Se o terror cósmico estabeleceu a duali­ dade, a tremenda separação do Indivíduo e do Universo, procuram a religião, a arte e a philo-sophia restabelecer a homogeneidade universal na indiscriminação dos seres, na integração de todos os seres no Todo infinito.
RELIGIÃO
A Religião é uma melancolia. O homem, deante do espectaculo infatigavel da vida e da morte, do apparecimento e desapparecimento das cousas, sente-se triste, o pavor invade-lhe o espirito, e dessa melancolia nasce a anciã de attribuir um destino a si mesmo e ao Universo, de ligar os effeitos ás causas e dominar o myste-rio. Assim, a religião desponta na alma assom­ brada do homem primitivo e permanece na raiz do espirito humano, d' onde a cultura difficilmente a extirpará. Emquanto existir um enigma no Universo, haverá o sentimento religioso que, além de ser uma funcção psychica do terror, está ligado intensamente áquella aspiração á unidade do Todo infinito, que é o surto irrepremivel e secreto do espirito humano. Por elle o homem se eleva da animalidade ao
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vértice da imaginação creadora, que commu-mente se chama espiritualidade, como para accentuar que todo o sentimento do Infinito é uma pura idealisação, uma abstracção meta­ physica, de que são incapazes os outros seres. E esta manifestação é tão inherente ao espirito humano que só por ella se poderia explicar a religiosidade essencial do homem, sem recorrer ao motivo inicial do espanto e do terror deante dos enigmas do Universo.
Desde que o homem se sentiu separado das outras cousas, antes que a sua intelligencia pu­ desse interpretar scientificamente a natureza, os phenomenos da matéria lhe appareceram como effeitos de cousas mysteriosas animado­ ras do cosmos. O animismo é a mais remota e racial expressão da religiosidade do homem perdido nas enigmáticas apparições de um incognoscivel Universo. As suas raízes são adstritas á alma dos homens e embora chaoti-cas, essas idéas e imaginações ancestraes for­ mam para sempre o substractum da religiosi­ dade humana. Assim, quando mais tarde, por uma elevação da intelligencia, surge a idéa e se organisa o culto de um deus único ou de deuses, que são as expressões de um ideal de belleza superior, o espirito humano insatisfeito volta ao estado inicial dos seus primitivos sen-
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timentos. D'ahi o fetichismo indestructivel, as superstições, que são o desmentido da omnipo-tencia de Deus. Para o homem superticioso ha sempre algum mysterio tenebroso, que a reli­ gião official não explica nem resolve. Deus não basta. Além de Deus, ha o Terror, ha a Fata­ lidade, ha o Destino. A seductora magia do mysterio é inseparável do homem. Se se levan­ tasse o mappa moral da religião, ver-se-ia o fetichismo inexpugnável nos povos mais scien-tificamente apparelhados para domar a natu­ reza, no espirito dos homens mais senhores do mysterioso império das cousas infinitas. Cha­ mem-se essas mascaras modernas do animismo selvagem, espiritismo, theosophia, espiritua-lismo ; por toda a parte é aquelle mesmo mul-tiforme e persistente fetichismo, que escapa á sciencia e á philosophia, zomba da cultura, nos encanta e aterra, e é a < manifestação con­ creta da pura abstracção da alma humana, do maravilhoso mysticismo.
A exaltação espiritual, que arrebata os ho­ mens para além da realidade, transforma a in­ telligencia em sentimento e dá o frêmito infi­ nito ás idéas, ás paixões e vem comprovar essa ardente aspiração á unidade transcendental do Universo, que é a nossa perpetua anciã. Por essa suprema fusão de todas as cousas, em que se
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fragmenta o Todo infinito, voltamos á grande e total inconsciencia, escapamos á dolorosa separação do nosso ser e do Universo. No fundo de todo o mysticismo ha uma realisação da unidade inconsciente e transcendental. No mys-ticismo religioso a alma se julga uma emanação de Deus. A existência na separação do seu Crea-dor é uma condemnação, uma triste peregri­ nação supportada unicamente pela consola-dora esperança de tornar á Essência de que emanou. A união com Deus é a vida perpetua do mystico. E' o toque da divindade em nós, pelo qual somos um com o Universo. « Nada mais divino do que a União, salvo o Um », exclamou Proclus.
O mysticismo não limita o seu vago e ascen-sional encanto á religião. Está em todos os sentimentos transcendentes. O grande Amor' é mystico como a paixão religiosa. Por elle se realisa a união profunda dos dous seres. E nessa suprema unidade o Amor se torna mystico, porque ultrapassa as contingências da matéria, se espiritualisa na maravilhosa fusão das duas essências que, pela magia do magnetismo dos seres, aboliram o espaço e tudo o que limita, e se tornam infinitas e eternas. Assim, a Religião e o Amor se identificam na sua remota e alta significação. No vôo «sublime daidealidade o
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Amor é religião, como a Religião é amor. A felicidade suprema só se realisa na união com o ser amado, seja Deus ou o Amante. Emquanto a grande mystica do Amor divino adora o amado Jesus como um Amante, aquella outra linda Theresa, mystica do amor humano, exclama ao seu amante : « Leio a Imitação e tu és o meu Jesus !» Os dous mysticismos se encon­ tram na mesma paixão sobrenatural, e tudo é Religião. O amor se tornou mystico, um frê­ mito do Infinito divinisou os Amantes. A mystica santa como a mystica amorosa podem dizer do ser amado : « Toda a cousa que vive em ti somente é viva», como no seu êxtase exclamava Santa Maria Magdalena de Pazzi, e ainda mais : « Eu não sou nada, sou uma côusa que vem de ti, que és infinito. Todas as creaturas que comprehendem o teu amor, tornam-se infinitas, porque comprehendem as cousas infi­ nitas ». E' a mesma anciã do Infinito, o mesmo exaltado desejo da conformação total do nosso Ser no Universo. Na religião os sexos se attráem, como na paixão do amor, para realisar a união mystica dos Amantes, suprema aspiração das nossas inquietações no exílio do mundo.
O animismo torna universal a Religião, porque pela sua magia tudo se vivifica, se espiri-tualisa e se divinisa. Esse animismo se engran-
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dece'desde as fôrmas mais rudes e selvagens até ao pantheismo religioso de Buddha e de S. Fran­ cisco de Assis. E' a mesma força motora do espirito que faz de todas as expressões do Universo as múltiplas imagens da divindade, uma perpetua e infinita representação da causa única, de Deus. Produz-se na alma mystica o maravilhoso processo da humanisação de toda a natureza, que inspira a trama de uma fraterni­ dade e liga os iniHimeraveis seres, em que se fracciona o Todo. O Cântico ao Sol de S. Fran­ cisco, em que o pantheismo christão alvorece, como toda a primavera do mundo adormecido, é o primeiro toque da renascença do espirito moderno, a magnífica idealisação do culto solar dos selvagens, agora poesia, musica e alma da fraternidade de todas as cousas da natureza. Desse pantheismo, ainda impregnado do senti­ mento da permanência individual, se chegará pelo mysticismo áquelle conceito buddhista da negação da substancia real, do não-ser, do anni-quilamento final do Universo, cuja existência é uma pura idealidade. Todas as formações são passageiras, proclama o Buddha, todas as formações são sujeitas á dôr, todas as forma­ ções são sem substancia real. Quando se está bem possuído desta verdade ultima, é a liber­ tação da Dôr. E' o caminho da perfeição.
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Esse supremo conceito pantheista da reli­ gião se torna esthetico. Para o mystico que che­ gou pelo surto espiritual a abolir a existência individual de Deus, para animar e divinisar o Todo, a comprehensão do Universo é pura­ mente espectacular, é o sublime jogo das for­ ças da natureza que se multiplicam em imagens, são expressões cambiantes e infinitas das fôrmas e das cousas. Assim, a Religião, a Arte e o Amor confluem maravilhosamente no espirito humano, ávido de voltar á grande inconsciencia da natureza.
Na aurora do espirito humano a religião e a philosophia se confundem e dão do Universo a mesma visão. Pouco a pouca a investigação da matéria, a interpretação scientifica da natu­ reza crearam a philosophia e a distinguiram da pura religião. O senso religioso inseparável do homem tornou-se philosophico. A philosophia veiu principalmente apoiar a religião, quando, quebrando a unidade do Todo, institue a per­ turbadora dualidade do espirita e da matéria. Reapparece a funcção psychica do terror e de novo se volta, mesmo na extremada cultura da intelligencia, ao animismo primitivo, racial no homem. Procura-se ligar todos os effeitos ás causas, remontando até á causa única crea-dora de todas~as.cousas. Repete-se com Parme-
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nides que além do movimento ha o eterno repouso da substancia final, que attingiu ao máximo do seu desenvolvimento. A idéa de Deus se funde desse modo na metaphysica do terror, no simples animismo. A religião afllrma-se inexpugnável no espirito do homem perdido na grande inconsciencia do cosmos. A activi­ dade do homem, a sua acção pertinaz, o seu combate de todos instantes com a natureza, nada extirpa da imaginação nascida do terror o sentimento religioso que funde todo o Universo no conceito de uma substancia creadora das outras fôrmas, que é Deus. Por mais que se vença a natureza e seja ella incorporada pela dominação ao.nosso espirito, ha sempre para a imaginação mystica do homem alguma cousa de inabordavel, de mysterioso, que a sciencia não pôde domar. No espaço infinito das trevas que assombram o espirito humano, trava-se o perpetuo combate e^itre a religião e a sciencia para a explicação final do Universo. A sciencia não poderá jamais satisfazer a anciã do espirito, que aspira realisar a unidade do cosmos. Só ha sciencia do'que é fragmentário. O supremo sentimento do Todo infinito se realisa pelas sensações vagas e mysticas da Religião, da Philosophia, da Arte e do Amor, que fundem o nosso ser no Universo.
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Se o terror é o ponto de partida da religiosi­ dade do homem, o terror desapparece, extingue-se, quando pela própria religião se fôrma a suave unidade do nosso ser e do ser creador. Pela máxima espiritualidade da religião voltamos ao ineffavel estado de inconsciencia inicial de todos os seres indiscriminados no Todo infinito.
PHILOSOPHIA
Não ha maior angustia do que a nossa sepa­ ração do Todo universal. E' a dôr suprema da intelligencia humana. A consciência creou esse terrível soffrímento; é preciso que a consciência o elimine pela comprehensão da Unidade essen­ cial do Todo, do qual a nossa distincção é apenas illusoria. Se podemos pensar o Universo, é ainda para nos sentirmos um com elle, sentirmos que não somos uma realidade e que tornamos á inconsciencia profunda e eterna do Todo. Eis a ineffavel consolação para a perpetua dôr em que se abysma o nosso ser illusorio.
Em vez dessa salutar concepção da substancia e dos seus phenomenos, as outras explicações do Universo e do nosso eu, mantendo a separação entre um Creador e a cousa creada, distinguindo
PHILOSOPHIA 21
a matéria e o espirito, só vêm perpetuar a angus­ tia do ser que se comprehende como eterna­ mente separado do Todo universal, prisioneiro de uma consciência metaphysica, que faz da illusão a imaginaria realidade.
A esta triste philosophia dualista oppomos a radiante philosophia monista, que só ella pôde suscitar a verdadeira esthetica da vida, A inter­ pretação scientifica do Universo, que é o co­ meço da philosophia e emancipa da religião o espirito, distingue o monismo philosophjco do monismo religioso, que reduz tudo á unidade Deus. No período do puro animismo fetichista o homem não procura explicar os enigmas da natureza e reduzil-os ás leis que seriam os germens da sciencia do cosmos. O seu mysti-cismo, ainda muito próximo do terror inicial da separação do Todo, é integral, e por elle toda a matéria é divina, é a expansão, aprojecção de um ser creador remoto, tenebroso e temível, é Deus.
Quando mais tarde, ainda na aurora da intelli­ gencia, o homem disassocia os phenomenos da natureza e tenta explical-os e domal-os pelas leis, o Universo cessa de ser um todo para ser um conjuncto de fragmentos. Esta decomposi­ ção da matéria, este estudo dos phenomenos da natureza é a sciencia, que dá ao homem uma
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visão fragmentaria do Todo infinito. O espirito humano não se pôde restringir a essa bmitação. Por uma fatalidade essencial, aspira entender o Universo, e a realisação da idéa transcendental do Todo infinito, sem distincção de partes, o Todo absoluto, é, como já\imos, o facto supremo da consciência humana. E como o mysticismo religioso desfalleceu deante da explicação scien-tifica dos phenomenos do Universo, o mysti­ cismo philosophico, que não desdenha a sciencia e antes a funde numa grande unidade, floresce no espirito humano, ancioso de eliminar a sua dolorosa separação do Todo infinito.
Desde os tempos mais remotos do pensamento, a philosophia, confundindo-se ainda com a reli­ gião, exprimiu a anciã dessa unidade ulüma, em que a nossa fugaz individualidade se extin­ gue para sempre. O tormento da separação do homem e do Universo cessou para Orpheu, para Buddha, mas nesses systemas primitivos a religião se confunde com a philosophia. O senso religioso se torna philosophico pela sua exten­ são, como a philosophia pela condensação se torna religião.
A concepção monista do Nirvana poderia ser uma apparencia desse conceito supremo do Universo, que é a base da esthetica da vida. Não ha duvida que o buddhismo viu com jus-
PHILOSOPHIA 2 3
teza a alma individual permanente e immuta-vel, como o principio que mantém a separação entre os seres, impede a libertação espiritual e perpetua a dôr. Também a hypothese do renascimento, a roda dos nascimentos do orphis-mo, o eterno retorno ás mesmas fôrmas e ás mesmas existências, seria a perpetuidade do mal, do soffrimento e a inextinguivel separação do ser e do Todo infinito.
O Nirvana surge nessas terríveis, angustias do espirito, que busca a libertação da própria existência, como a feliz concepção da unidade final e absoluta do Universo. Mas esse termo ultimo a que se pôde chegar em plena vida, e não pela morte, é o fim de todo o desejo. Para o mystico do Nirvana toda a actividade é uma expressão de dôr; apropria contemplação do Universo, a meditação, o pensamento, o goso transcendente da vida suprema do Todo são fôrmas da permanência individual, que nos afastam da beatitude, em que se extinguem para sempre o prazer e o soffrimento. A essa attitude passiva e incompatível com a própria natureza, que é ella mesma a perpetua acção, opporemos o conceito da unidade universal realisada pela própria consciência, que nos dá a miragem sublime da inconsciencia infinita. Para se attingir ao Nirvana, o buddhismo fixa
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uma lei moral. Para extinguir a dôr é necessária a piedade, a compaixão que se torna sympathia universal, solidariedade entre todos os seres do universo e responsabilidade de cada um para com a natureza inteira. O buddhismo se accentua mais como religião do que como philosophia.
O anniquilamento do nosso próprio ser, que se pôde comprehender mysticamente, lucta, na realidade talvez illusoria, mas realidade para nós, com a natureza, que faz da conservação do ser a razão primeira da existência. E' a observação d'onde se originou, o principio philosophico de Spinoza, de que toda a cousa em si se esforça em perséverar no seu ser. E d'ahi toda uma ethica baseada nesta máxima : o esforço de um ser para se conservar é o primeiro e único funda­ mento da virtude. E' a opposição á doutrina do buddhismo, que estabelece a ethica contraria da dissolução do ser individual no Todo infinito. Mas a concepção de Spinoza se alarga, quando procura conciliar o egoísmo do ser com a sympa­ thia universal entre todos os seres. « Os ho­ mens, diz elle, nada podem desejar de melhor, para a conservação do próprio ser, que esse amor de todos em todas as cousas, que faz que todas as almas e todos os corpos formem por assim dizer uma só alma e um só corpo... »
Infeüzmente, esse conceito, de uma vastidão
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essencialmente pantheista, se termina no pensa­ mento de Spinoza como uma ethica, em que o inconsciente é substituído pelo consciente, pela vontade do bem, como uma necessidade, uma utilidade á conservação do ser. E recahimos no dualismo separador do Universo e do nosso eu.
Não se pôde attingir a esta suprema fusão no universal, quando todos os conceitos relativos do bem, do útil, do bello, emfim tudo o que é individual persistir no nosso espirito. Não ha duvida que Spinoza se approximou mais que ninguém da concepção essencial da Unidade infinita dos seres, quando affirmou que o homem é uma infima parte da natureza eterna. A idéa da parte e do todo ainda é uma idéa de separação.
Ha uma unidade secreta e infrangivel na ma­ téria universal. Os seres que vemos distinctos uns dos outros, participam todos dus mesmos elementos immorredouros e todos têm a mesma e indissolúvel essência physica. Aqiielles reinos, em que se costuma separar a naturezia, são da mesma origem e da mesma substancia, e elles se entendem secretamente entre si. A theoso-pliia hindu percebeu esse grande mysterio, quando assignalou na escala ascendente dos seres os mineraes que aspiram ao reino vegetal e os vegetaes que se tornam animaes pelo desejo da perfeição, e attingindo todos a uma absor-
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pção definitiva no ser divino e recomeçando im­ pávidos a marcha forçada e eterna do ser e do não ser, passando perpetuamente pelas mesmas vias dolorosas da peregrinação da existência universal. Eliminando-se o que ha ahi de mys­ tico, subsiste inapagavel nessa esplendida ima­ ginação a verdade absoluta da unidade essencial da Natureza, principio em que se baseia a con­ cepção esthetica da vida.
Esse principio da unidade fundamental da matéria universal exige como corollario o con­ ceito da mutação infinita dos seres, em que se fracciona apparentemente o Todo. O erro que proclama a permanência immutavel de cada ser no seu próprio ser, anniquilando-se total­ mente pela morte sem se transformar em ou­ tras expressões da matéria e sem a communica-bilidade com toda a Natureza, de que é um simples aspecto illusorio, mantém no nosso espirito a perpetua dôr da nossa separação do Todo infinito. Ao passo que no conceito do Universo, como unidade infrangivel de toda a natureza, a vida dos seres seria a da perpetua alegria pela eliminação do terror metaphysico.
Desse conceito transcendental, que exprime a concepção.esthetica do Universo, como o perpetuo fieri de fôrmas infinitas e incessantes, origina-se toda uma ethica para o espirito humano, em
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cuja consciência se reflectem instantaneamente a inconsciencia universal e a magia do Todo. E não só por essa percepção, mas ainda para realisar em toda a sua plenitude a esthetica da vida, o homem tem de realisar três grandes movimentos espirituaes. A philosophia da uni­ dade é uma philosophia de acção, que regeita a passividade do Nirvana, proclama que só pela actividade o espirito se pôde tornar um com o Universo, extinguir todas as separações e fundir-se esplendidamente no Todo infinito. As três grandes disciplinas em que se baseia a ethica desta esthetica da vida, são : Io resi­ gnação á fatalidade cósmica; 2o incorporação á terra; 3o ligação com os outros homens.
São esses os trabalhos moraes do homem dentro das categorias em que fatalmente tem de existir, Universo, Terra, Sociedade.
Deante do Universo o homem, inspirado pelo puro pessimismo negativo, dirá: a vida é uma illusão, uma série de imagens de uma rea­ lidade jamais attingida e jamais positiva. Só a morte é positiva, ella é a entrada, o accesso do ser no absoluto inconsciente do Universo, o fim da illusão instantânea da consciência, que apparece- como uma luz fugitiva na infi­ nita indifferença da matéria. Oh ! a estupidez aterradora do Universo, a impassibilidarle
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inabalável e silenciosa da matéria perpetua-mente movei! A ausência total da intelligencia, do pensamento, emquanto toda a matéria se move, se agita e vive a vida inconsciente !... E o espirito do homem se confrange e jamais se resignará ao seu próprio anniquilamento no inconsciente cósmico.
Para aquelle, porém, que, possuído do senti­ mento espectacular do Universo, affirma que não há um destino moral, nem político, nem religioso, um finalismo de qualquer ordem no perfeito jogo das forças da natureza, ha o sen­ timento profundo de que o Universo se re­ presenta como um espectaculo, em que só ha fôrmas, que se succedem, multiplicam, morrem, revivem, n'uma metamorphose infatigavel e deslumbrante. Desse espectaculo universal, somos uma apparição phantastica e passageira e, na inconsciencia da representação, da vida se fôrma, se abre um intervallo, quando uma dessas apparições instantâneas do mundo phe-nomenal, que somos nós, pôde conceber a magia do Universo. E' a maravilha da con-ciencia, o espelho divino do Universo, que reluz por entre as trevas profundas do inconsciente absoluto e no infinito e inquebrantavel silencio dos outros seres.
Esse conceito esthetico do Universo é a base
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da perfeição. A manumissão do nosso espirito, a libertação da Dôr e da Alegria a alcançamos quando esse conceito philosophico se transforma em sentimento. A vida esthetica se abrirá para nós em todo o seu mysterio fascinador. Como já se disse d'aquelles pensamentos tão leves que não podem ser pensados, esse sentimento da esthetica universal é tão subtil que não pôde ser sentido... Existe e não se exprime, mesmo não se sabe como é sentido, porque não chega a se separar da inconsciencia profunda, em cujas ondas voga como uma vibração innomi-navel. E nós nos absorvemos nesse mundo phe-nomenal, em que tudo é fôrma ou illusão das fôrmas. Ainda assim, a vida é acreação do nosso pensamento, e sem elle esse mundo mágico pôde existir, mas é como se não existisse, e nem mesmo pôde ser concebido...
E não ha fim na corrente indefinida da creação. A própria obra de arte é representação, mas a ella se junta outra creação, a do simples espirito, que se commove e a transforma em cousa sua. O nosso pensamento obedece, como a natureza, ao rythmo do Universo, á fatalidade de crear fôrmas. E nós « pensamos » o nosso próprio pensamento, uma immensa vertigem nos empolga e cahimos nesse abysmo de imagens, que não sabemos se são os aspectos reaes das cousas ou
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as illusões da idéa creadora. Nessa conformação entre o pensamento e a Natureza, tudo é um só e indefinido mundo de representação, tudo é espectaculo, e ninguém pôde dizer se ha um mundo objectivo e outro subjectivo, porque tudo é um, a unidade absoluta e bemfazeja do Universo.
A grande fatalidade do espirito humano foi ter percebido o espectaculo universal. Mas, que essa divina allucinação inspire o sentimento da esthetica da vida. Façamos de todas as nossas sensações, sensações de arte. E' a grande trans­ formação de todos os valores da existência. Não só a fôrma, a côr, o som, mas também a alegria e a dôr e todas as emoções da vida sejam comprehendidas como expressões do Universo. Sejam para nós puras emoções estheticas, illusões do espectaculo mysterioso e divino, que nos empolguem, nos arrebatem, nos confundam na Unidade essencial de todas as cousas, cujo silencio augusto e terrível perturbamos um instante pela consciência que se abriu, como um relâmpago, nas trevas do acaso...
A cultura ha de se inspirar nesse conceito e ha de abandonar todos os outros que fazem da vida um debate moral. E será a libertação. Passaremos a ter a consciência de que somos uma força entre as forças universaes, e assim
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entramos na vida eterna, na vida da natureza, realisando com esta a communhão absoluta e mysteriosa, que é o termo final da'dolorosa separação do nosso eu do Todo infinito.
Possuídos desse sentimento da universali­ dade do nosso próprio ser, a outra actividade espiritual a que somos chamados, é a da nossa incorporação á Terra. Nascido da Terra, o homem ficou para sempre ligado a ella. Todo o seu organismo é uma expressão do meio physico, de que se originou. Nada no corpo humano que não seja uma immorredoura remi-niscencia da sua formação terrena. O seu sangue bate ainda o rythmo das quentes marés dos pri­ mitivos oceanos, em que se germinou a vida animal. A historia da Terra se gravou no nosso organismo e nós a resumimos. Parecendo ser um prolongamento do meio physico de que pro­ viemos, somos apenas uma recapitulação. Tudo em nós é a Terra viyificadora e magnífica. A composição chimica dos seus mineraes, a combinação mineral do seus vegetaes, tudo se encontra em nós: a nossa vibração é a sua, as molleculas do nosso corpo e tudo o que é mais secreto em nós participa do mysterio da Terra, vivemos delia perpetuamente, unidos a ella para sempre na vida e na morte.
Filho da Terra, o homem dá-lhe a alma.
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Elle é a intelligencia, a força subtil e immortal que lhe crea uma personalidade e a faz divina. A nossa historia moral se passou intimamente com ella. Do seu mysterio vieram os phantas-mas, os deuses da nossa alma primitiva e de sempre... Do seu inconsciente nasceu o nosso consciente. Ora, por essa suprema indentifi-cação, devemos fazer da Terra o centro espiri­ tual da nossa actividade. O seu culto é um exercício de amor, que reconhece que o homem e a Terra são um só. Façamos dessa compre-hensão uma expressão esthetica do nosso espi­ rito, e será uma victoria sobre o terror. O maior repouso da natureza humana é a sua identifi­ cação com a natureza universal. Ser um com o Universo ! E o conhecimento que leva a esse repouso é o maior dos conhecimentos.
A outra categoria em que o homem deve exercer a sua actividade espiritual, é a da liga­ ção com os outros homens. Esse mandamento não é inspirado por nenhuma razão de ordem religiosa, por nenhum mysticismo de piedade ou de sympathia, como no christianismo ou no buddhismo. Elle é a deducção lógica da própria concepção philosophica da unidade do Todo e uma das bases da esthetica da vida. A aspira­ ção fundamental do espirito humano, a sua essência, é a sua fusão no Universo. Se o homem
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diz : « eu penso, logo eu sou », affirmando" que elle é um ser, não se deve concluir desse conceito:
que a sua individualidade se desprende das outras cousas; ao contrario, é uma confirmação de que elle é um com tudo mais, e toda a natu­ reza vive nelle, como elle em toda a natureza. Não ha nada individual ou particular, tudo é universal, e o próprio pensamento é funcção dessa universalidade.
Ora, se essa communhão é essencial entre os seres em que se fraccionou a illusão do Universo, ella não pôde deixar de inspirar a sociedade dos homens, isto é, de todos os seres que percebem na sua consciência a grande inconsciencia metaphysica do Todo, a idealidade do Tempo, o fluxo e o refluxo apparente da vida e da morte. E nessa solidariedade profunda as cau­ sas de separação entre os homens, futil distincção para aquelles que vivem na trágica amargura das separações, que é a nossa distincção individual do Todo infinito, seriam extinctas separações creadas pelo Terror, mesquinhos ódios humanos^ que só servem para augmentar a immensa tristeza dos nossos espíritos. A concepção esthetica do Universo, dando ao homem a lu­ minosa comprehensão da sua unidade com o Todo infinito, eliminaria o Terror da vida hu­ mana, basearia a sociabilidade na Alegria, que,
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segundo percebeu Spinoza, é o bem supremo. E a alegria, que é a perfeição do espirito humano, só se pôde realisar em sua plenitude pela inter­ pretação do Universo como um magnífico espectaculo e nós mesmos como puros, simples e fugazes elementos estheticos da indefinivel vida universal.
A PERPETUA DOR E A PERPETUA ALEGRIA
Aquelle que comprehende o Universo como uma dualidade de alma e corpo, de espirito e matéria, de creador e creatura, vive na perpetua dôr.
Aquelle que vê toda a natureza universal terminada no seu próprio ser, vive na perpetua dôr.
Aquelle que não percebe o mysterio da Uni­ dade infinita do Todo, que ignora esse segredo supremo da existência e limita o seu conheci­ mento aos factos positivos da matéria, vive na perpetua dôr...
Aquelle que eliminou o terror do cosmos e
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faz do anniquilamento da vida uma razão de belleza, vive na perpetua alegria...
Aquelle que transforma em belleza todas as emoções, sejam de melancolia, de tristeza, prazer ou dôr, vive na perpetua alegria.
Aquelle que se sente um com o Universo infi­ nito e para quem todas as expressões da vida universal são suas próprias sensações, vive na perpetua alegria...
Aquelle que encontra o repouso na sua absor-pção no cosmos, vive na perpetua alegria. Beatus quia in natura unus.
Aquelle que pelas sensações vagas da fôrma, da côr e do som, se transporta ao sentimento universal e se funde no Todo infinito, vive na perpetua alegria.
Aquelle que sabe que o seu ser não é perma­ nente, mas uma simples apparição do Nada, que se transforma indefinidamente, vive na per­ petua alegria.
Aquelle que sabe ser a sua consciência uma illusão, que não tardará a voltar á in­ consciencia universal, e faz da sua existência
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o jogo maravilhoso dessa illusão, vive na perpe­ tua alegria...
Aquelle que se resigna á fatalidade cósmica, que se incorpora á Terra e ahi busca a longínqua e perenne raiz da sua vida; aquelle que se liga docemente aos outros seres, seus fugazes com­ panheiros na illusão universal, que se vão todos abysmando no Nada, vive na perpetua alegria.
Aquelle que une o seu ser a outro ser nessa profunda e mystica união dos sentidos e das emoções, dos espíritos e dos corpos, e na sublime fusão do Amor realisa a universal unidade, esse vive na perpetua alegria...
ARTE
Na trágica situação do homem no Universo, o sentimento predominante no seu espirito é o da unidade infinita do Todo. Pela compre-hensão, pela intelligencia, o homem chega ao conhecimento exacto das partes em que se fragmenta e se decompõe o Universo. Mas o espirito humano vae além dos limites da sciencia
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e da comprehensão, sente que o Universo é essencialmente um todo infinito apparente-mente fraccionado. 0 sentimento d'essa uni­ dade, quando se realisa pelos contactos sensí­ veis com a natureza, pelos sentidos corporaes, transportando as sensações até á altura de emo­ ções vagas, indefinidas do Todo, constitue a essência da arte. Esse senso esthetico é inherente ao homem, como o senso religioso, com o qual se assemelha, sendo que a arte reside na emoção do Universo que provem dos contactos do homem com a natureza e é transmittida pelos sentidos, produzindo-se em fôrmas, cores, sons, sabores e tactos, e a emoção religiosa é abstracta e independente dessas expressões sensíveis.
Sendo uma funcção inseparável e primordial do espirito humano, o sentimento esthetico, como o religioso, não está subordinado a uma razão de utilidade social. E' uma faculdade essencial ao espirito, como a de pensar e de imaginar, e uma das manifestações psychicas da unidade primitiva do Todo, cuja realisação transcendente é a suprema aspiração do homem no degredo da consciência metaphysica. A arte é índifierente á utilidade. A emoção originada da fôrma ou do som, a que nos vem da pintura, da esculptura ou da musica, é inteiramente extranha ao útil. Essas emoções nascem das
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sensações e nos dão o sentimento vago do Universo. Como, pois, considerar o útil o prin­ cipio gerador da emoção esthetica ? A idéa de utilidade não está na origem nem no fim do sentimento da arte. Se alguma cousa de útil pôde resultar da sensação do Universo, é o conhecimento das suas partes, que a sciencia nos communica pela analyse. A sciencia decom­ põe o Universo, discrimina-o, estuda-o nas suas manifestações parciaes. Só ha sciencia do que se pôde fragmentar. Póde-se analysar, explicar cada ordem de phenomenos percebida pela sensação; a sciencia não dará jamais a explicação synthetica do Todo, a essência da causalidade. Ella ficará extranha ao sentimento da unidade infinita do Universo, que só nos pôde ser reve­ lada pela religião, pela philosophia, pela arte.
A interpretação esthetica do Universo, func-ção intima do espirito humano, não obedece a nenhum plano da natureza e nem a um principio de utilidade social. Antes da sociedade humana está o espirito do homem com as suas forças mysticas, independentes e desinteressadas. A natureza não tem um fim moral, religioso ou philosophico, A sua inconsciencia é absoluta, e a illusão de sua vontade fictícia está na magia do seu próprio espectaculo, perpetuamente se-ductor. Reflectir esse espectaculo universal,
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transmittir a illusão dessa realidade, que se illude a si mesma, não deixar fora do prisma nenhum insignificante e mysterioso personagem da existência total é o milagre da arte.
Não é somente da utilidade, da idéa do útil, que o conceito da arte deve ser disassociado. Também se deve libertar da idéa de belleza, attribuida como o fim supremo da arte. A asso­ ciação da idéa de belleza á idéa de arte é pertur­ badora para a verdadeira explicação do senti­ mento esthetico. Nenhum preconceito tem sido mais vivo do que este que faz do bello o fim da arte e a sua razão de ser. A essência da arte, que está naquelles sentimentos vagos da uni­ dade do Universo communicados pelos contactos sensíveis, não se pôde restringir ao conceito abstracto do bello. A arte não reside somente naquella sensação indeterminada do que conve-vencionalmente se chama belleza. Esse conceito do bello não abrangeria o sentimento da unidade infinita do Todo, já denominado o facto su­ premo do espirito humano. Alheio a elle, limitar-se-ia a suscitar o prazer, sem chegar á totalidade transcendente da emoção esthetica. Que é a belleza ? Como precisar a idéa do bello ? Nada mais indefinivel e incerto. A belleza em si, a belleza objectiva, é uma idéa abstracta, cujo subjectivismo é infinitamente variável. O bello
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é um perpetuo equivoco entre os homens. Subordinar ainda a idéa de belleza á idéa de harmonia é um simples jogo de palavras, que não vem esclarecer o problema e substitue uma idéa vaga por • outra do mesmo valor.
A idéa de harmonia é também incerta [e con­ vencional ; é um preconceito geométrico que pro­ vem da tradição grega. A belleza não lhe está indefinidamente associada e existe fora do seu império. A idéa de belleza é indefinivel, e o ideólogo Pascal, mesmo, percebeu a sua relativi­ dade, quando reconheceu que « apezar de gra­ vada em caracteres indeléveis no fundo da nossa alma », a idéa de belleza está sujeita a enormes contingências na sua applicação. Comprehen-dendo que o elemento pessoal fatalmente determina a idéa que cada um fôrma da belleza, diz Stendhal que « a belleza é uma promessa de felicidade.» Pura formula subjectiva, que asso­ cia a belleza ao prazer, á alegria, mas que, sendo uma idéa incompleta, não é a base, a razão única da emoção esthetica e fica independente da arte. Já se disse que por essa seductora promessa do prazer, Stendhal fazia pensar na belleza feminina, que seria o espelho imaginá-
*rio do bello absoluto e ideal. Assim reduzida, a belleza, que seria a belleza humana, ou mais restrictamento a belleza da mulher, não pôde
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conter toda a arte. Ha mil outras emoções artísticas que lhe são extranhas. Como se expli­ caria a emoção musical ? a que nos vem da architectura ? A belleza não é a.essência da arte, que sempre exprime a totalidade universal pelos sentimentos vagos nascidos dos contactos sensíveis. A felicidade é o bem, e o bem é a alegria. A belleza, promessa da felicidade, seria a promessa da alegria, e ha uma arte inspi­ rada do terror e gerada pela dôr. Tudo isto é de ordem sentimental e alheio á expressão objectiva das cousas, ás fôrmas, ás cores, aos sons, aos tactos e á emoção poética creada pela imaginação. A idéa do prazer e da felici­ dade abrange ainda o que está além do mundo sensível das fôrmas. A alegria mystica do espi­ rito religioso em communhão perpetua com a divindade é um gozo ineffavel, mas indepen­ dente da arte.
Aquelles que não percebem no sentimento esthetico o sentimento do Infinito no espirito humano, mysteriosa emoção da unidade do Todo infinito, limitam-se a vêr na arte um desen­ volvimento dessa faculdade muscular dos ani­ maes, cujo excesso se manifesta no jogo e no divertimento. Esta theoria remonta a Hume e ** foi adoptada por Kant, para quem a arte é o livre jogo da nossa imaginação e do nosso senti-
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mento, e por Schiller, que proclamou no «jogo » a essência da arte. A escola evolucionista de Spencer, Grant Allen, Guyau e Ribot apoderou-se dessa explicação para determinar a origem do sentimento do homem na impulsão para o jogo, já manifestada pelos animaes, como effeito da nutrição e do excesso de força nervosa. Para esses psychologos a emoção esthetica differe das outras emoções conservadoras do homem social, « porque a actividade que a pro­ duz não tem por fim o cumprimento de uma funcção útil e social, mas o prazer mesmo de exercel-a. Não é vital para o homem, não lhe é essencial, e pôde ser considerada inútil e supérflua.»Disassociando assim por um instante a idéa de utilidade da idéa de arte, a escola evolucionista se contradiz, quando affirma de novo que a emoção esthetica é um factor da soei abi li d ade humana, útil á conservação do indivíduo e da espécie.
Tal é a mesquinhez a que fica reduzido o ineffavel sentimento esthetico que nos dá a emoção do Infinito I Afíirmam que a actividade inicial das nossas faculdades physicas e moraes se subordina a um fim immediato, que é o da conservação do indivíduo e a adaptação deste ao meio, como se a faculdade de pensar a maté­ ria, de imaginar um deus, ou de se commover
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pelo sentimento da unidade do Todo, fossem actividades destinadas ao fim da conservação da espécie humana. O jogo é um dos effeitos, uma das expressões dà arte e não a razão do senso esthetico; está mais ligado á physiologia dos movimentos, á mechanica animal do que ao sentimento. Os animaes são desprovidos de senso artístico, porque lhes falta o sentimento do Universo, causa primordial da emoção esthetica, como da philosophia, da religião e do amor.
Para mostrar a transição entre o jogo, movi­ mento inconsciente de prazer, e o jogo creação artística, aponta-se geralmente a dansa como a arte mais primitiva, aquella que representaria a passagem do movimento physiologico ao sentimento esthetico. Ha uma precedência entre as artes ? Ha verdadeiramente uma hie-rarchia entre ellas ? Não"éo apparecimento das artes simultâneo no remoto e indeciso instante em que o espirito humano se commove no terror do mysterio do cosmos ?
Quando o homem primitivo manifestou a sua alegria de viver ou disfarçou a angustia da sua alma, protegendo-se das calamidades da natureza, esculpindo nas rochas a imagem dos animaes seus companheiros ou seus deuses, dansando no pavor da noite ou ao esplendor do sol, gritando e modulando o seu êxtase
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rude, um artista selvagem complexo e total, um architecto, um esculptor, um dansaríno, um musico, surgiam ao mesmo tempo da cons­ ciência metaphysica desse terror inicial, que marca a separação do homem e do Universo.
Por terem as artes essa mesma origem mys­ tica e simultânea, não se segue que o desenvol­ vimento de cada uma dellas tenha sido disasso-ciado e desegual. A evolução das artes se explica pela própria evolução do espirito humano. Como o mysticismo religioso recebe as influen­ cias da evolução social, assim também a arte e a philosophia, que são expressões da intelligencia. O amor poderia ser considerado immovel na sua essência, na sua fatalidade inconsciente, mas a sua espiritualidade fica dependente do ambiente social e da transcendência moral dos amantes, portanto da evolução do espirito humano.
E nessa determinação individual e collectiva, que modifica o pensamento e o sentimento, tem-se a explicação do desenvolvimento desegual das artes. Ha epochas de esculptura, como de pintura e de musica. A esculptura foi uma arte preponderante na Grécia, não só pelas condições physicas e sociaes conhecidas, como também, e assim percebeu Schopenhauer, por ser uma arte em que o optimismo pagão se reflecte na repro-
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ducção da figura forte e serena dos deuses ale­ gres de viver, e dos homens que parece terem descido do Parnaso e pousado um instante na atmosphera suave da terra.
A pintura triumphante na Renascença é a do homem christão, a expressão dolorosa, enigmática de uma alma que sente que tudo é nada, devorada pelo pessimismo, e pede á loucura sensual o frenético esquecimento. Mais tarde, em nosso tempo, a pintura se alarga, o assumpto humano não lhe é exclusivo, o christianismo não a absorve completamente; outro personagem intervém, é a Natureza. E esse movimento coincide com o surto do pan­ theismo philosophico e litterario. O eixo do mundo moral mais uma vez fica deslocado. Na Grécia os deuses, na Renascença o homem, nos tempos modernos a Natureza. Ainda como exemplo da influencia da cultura geral na trans­ formação da arte, notemos, sob o ponto de vista estrictamente artístico e formal, o que era a esculptura na Grécia e o que é ella hoje, depois do advento da biologia. Para o artista grego o homem é um deus, que desceu á terra. Para Rodin o homem é um animal que vem da natureza e sobe do gorilha. Na primeira con­ cepção a arte é representativa da harmonia geo­ métrica de um conceito religioso; na segunda,
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a arte é biológica e entranhadamente animal. Mas em ambas a essência da arte esculptural se manifesta esplendidamente. E' inútil insistir no destino da architectura em obediência ás transformações espirituaes do homem e ás condições da vida collectiva da humanidade. Seja o triângulo do Parthenon, seja a esguia torre gothica, seja a ampla linha horizontal de palácio, seja a núa e vasta ofiicina, em tudo a arte eterna exprime a perpetua tragédia do espirito humano por entre as modalidades da civilisação.
O magnífico surto da musica contemporânea corresponde ao espirito de uma epocha, em que a unidade da Natureza é a base e a inspiração do pensamento. Nenhuma outra arte poderia exprimir com mais segurança e mais emoção os sentimentos vagos determinados pela intui­ ção da unidade do Todo infinito do que a musica, que é a mais vaga e a mais emotiva das artes. Pela sua fluidez ella transforma a natureza em sentimento; não se limitando a interpretar, ella realisa a Unidade universal. Wagner notou com exactidão « onde as outras artes dizem : isto significa, a musica diz : isto é. » O enigma do repentino e maravilhoso período musical do nosso tempo fica resolvido pela própria essência da arte, e não, como querem os puros
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physiologistas, pelo aperfeiçoamento do sentido do ouvido. A musica é a arte que realisa melhor e mais rapidamente a fusão do nosso espirito com o Todo. Parece que por ella os seres se unem, que o espaço, tudo o que separa, desapparece, o Universo se restringe e faz um só corpo com tudo o que existe.
Se tal é a magia da-musica, que usa do seuN
poder illimitado para transmittir a emoção total do Infinito, as outras artes também pelos seus meios de expressão communicam e inter­ pretam os sentimentos vagos da unidade uni­ versal. Pela dansa o ser humano exprime essa emoção. O puro gesto seria mechanico e animal, uma simples manifestação do ser que vive e se agita. Quando, porém, esse movimento é inspi­ rado por um pensamento, embora muito obs­ curo, e vem traduzir uma emoção intima, a dansa apparece nesse primitivo rythmo.
Pela dansa o homem manifestou as suas rudimentares emoções mysticas e o vago terror da natureza, O sentimento remoto da religião se exprimiu pela dansa, quando o homem se agitou deante do sol e das outras divindades naturaes, implorando protecção. O pensamento transformou em arte essa primeira sutura entre os gestos animaes, o puro diverti­ mento physiologico e o movimento reflexo da
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commoção religiosa. O artista da dansa se torna um artista creador como os interpretes das outras artes. O dansarino reproduz nas suas attitudes as imagens que lhe vêm ao cérebro para exprimir os sentimentos. Elle vê a série do seu pensamento exteriorisar-se em figuras como uma successão de estatuas em movimento, e essas fôrmas reproduzem a sua própria fôrma multiplicada, variada infinita­ mente. Se no correr dos tempos a dansa se associou á musica e á poesia, a sua disassociação destas artes é possível, e assim voltaria a dansa á sua qualidade primitiva e seria ainda mais mystica e silenciosa, porque a emoção do ar­ tista só seria manifestada por Unhas moveis, silentes, sem o grito da alegria e do medo, que animava a gesticulação do dansarino selvagem.
Sem duvida, no apparecimento simultâneo das artes, não foi a dansa que deu origem á esculptura, mas a sua influencia na estatuaria foi decisiva. A esculptura surprehende e fixa os movimentos desenvolvidos na dansa, sugges-tionando ao espirito a continuação desses movi­ mentos. A fôrma é uma expressão cósmica e o movimento é a vida universal na fôrma. Na estatua, o que fascina e attráe é o repouso, a necessidade que o nosso espirito tem da conti­ nuação do movimento, que não se produz
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materialmente, mas que se completa na nossa imaginarão. Na dansa a estatua está em movi­ mento, tem-se a sensação do vago, do perpetuo fieri, da continua vibração do Universo, quê passa e se transforma indefinidamente, como se o corpo humano fosse a fôrma infinita múl­ tipla, impalpavel, do fluido... A esculptura por sua vez só deve reproduzir os corpos que se movem ou se podem mover. Se um escul-ptor quizesse reproduzir uma montanha, uma arvore, seria uma obra sem movimento, desti­ tuída de interesse artístico. O sentimento esthe­ tico da esculptura está na indicação de um movi­ mento, que se imagina prolongando-se, desen­ volvendo-se successivamente. O homem que anda, deve andar. O cavallo que galopa, deve continuar o movimento, e se a obra de arte esculptural impõe ao espectador essa solici­ tação do movimento indicado, é uma obra de arte animada por aquelle sentimento vago, que é a essência da arte.
Por esta interpretação da essência da arte na esculptura fica resolvido o que Schopenhauer chamou « o problema de Lacoonte », para o qual não trouxe solução acceitavel. O grito de La­ coonte, indicado em todas as expressões da figura no instante em que a serpente o morde, é suggestionado com muita precisão pelo movi-
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mento iniciado. Pela imaginação nós o comple­ tamos, e sentimos logicamente que o velho sacerdote gritava, emquanto o animal o picava violentamente. Schopenhauer acha que a atti-tude de gritar fixada no mármore ou na pedra é ridícula e tira o caracter trágico a esse famoso grupo. A explicação de Gcethe é mais feliz. Ninguém, como Gcethe, presentiu a essência da arte na esculptura, antes da interpretação que damos. À sua analyse do grupo de Lacoonte é extremamente lúcida e se ajusta á theoria que nos parece agora definitiva. « Esta obra, diz elle, é muito notável pela escolha do momento. Se uma obra plástica deve mover-se realmente aos olhos nossos, é preciso escolher um momento de transição. Um instante mais cedo nenhuma parte do conjuncto devia estar nessa posição, e um instante depois cada parte será forçada a deixal-a. Para bem comprehender-se a intenção da obra de arte que é o Lacoonte, colloquemo-nos a uma certa distancia, de olhos fechados. Abertos os olhos e logo cerrados, ver-se-á todo o mármore em movimento e ter-se-á receio de achar todo o grupo mudado, quando os olhos se abrirem». O movimento continuo e perpetua-mente solicitado pelo nosso espirito exprime a arte na esculptura. O grito de Lacoonte é esculptura! e trágico, como o grito que sáe da
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figura da Marselheza no grupo do «Départ» de Rude.
Esta solicitação do movimento no espirito do espectador é o segredo esthetico da contem­ plação do avião em marcha no espaço. O avião nos commove pelo mysterio, pelo seu vôo trans­ cendente, pelo risco, por aquillo que não devia ser e que é, o espanto do facto assombroso fora da tradição. Ao mesmo tempo, junte-se a essa emoção fundamental a que suggere esse simu­ lacro de pássaro de grandes azas que pairam longínquas no ar e não se movem, emquanto paradoxalmente a nave viaja serena. Ha uma anciã pelo movimento que não vem, e nessa anciã cada espectador é um artista.
Naturalmente, no rythmo da obra de arte se reflecte o espirito das raças e do tempo. A esta-tuaria grega representa o movimento na estabi­ lidade, signal de medida e de retenção do geniô grego. Os modernos exprimem o desencadeia-mento das cousas, ignorado dos antigos. A lição dos gregos foi fecunda para manter o equilíbrio technico das obras de arte, mesmo nos gênios mais livres, como Miguel Ângelo. Basta contem­ plar os frescos da Capella Sixtina para se veri­ ficar que na exuberância do Juizo Final a medida intervém para evitar o grotesco. Assim, o Deus poderoso, ardente de vida, faz
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surgir do chãos o homem, a mulher, os astros e em seguida, na possessão de crear, corre pelo espaço, e Miguel Ângelo o representa de bruços, com as immensas costas volumosas, mas a figura não é ridícula nem desmedida. A mara­ vilhosa mão de Deus vae pelo Armamento creando sempre, sem violência, quasi doce­ mente...
Desde a exaltada Edade-Média, de passagem pela fremente Renascença, o movimento da escul­ ptura tem o rythmo da sensibilidade que a disci­ plina grega desconheceu para dar á fôrma uma expressão impassível. Essa sensibiüdade é a dos esculptores das edades modernas, de Dona-tello, Miguel Ângelo, Luca delia Robbia, Rude, Barrye, Rodin. Quando um grande esculptor como Rodin, capaz de executar obras do mais puro modelado clássico, commette apparentes imperfeições, é preciso explícal-as como recla­ madas pela sensibiüdade artística, por um sentimento profundo de arte, que corresponde a uma emoção differente da emoção grega e está no inconsciente da alma moderna. O inaca­ bado das obras de Rodin não é um signal de imperfeição, nem mesmo uma extravagância para se singularisar e provocar a attenção. Também não é uma zombaria do seu espirito artista, que queira rir dos seus próprios admira-
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dores e do publico incompetente. Esse inaca­ bado é intencional, é um effeito artístico que accentúa a sensibilidade da esculptura. Rodin seguiu o exemplo de Miguel Ângelo, que também não acabou expressamente muitas obras, como a estatua da Neve, e deixou no vago outras, como a Noite. E' um meio de accentuar a impressão. O não-acabado dessas esculpturas torna mais viva a obra de arte, como na pintura o colorido dá vida ao desenho.
Não é nessa emoção vinda da idéa do movi­ mento propriamente esculptura! que se encontra a essência da arte da pintura. O próprio de cada arte é commover-nos pelas suas expressões particulares e especiaes. A pintura nos deve dar a emoção vaga do Universo pela fôrma e pela côr, como a esculptura pela linha, pelo movimento, pela luz e pela sombra. Quando vemos um quadro, o senso artístico se revela em nós, a emoção se desperta pela sensação das cores e das fôrmas. O assumpto do quadro é uma impressão de ordem secundaria para o prazer esthetico que a pintura nos deve com-municar. Os indivíduos dotados de senso artís­ tico limitado, ou mal educado, procuram vêr no quadro o que elle representa, isto é, a anecdota, o episódio, seja este de ordem histórica, geral, ou mesmo particular ou familiar. Ao passo que
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o artista creador, o artista que pintou o quadro, não fez mais do que exprimir a sua emoção intima, que a côr, a distribuição da luz, a côr por ella mesma e a fôrma pela sua divina pro-jecção no espaço provocam no seu espirito, ancioso de fixar e communicar esse êxtase esthetico da emoção de cousas subtis, intangí­ veis, como a côr e a fôrma, que nos torna infini­ tos e universaes.
Não ha duvida que entre a fôrma e a côr deve haver uma intima correlação. O quadro, para produzir a sensação esthetica integral, terá o desenho e a côr que lhe são indispensáveis. Rodin notou com exactidão que as cores empre­ gadas nos quadros de Raphael são reclamadas pelo desenho e as que se harmonisam com o assumpto e melhor exprimem o sentimento do artista. Rodin assignala o predomínio das sen­ sações intellectuaes da obra de arte nas puras sensações estheticas. No emtanto, estas são independentes daquellas. A graça, a facilidade, o capricho, o traço em si mesmo de um desenho produzem emoções puras, alheias ás idéas sug-geridas pelo quadro, por mais abstractas que sejam estas. O verdadeiro artista é aquelle que se commove pelos meios próprios e simples de cada arte; aquelle que sente o êxtase musical pela audição do som, de uma nota independente
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do assumpto do soneto ou do drama; aquelle que se extasia pela côr e pela fôrma em si mes­ mas, sem se preoccupar se esta côr ou esta fôrma estão applicadas a uma anecdota social ou familiar; que vê a estatua ou o quadro, e a primeira emoção que recebe é a que lhe vem directamente da fôrma e da côr, embora mais tarde perceba que essa fôrma e essa côr são as de um personagem ou do assumpto, que a estatua e o quadro procuram represen­ tar. Pela hierarchia dessas emoções se distingue o artista daquelle que o não é, pois nos indivíduos menos dotados do senso artístico o interesse pelo assumpto da obra de arte é mais conside­ rável que as genuínas e vagas emoções esthe-ticas.
Quando se collocam no seu verdadeiro plano gradativo as varias emoções que nos causam as obras de arte, verifica-se que não ha razão para se repellir o esforço dos artistas, que, disas-sociando essas emoções, procuram communicar aquellas que são exclusivamente artísticas, por mais originaes e innovadoras que pareçam. As dissonâncias musicaes, o cubismo e outras transformações de valores artísticos obedecem a esse movimente intimo, que aspira a realçar a expressão essencial de cada arte e transmittir a emoção esthetica pelos seus meios absolutos,
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emancipados de toda a relatividade. E não ha duvida que, por mais extranho que seja, esse movimento de extravagante apparencia e contrario á tradição foi benéfico para a pro­ gressão do sentimento esthetico. A musica se enriqueceu de novos rythmos e o cubismo trouxe á pintura maior largueza e maior pre­ cisão no desenho pela representação total dos volumes. Foi um importante serviço á technica artística, interessando naturalmente á sensibi­ lidade. Esta se desprende do que é tangível e vae além da linha e da fôrma. A impressão que vem da arte, é o ideal, o indefinivel, o vago, o resto... E ella está por toda aparte. Tome-se uma rosa : ha o colorido, o movimento ondu-lante das pétalas, as curvas voluptuosas; ha também a irradiação, e ainda mais a atmosphera profunda e mysteriosa da côr e da fôrma, o indefinivel que paira e se evola e é a essên­ cia da flor. A pintura attinge a essa expressão suprema, como na Gioconda, que é o retrato desse mysterio, o retrato da rosa.
Pela evocação do abstracto e do indivisível, nenhuma arte é superior á poesia, que nessa suggestão profunda e vaga tem a sua verda­ deira essência. Platão assignálou essa força mágica de transposição particular á poesia, que « exprime em geral toda a acção que faz
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passar uma cousa do não ser ao estado de ser. » A poesia começa onde a arte acaba...
O sublime jogo da intelligencia que, pela imaginação, nos arrebata além do mundo sen­ sível, é o acto maravilhoso do Verbo. Ao pro­ dígio evocativo das imagens accrescente-se o encanto suggestivo da musica e da côr, sen­ sações que emanam das palavras. Toda a maté­ ria sonora e toda a matéria visível se animam indefinidamente na imaginação pela magia verbal.
Não ha duvida, porém, que o pensamento e a idéa, elementos essenciaes da poesia e da litteratura, são limitações á pura emoção esthetica. O assumpto é uma restricção, que torna a poesia menos geral e mais intellectual do que as outras artes, as quaes exprimem a emoção por meios sensiveis mais directos, como o som, a luz, a linha, a fôrma e a côr. Na poesia, pelos contactos sensiveis das palavras, o espi­ rito humano é levado ao sentimento vago da unidade infinita do Universo.
Por essa emoção o artista, o poeta, sente-se um com o Todo infinito e torna-se o creador do Universo. O creador não é o que prescreve o bem e o mal, mas o que faz do Universo o seu espectaculo. A funcção por excellencia do espi­ rito humano é a da creação. Viver é crear, e
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nesse poder de crear o homem chega a crear um creador para si e para todas as cousas. A transformação da realidade em uma creação própria á cada intelligencia é uma fatalidade. Póde-se dizer que se vive no meio de phantasmas, e que nas trevas da matéria só essas miragens vivem, se agitam e nos conduzem. A obra de arte é a creação que representa a vida, mas a interpretação da obra de arte é outra creação. O sentimento que a obra de arte produz em nós, é uma creação rival da creação do artista. Cada homem �� um artista tosco, primitivo ou sublime, porque cada homem representa, interpreta, produz imagens, que são fôrmas, cores ou harmonias intimas, profundas, a musica secreta da alma. O instante da creação ou da emoção artística é como o de uma magia que viesse ao espirito pelo adormecimento das sensações da resistência individual para nos levar á fusão infinita no Universo. O individual do nosso ser se torna universal pela arte. A natureza exerce desse modo a sua funcção esthetica, porque, como a obra de arte, ella suggere sentimentos e não se limita á simples expressão destes. Para o artista os sons musi-caes da Natureza, os murmúrios do vento, o ruido das arvores, o canto dos pássaros, a musica das águas são tão suggestivas de emo-
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ções intellectuaes como as harmonias de uma orchestra. E, assim, a linha, a côr, a fôrma e tudo o que é phantasia na expressão inexgot-tavel da matéria. Na contemplação do mundo e na sua interpretação o homem se revela essen­ cialmente um animal artista. O sentimento esthetico do Universo é a funcção mágica do inconsciente e estende-se á vida toda do homem, que é uma perpetua e integral creação artística. A arte é inseparável do homem e a sua dominação se exerce na existência humana ainda mais intensamente que a da religião. O homem pôde deixar de ser o animal reli­ gioso ; não cessará de ser o animal artista. A imagem que faz de si mesmo já é uma obra de arte. O quadro em que se anima, em que vive e desenvolve a sua plena activi­ dade, é uma obra de arte, seja a casa, o templo ou a cidade. Por toda a parte a arte se associa á existência do homem, infiltra-se na sua sensi­ bilidade, a transforma, eleva e poetisa. Essa dominação objectiva da arte é o reflexo e a projecção do sentimento subjectivo, que faz do Universo um espectaculo infinito. A consciência deve-se "apoderar da magia, que o inconsciente creou no espirito humano, e fazer de todas as suas sensações, sensações de arte. Que a luz, &. côr, a fôrma, o som, mas também
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as sensações moraes da alegria e da dôr, e todas as emoções, sejam incorporadas ás forças do Universo, sejam para nós emoções estheticas, creações, phantasias, illusões, mas espectaculo mysterioso e divino que nos domine e enleve, e nos confunda na Unidade essencial da vida. Esse sentimento esthetico intenso e profundo, unindo todas as cousas, volatisando todos os soffrimentos da alma, nos arrebatará da nossa mísera contingência, nos dará a sensação do Infinito, nos livrará de toda aquella tristeza em que morre o espirito humano. Tal é a su­ prema esthetica da vida. A arte é a própria libertação do soffrimento que ella exprime.
AMOR
Os seres ephemeros, que são os seres humanos, attingem por um instante á eternidade, saem da diversidade consciente em que o terror os exila, voltam á Unidade primitiva do Todo universal, quando os arrebata a paixão do amor. Como explicar esse sentimento sublime e commum que, partindo da sensibiüdade physica, se eleva á mais alta espirituaüdade ? Se na base do amor se encontra a ançia da satis-
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façãõ do instincto, não é esta sufficiente para explicar a paixão que domina a sensualidade, funde as emoções psychicas dos Amantes e compõe dos dois seres que se attráem e se unem, um só todo espiritual. Se o Amor não é possível sem a attracção physica, esta pôde reaüsar-se em toda a plenitude sem chegar á maravilha do amor. A attracção physica existe entre os innumeros seres do Universo, os ani­ maes superiores a sentem imperiosamente ""e por ella se perpetuam as espécies, mas, pelo phenomeno psychico do amor, os homens se distinguem dos outros animaes.
O conceito supremo da fatalidade domina o milagre do amor. Ha neste sentimento, infinito como o Universo, um caracter trágico, uma manifestação tão sobrenatural, um desafio ao que é a ordem apparente das cousas, tão extranho brilho, que subordinal-o ao impulso myste-rioso da fatalidade satisfaz a humildade do pensamento deante do assombroso e divino amor, que, como a própria Natureza, se deixa perceber mais pelos seus phenomenos do qüe pela sua intangível essência. Este conceito primordial da fatalidade explicaria o despontar do Amor, o seu mágico apparecimento, sem lhe dar a razão metaphysica, remota e mystieai O instincto sexual move um ser para outro
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ser. Mas, quando se torna amor esse impulso fugaz ? Quando os seres por essa união dos corpos attingem á unidade com o Todo univer­ sal, aspiração suprema e intima do ser humano, separado do Universo pelo terror inicial do espirito. Essa razão metaphysica do Amor não existe nos outros seres privados do senso espiri­ tual das paixões.
Todas as interpretações do mysterio do amor são sempre modalidades do conceito da fata­ lidade, sejam a união dos semelhantes de Hera-clito e Platão, reproduzida por Pascal, as affi-nidades electivas de Gcethe, o gênio da espécie de Schopenhauer, a crystallisação de Stendhal, o magnetismo de Mauclair ou o filtro de Isolda. São apparições, visagens do ineluctavel prin­ cipio que move as cousas, a innominavel fata-üdade, destino, kismet. Mas não basta. Porque essa attracção infinita e irremediável entre os seres que os funde no Universo ?
Quando Platão entreviu a unidade primitiva dos seres na multiplicidade inexgottavel dos objectos, uma parte da verdade essencial foi percebida. O mytho dos androgynos é uma condensação da hypothese da attracção dos semelhantes realisado n'um só corpo. E no Banquete commenta Platão esta attracção do amor que realisa a unidade. « Tal necessi-
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dade procede de que a nossa natureza primitiva era uma e que então cada ser formava um todo completo. Hoje chamamos amor ao desejo e á busca dessa antiga unidade. Éramos outr'ora um e por culpa nossa Zeus nos separou... Eu sustento egualmente que todos os homens, todas as mulheres, que o gênero humano in­ teiro seria totalmente feliz, se cada um reali-sasse o seu amor e encontrasse o amante que o pudesse fazer voltar ao primitivo estado da unidade absoluta. » Divino Platão ! A verdade essencial, a verdade ultima da explicação do Universo foi desvendada um instante nessa theoria symbolica do amor. Platão percebeu que a anciã do ser humano é a volta á unidade com o Todo universal, de que a consciência metaphysica o separa. Desde então ha o grande vácuo que é preciso preencher, o espaço vazio, o abysmo que é preciso atravessar, e sobre o' qual dansa Eros, tentador sublime, mágico da inconsciencia infinita. E Pascal não trepidou em exclamar : « Quem duvida que estamos no mundo para outra cousa que não seja amar ? » O homem não pôde permanecer só comsigo mesmo. Deve sahir do seu próprio eu, preencher o grande vácuo e por outro ser que lhe seja semelhante, e essa semelhança se restringe e se encerra na differença dos sexos'.
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Pascal reproduz na mystica christã o mytho platônico das fusão dos semelhantes. Se elle conhecesse a chimica, como Gcethe, do seu cérebro teria sahido a hypothese das affini-dades electivas, por onde se realisa a unidade dos seres fatalmente semelhantes na diversi­ dade sexual, que é uma affirmação da unidade primitiva e incessantemente buscada pelos seres, que, vencendo os contrários e as oppo-sições, se fundem, movidos por uma lei de neces­ sidade inexorável.
Ha mais essência de verdade nessas formulas, que procuram explicar o phenomeno transcen­ dental do amor, ligando-o á metaphysica uni­ versal, do que na solução schopenhaueriana do gênio da espécie, que dá o secreto impulso da união do homem e da mulher para o fim da perpetuidade dos seres humanos. Essa explica­ ção de ordem physica, indifferente á funcção psychica do amor, applicavel indistinctamente a todos os animaes, está morta pelo finalismo que a inspira, pela attribüição da vontade a uma creação fortuita e absurda, como esse imaginário, phantastico e caprichoso gênio da espécie, que se diverte em unir os contrastes e suggerir maliciosamente a indispensável pro-criação.
Não é uma vontade que determina a acção
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do amor. E' o próprio inconsciente do amor que o leva ao inconsciente universal. O amor crea esse sublime estado de fusão com o Universo, mas não é solicitado pela fatalidade a essa inconsciencia absoluta da Unidade primitiva. Este é o mysterio dos mysterios. Stendhal imagina para explical-o a theoria da crystalli-sação, que nos deixa a meio caminho da reve­ lação do divino enigma. Por ella se compre-hende o nascimento do amor, mas a passagem das sensações e dos pensamentos do estado sub-consciente ao campo da consciência não é necessária para o amor, que é antes uma mani­ festação psychica sub-consciente. Além disso, a hypothese stendhaüana se Ümita a assignalar uma situação sem explicar a causa. Por essas hypotheses physicas de magnetismo, de polarisação, ficamos reduzidos ao relativo de uma expücação positiva, a comprovar a existência do phenomeno sem ir além, sem lhe dar a razão, que só uma interpretação philoso-phica pôde abordar.
Platão percebeu que ha uma unidade pri­ mitiva dos seres. Ora, se fosse mais ousado, perceberia que ha uma unidade essencial e inicial do Universo, e que os seres deviam existir eternamente na indistincção absoluta. Mas, sepa­ rados do Todo universal, a vida interior dos
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seres humanos, fundamentalmente levados a se confundir com o Universo, é a continua e irre­ primível aspiração á Unidade primitiva. Ces­ sado o instante doloroso da consciência, o homem se abysma mysticamente na inconscien­ cia absoluta. O Amor, unindo-nos a outro ser, dá-nos a illusão da universalidade que elimina as separações, que nos arrebata para além da relatividade consciente das cousas para nos confundir infinitamente com o Todo universal. Esta é a mystica do Amor e a sua metaphysica. Abysmando-nos no divino esquecimento, fusio-
'nando os seres no Universo, transportando os corpos ao êxtase supremo, arrebatando as duas vontades unidas para o Irreal, o amor é a su­ blime transfiguração, a eternidade instantânea, que é dada aos pobres humanos mergulhados na infinita miséria da vida contingente. Por elle somos um com a Natureza, um com Deus, um com o Universo, e, o que é mais ineffavel, um com o ser amado. E* o milagre supremo da unidade, que, partindo da attracção dos corpos, attinge á fusão no Todo infinito.
A fataüdade reina sem duvida sobre o amor, desde o instante em que o instincto sexual age na sua profunda inconsciencia, até ao momento em que a morte separa ou une os amantes. O'sentimento da presença da morte
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dá esse caracter trágico, porque, interrom­ pida a fusão com o amante, se desperta a irremediável dôr, que separa o espirito humano das outras cousas. Em Tristão e Isolda, desde o começo, Wagner invoca a fatalidade, sob a figura de Frau Minna, que, segundo as lendas germânicas, é uma transformação de Aphro-dite, creadora da vida, geradora da tragédia universal. Dessa fatalidade que commanda 0
Amor e a Morte, provem o filtro'que os amantes tomam. Para Dante o Amor, que move o Sol e as outras estrellas, leva a uma só morte... Mas toda essa fatahdade reina, domina, moti­ vada pela necessidade essencial da volta á unidade inconsciente, que se realisa na fusão mystica dos corpos e dos espíritos. Depois da morte os amantes, que pelo amor fizeram o retorno á unidade primitiva do ser e á unidade com o Todo, entrevêm a vida eterna na unidade. « Nascidos ao mesmo tempo, disse Leopardi, o Amor e a Morte são irmãos. O mundo aqui em baixo e as estrellas lá no alto não possuem nada de mais bello. » Esses dous divinos irmãos dão a magia da inconsciencia suprema, do êxtase, do repouso infinito áquelles que vivera na tortura e na anciedade da separação. Esse pensamento da Morte ügada ao Amor é a an­ gustia dos amantes em anciã de eternidade.
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Imaginam constantemente continuar além da morte o amor. A religião como força mystica é uma consolação para os amantes. Que maior apego, porém, que mais entranhada e absoluta affeição não existirá nos seres libertados do senso reügioso ? Para elles cada instante é a eternidade. O Além é o nada, a vida étudo. A paixão cresce, exalta-se nesse pensamento, é uma chamma em que se consommem os con-demnados ao Nada, ao absoluto anniquilamento. A AmOr é tudo, dirão esses amantes quando separados, e a separação é a imagem da morte ; mas a separação vive da esperança e a espe­ rança é uma magia. E a Morte ? E' o fim de tudo. E elles aspiram á morte unida. Partiremos juntos, dirão; isso também é uma deliciosa e bella consolação. E assim o sentimento como uma vaga do oceano nasce da inquietação, do terror para se vir acalmar na paz derradeira. E' o rythmo perpetuo da anciã da unidade ultima, que subleva eternamente o nosso inconsciente no exilio da separação do Todo.
O que resta mysterioso no movimento do amor é a predestinação dos personagens da grande tragédia. A unidade fundamental se realisa entre seres a ella fatalmente chamados. A hypothese das affinidades electivas ou a da attracção dos semelhantes interpretaria admira-
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velmente essa predestinação que, numa elabo­ ração muitas vezes despercebida dos próprios personagens, vence as maiores opposições á sua immortal victoria, que se resgata pela morte. Onde reside essa attracção ineluctavel, ninguém pôde determinar. Parece que excede o nosso próprio ser na sua humanidade, dir-se-ia que vae além da vida animal, que está no que é imponderável e extremamente secreto na vida universal; dir-se-ia que ha uma attracção atômica entre os seres que pelo amor têm de.se fundir no Universo. Se se imaginasse a evolução dos seres perpetuamente attrahida n'uma escala descendente, seria um maravilhoso �� mo­ tivo » para uma allucinadora « fuga », em que o amor dos mesmos entes humanos fosse descres-cendo ás espécies animaes, aos pássaros, aos insectos, aos infinitamente pequenos, aos vege-taes, a tudo que palpitasse no mundo; e a per­ sistência das affinidades dos amantes seria encontrada inexgottavel e imperecivel nos ato-mos, nas vibrações das moléculas do ether. Assim, o Amor, formidável como a Natureza, év, a liga eterna dos seres predestinados á unidade immortal.
A Amor repelle a relatividade para viver no absoluto, porque é d a essência do amor essa atmos-phera de plena liberdade, essa ignorância total
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de todas as convenções, que lhe são extranhas e das quaes não pôde participar. Por essa livre expansão, e por ser uma força da Natureza, ou subjectivamente a Natureza, o Amor traz o seu universo em si mesmo e vem alterar o sentimento do próprio pantheismo. Antes do instante da paixão o homem realisa a ideali-dade do Todo por um sentimento metaphysico, que mostra sermos apenas uma apparição do Nada, uma força instantânea que se pôde pensar a si mesma e conceber o Universo e vae desapparecer no Nada. Nesse idealismo o sentimento da Dôr se tinha eclipsado, tudo era o perpetuo renascimento do Universo, e d'ahi o absoluto scepticismo e a sublime impas-sibilidade deante das cousas fugitivas e illu-sorias. Mas desde que o Universo, pela magia do Amor, se representa em outro ser, no espi­ rito humano se produz a mutação do pantheismo. A Natureza só é comprehendida no ser amado e só existe por essa realidade. Se o ser ado­ rado se transforma, morre na sua fôrma actual, aquella realidade do Universo se extingue para o Amante e toda a vida universal cessa com a vida das vidas...
A ESTHETICA DO UNIVERSO
Se o facto transcendente do espirito humano é o sentimento da unidade infinita do Universo* não será por uma concepção exclusivamente materialista, baseada na sciencia, que chega­ remos a formar uma idéa do Todo. A sciencia, insistimos, decompõe e fragmenta o Universo, e estuda-o nos seus phenornenos. Ora, pelo methodo experimental, que é omethodo scien-tifico, jamais se chegará a um conceito do Todo infinito. A esse mfethodo deve-se aluar o pro­ cesso especulativo do raciocínio, que no estado actual dos nossos conhecimentos possa inter­ pretar a natureza e suscitar no nosso espirito uma idéa do cosmos, que será sempre relativa.
O enigma irreductivel para o espirito humano é o da formação do Universo. Podemos suppôr uma substancia universal, única, com-mum a todos os seres, cujas formações organicaâ seriam a sua simples representação. O enigma continuaria, porque não saberíamos qual é a
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essência dessa substancia. A composição pri­ mordial physica ou chimica da substancia universal nos escapa; somos obrigados pela relatividade da nossa intelligencia a compré-hender essa substancia como uma unidade, que se nos apresenta nos seus phenomenos, dos quaes são a energia e a matéria os mais remotos. Assim enunciados, elles têm a appa-rencia de uma permanente dualidade, quando na sua realidade transcendental são uma uni­ dade absoluta. Não ha matéria sem energia nem energia sem matéria. Não se pôde conceber um desses phenomenos da substancia universal distinctamente do outro, e já é um erro enun-cial-os em duas palavras, como se fossem dous modos do Ser.
A physica pôde imaginar a desmaterialisação da matéria e a degradação da energia, sem que dessas experiências se deduza a hypothese de um Universo immaterial, exgottavel um dia, isto é, a morte do Universo. Em primeiro logar, a expressão matéria deve ser entendida na sua accepção absoluta, e a physica a comprehende na accepção relativa. O que se denomina vul­ garmente e scientificamente matéria, póde-se desmaterialisar pela radio-actívidade e, tornar-se imponderável, segundo as balanças actuaes. O Universo não deixa por isso de ser concebido
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« materialmente ». Assim o é, porque" é, porque o nosso pensamento é material e não pôde ima­ ginar nada que não seja phenomeno material, nem mesmo um principio absoluto creador, um Deus que abusivamente se chama espirito. Em segundo logar, para se admittir que a ma­ téria se extinga, é preciso suppôr-se que a matéria é creada. A physica explicará que a matéria se desmaterialisa, os átomos se extin-guem, e tudo se absorve d'onde tudo'é re­ creado.
Sobre a natureza do ether o mysterio é total. Já se o imaginou como « solido elástico», que enche todo o espaço. Para distinguil-o da ma­ téria, já se declarou ser elle o imponderável, o corpo sem densidade, livre das leis da gravi-tação ; já se o phantasiou em estado deTepouso absoluto. Nada, porém, o explica, e nem por elle se explica a essência do Universo. Ao nosso entendi­ mento repugna admittir um phenomeno do universo privado do movimento. Se o ether é o elemento creador, se vibra, o movimento existe, e o próprio movimento, effeito e causa da vi­ bração, indica que o ether imponderável se confunde com a energia. Todavia, essa imponde­ rabilidade não é absoluta, mas relativa ao nosso poder scientifico. Por menos denso que elle seja, tem uma densidade imaginaria. Se, paraexpü-
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car o movimento universal, se deve suppôr, como quer a sciencia physica, o ether sujeito a uma compressão, d'onde provem essa força que comprime e determina o ether ?
A unidade do Universo se impõe ao nosso espirito. Não se pôde imaginar o ether em re­ pouso absoluto. Seria uma volta á concepção de Parmenides, que, negando o eterno movi­ mento, ideou uma substancia final, que no seu pleno desenvolvimento não tem necessi­ dade de movimento. O eterno repouso seria a base de uma concepção theologica da creação universal. A idéa de Deus é análoga á do eterno repouso, contrario ao eterno movimento. A.nossa intelligenciarepelle essa mechanicá espirituaüstà; para ella ha uma materialisação permanente do Universo, uma materialisação da matéria desmaterialisavel. A essência do Universo, porém, permanece enigmática, pois o ether, ao qual se tentou reduzil-a, é uma simples hypo-these universal, que não explica a substancia.
Na impossibilidade de conhecer a formação do Universo, resta-nos a certeza de que os phe­ nomenos se encadeiam e se ügam por um determinismo absoluto, Assim deve raciocinar o sábio que, segundo a aflirmação do mathema-tico, não pôde deixar de ser determinista, pois o fim da sciencia é prever, e desde o momento
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que a previsão não é mais possível ou está fora das fronteiras da sciencia, o sábio deixa de pensar e agir como sábio. Outro mathematico objecta que a questão está em.saber se essa necessidade é absoluta no sentido da verdade mathematica, ou se se pôde admittir uma frac-ção de contingência, por infinitesimal que seja. Explicações « baseadas na theoria das pro­ babilidades », em particular as explicações «esta­ tísticas » dos phenomenos physicos levariam, segundo esta argúcia mathematica, a admittir-se que a « necessidade » de um phenomeno global não é incompatível com a «liberdade » do phe­ nomeno parcial, d'onde a hypothese de uma Uberdade molecular. Esse argumento « estatís­ tico »dos phenomenos parciaes não poderia preva­ lecer, mesmo se os seus dados fossem apparente-mfente exactos. Ou o Universo só pôde ser com-prehendido materialmente, como vimos, e tudo nelle se encadeia nvuma necessidade absoluta de causas e effeitos, ou ha liberdade molecular, üvre arbitro de uma parcella, que importaria em üvre arbitro geral, e o Universo seria conce­ bido espiritualmente, o que é absurdo para a nossa natureza material. Esse raciocínio serve de verdade absoluta na ausência da impossível certeza mathematica.
Eis o espirito humano encadeiado á fatafi-
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dade universal. A intelügencia se desespera neste Universo, que ella não explica, e que é a sua perpetua allucinação. Desde que não ha uma liberdade possível na causalidade inexorá­ vel, desde que não se encontra o ponto de apoio no espaço ideal para a alavanca, que dê começo á vida phenomenal ; desde que é impossível comprovar o principio e o fim das cousas, toda a concepção rigorosamente materialista ou espiritualista do Universo é absurda. Só resta desse Universo, no nosso espirito, uma pura idealidade, e o sentimento da sua unidade infinita se impõe á nossa consciência, como a nossa razão de ser. Elle nos liga a todos os phe­ nomenos universaes e explica a nossa existência como uma apparencia phenomenal da substan­ cia. E o Universo se projecta no nosso espirito, como uma imagem, um espectaculo. Assim, toda a idéa que se tenha do Universo, sejascientifica, mathematica ou biológica, seja idealista ou reli­ giosa, é espectacular. Pôde-se affirmar que a funcção essencial do espirito humano é a funcção esthetica, e que só esta explica o Universo a nós mesmos.
Pela concepção mathematica o Universo é explicado por uma série de equações que se de­ senvolvem infinitamente pela concepção natura-üsta, o Universo é uma série de fôrmas sem fim;
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em ambas ha uma série de imagens, que ten­ tam reflectir a idealidade universal. Não ha um systema philosophico que se subtraia á fatalidade da concepção esthetica. Todos os systemas de philosophia, todas as religiões imaginam o Universo. Nessa própria expressão «imaginar », «figurar »está subentendida aquella funcção essencial do nosso espirito, a funcção esthetica, pois imaginar é crear imagens. Já Aristóteles affirmára que o espirito não pensa sem imagens, e S. Thomaz de Aquino observou que « impossibile est intellectum nisi convertendo se ad phantasmata ». Ora, imagem é fôrma e o Universo será a fôrma ultima, pri­ mordial, da nossa imaginação. E' uma idea­ lidade esthetica, que vem da fôrma. As religiões suppõem o Universo como uma successão de fôrmas, um maravilhoso espectaculo fragmen­ tário, que se funde no espirito creador, que é uma unidade esthetica. Da mais rudimentar reügião á mais elevada esse processo idealista é o mesmo. Começa-se pelas construcções rudes dos selvagens, cujos deuses têm fôrma humana, cujos mundos são architectonicos, até ás « Ci­ dades de Deus » dos mysticos christãos, ou ás cosmogonias dos agudos buddhistas. Tudo é fôrma, tudo é espectaculo.
O systema philosophico que poderia reclamar
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á prioridade de uma concepção esthetica do Universo, seria o platonismo. Já se disse que a philosophia de Platão é uma philosophia de geometra e de poeta. Pela geometria elle subor­ dina o cosmos ás leis de uma construcção hie-rarchica e mesmo ao Absoluto. Pela inspiração poética comprehende o Universo como a ima­ gem da belleza eterna e universal. Platão no seu systema das idéas geradoras imagina o Bem como a Idéa suprema. O gênio divino, o demiurgio, que constróe o Universo, copia a Idéa do Bem. A sua creação é uma pura imita­ ção ; a reaüdade não é mais do que a imagem do Absoluto eterno. Assim, esse supremo cons-tructor, Deus, é um artista que tem deante dos olhos o modelo, cuja fôrma transcendental reproduz na sua imitação, que é a obra de arte, o Universo. « Se a vida, ó Sócrates ! vale a pena de ser vivida, diz no Banquete a estrangeira de Mantinéa, é no instante em que o homem con­ templa a belleza em si. »
A belleza era si, certamente, não existe, mas resta-nos a suprema aspiração esthetica. A idéa absoluta se extingue no oceano infinito dos fra­ gmentos do Universo... Fica a aspiração, fica o desejo de que tudo seja bello, e nessa aspiração, nesse frêmito, está o segredo da arte, a transfor­ mação do Universo em uma esthetica pura.
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Assim como para o platonismo, o indivíduo desapparece na espécie, e esta no gênero, até remontar á Idéá ; na concepção esthetica do Universo de hoje o nosso ser é absorvido na unidade infinita do Todo, de que é uma appa-rição phenomenal. A metaphysica moderna rejuvenesce o platonismo, que percebeu desde logo que não se ascenderia ao mundo transcen­ dental pela simples sensação. Só a faculdade intellectual nos levaria a comprehender a unidade do Todo ; só a consciência metaphysica poderia expücar o Universo como uma unidade esthe­ tica.
Eüminado por ínaccessivel o conhecimento da substancia universal, irrealisada a explicação scientifica da formação do Universo, excluído o preconceito religioso que attribue um fina-lismo moral ao Todo infinito, a angustia do espirito humano, perdido nas trevas de um mundo absurdo e inexplicável, seria a suprema dôr, se a concepção esthetica do Universo não o viesse integrar no Todo infinito. O Universo só pôde ser sentido, entendido, interpretado como funcção esthetica do nosso espirito. Nessa concepção definitiva, o único desespero é o da nossa separação do Todo. A consciência metaphysica explica o mysterio dessa separação e mostra que a nossa existência é a aspiração
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inconsciente e absoluta da volta á unidade essencial. Para realisarmos essa bemfazeja fusão, a natureza humana nos offerece meios trans­ cendentes. A nossa vida se subordina á con­ cepção esthetica do Universo, que ficará como a base da perfeição desse mechanismo infinito, de que somos a parte e o todo. O máximo da ascensão espiritual é a não-ascensão, é a uni­ dade. O Universo é uma harmonia total. O espirito humano participará dessa profunda harmonia. Tudo é unido, é a substancia única que vive em tudo, e cada parte imaginaria contem a essência do Todo. A substancia é universal. O ideal é sentir e não comprehender, porque comprehender é uma dualidade que nos separa do Universo. Toda a philosophia vem se terminar em um pragmatismo, que é para muitos a sua única razão de ser. Esse pragma­ tismo busca tirar da idéa pura uma modalidade da coexistência. A concepção esthetica do Universo, pela sua essência, é estranha a toda a idéa do bem e do mal. Nessa perfeita unidade com o Todo, não se prosegue nenhum fim, tudo é apparencia, tudo é illusão.
Os homens buscam na vida contingente a felicidade. Que é a felicidade ? E* a Virtude, responde Sócrates pela voz de Platão. E' a Alegria, responde Spinoza e accrescenta :
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« A Alegria é a passagem da alma a uma perfei­ ção maior. O que augmenta o ser ou a perfeição da alma lhe é útil e bom, o que diminue o ser» causa-lhe tristeza, é o mal... A vida mais perfeita é aquella em que a alma tem mais ale­ gria, isto é, mais perfeição. »
A Alegria ! Mas a alegria absoluta é a que vem da concepção esthetica do Universo, base da esthetica da vida. E' a que vem da nossa inte­ gração no cosmos é reaüsa a unidade infinita do ser, a alegria que só pôde ser dada aos estados especiaes de inconsciencia transcendental, a que attingimos pela mystica religião, pela suprema philosophia, pelo vago da arte e pelo sublime amor.
E' a plenitude da Unidade, e nella se abysma, para cessar emfim, a tragédia fundamental do espirito humano.
METAPHYSICA BRASILEIRA
A IMAGINAÇÃO BRASILEIRA
Ninguém pôde explicar a alma das raças, pois tudo é mysterioso e incerto na psycho-logia das conectividades.
Mas, ainda assim, póde-se perceber que em cada povo ha um traço característico que, embora enigmático, é persistente, vem do passado e será o mesmo no futuro, através das peregri­ nações do sangue e do espirito. O povo romano, apezar de tudo que absorveu e assimilou, apezar da sua avassalladora expansão no mundo, não perdeu jamais aquella expressão primitiva do egoísmo, que permanece como o segredo da sua civilisação. No povo inglez o traço característico é a energia, que de individual se tornou colle-ctiva, a energia de Robinson Crusoé que, perti-naz, indomável, fez a conquista da terra.
O traço definitivo da civilisação franceza é a intelügencia, que determina a razão, a ordem, a clareza e o gosto. Na Itafia seria o sensualismo, do qual nasceu a exaltação artística, a política
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realista, a Renascença e o Estado. A Allemanha é possuída desse entranhado espirito metaphy-sico que se manifesta no pensamento, na abs­ tracção e até na disciplina. As almas extaticas de Santa-Theresa e de Don Quichote, a inge­ nuidade de Sancho Pansa são expressões da fé transfigurada e mortal, em que se consumiu a Hespanha.
No Brasil o traço característico collectivo è a imaginação. Não é a faculdade de ideaüsar, nem a creação da vida pela expressão esthetica, nem o predomínio do pensamento; é antes a illusão que vem da representação do Universo, o estado de magia, em que a realidade se esváe e se transforma em imagem.
As raizes longínquas dessa imaginação acham-se na alma das raças differentes, que se encontra­ ram no prodígio da natureza tropical. Cada povo ahi trouxe a sua melancolia. Cada homem carregou no seu espirito o terror de vários deuses, a angustia das lembranças do passado perdido para sempre, e se encheu da indefi­ nivel inquietação na terra extranha. Assim desabrochou essa sensibilidade implacável, que engrandece e deforma as cousas, que exalta e deprime o espirito, que traduz as ancias e os desejos, fonte turva de poesia e religião, por onde aspiramos a posse do Infinito, para logo
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nos perdermos no nirvana da inacção e do sonho.
Os nossos antepassados europeus foram os portuguezes, e de todas as nações latinas Por­ tugal é a mais indefinivel. Não ha um conceito capaz de exprimir o singular contraste de toda a alma portugueza, que oscilla incertamente entre o sentimento realista e a miragem. Os lusos foram talvez os mais bisonhos dos bár­ baros latinos. Jamais attingiram á claridade do gaulez, nem ao mysticismo agudo do ibero, nem áquella explosão de animalidade sobre­ natural, que é o fundo da sensibilidade esthetica italiana. A original espessura os prendeu á terra e formou-lhes o espirito realista. A alma lhes foi humilde; ligaram-se estreitamente ás cousas, trabalharam e amaram o solo ; e quando lhes chegou o instante da arte, não tiveram a força de crear, de dar ao mundo uma sensibi­ lidade nova, deram fôrma, e tornaram-se os executores perfeitos das idéas de outros.
E' singular que tão intenso realismo floresça ao lado de uma grande tristeza. Roma trans-mittiu ao espirito latino uma melancolia, que os gregos não conheceram. Ou fosse pela sua dila-tação no mundo, pelo próprio frêmito da sub-jugação dos outros povos, ou fosse pela con­ fluência de tantas raças, de tantos deuses
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extranhos, ou fosse pela consciência do formi­ dável peso de um destino ainda não egualado, é certo que no soüdo e immenso edifício ,de egoísmo romano a argamassa foi humedecida pelas mysteriosas lagrimas das cousas, e a infinita solidão dos espíritos se encheu do pavor da noite eterna... Eterna Nox!
A essa melancolia antiga juntou-se na alma dos portuguezes a que lhes deu o oceano. O mar lhes foi uma terrível tentação^ Por elle attin-giram ao máximo da energia nacional e por elle se perderam para sempre... Espalharam-se pelo mundo, tiveram fama e gloria, e soldados broncos e marinheiros rudes um dia se partiram das suas praias, não mais tornaram, desappare-ram no infinito dos mares... e nos olhos, doces e tristes, das mulheres portuguezes vê-se ainda a saudade das caravellas.
Os outros primitivos povoadores do solo brasileiro foram os africanos, que os portuguezes ahi trouxeram para com elles vencer a natureza áspera e inquíetadora. O espirito do negro, rudimentar e informe, como que permanece em perpetua infantiüdade. A bruma de uma eterna illusão o envolve, e o prodigioso dom de mentir é a manifestação dessa falsa representa­ ção das cousas, da allucinação, que vêm do espectaculo do mundo, do eterno espanto
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deante do mysterio. A mentira engana o medo, e inventar, imaginar é uma voluptuosidade para esses espritiros grosseiros, fracos e apavo­ rados.
A outra raça selvagem, a raça indígena da terra americana, que é um dos elementos bár­ baros dessa civiüsação, transmittiu aos descen­ dentes aquelle pavor que está no inicio das relações do homem e do universo. E' a metaphysica do • terror, que gera na consciência a illusão repre­ sentativa das cousas e enche de phantasmas, de imagens, o espaço entre o espirito humano e a natureza.
A natureza é uma prodigiosa magia. E no Brasil ella mantém nas almas um perpetuo estado de deslumbramento e de êxtase. E' a eterna feiticeira. Tudo é um infinito e esma­ gador espectaculo, e os personagens do drama do sortilegio são a luz que dá o ouro aos sem­ blantes das cousas, as fôrmas extravagantes, as cores que assombram, o mar immenso, os rios volumosos, as planícies cheias da melan­ colia do deserto, a floresta invasora, tenaz, as arvores sussurrantes, castigadas pelos ventos allucinados...
E o espirito do homem desvaira... Elle não se sente em communhão com a natureza. A imaginação faz surgir uma mythologia sei-
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vagem, que floresce em seres phantasticos, deuses e lendas. Ha um grande enigma no prestigio da natureza sobre o homem, e quasi sempre esse é a imagem espiritual do meio physico em que se formou e viveu despercebido. Se elle é um homem do mar, é como um rochedo meditabundo, calado. Se é um camponez, a sua intima representação é a da arvore, immovel, silente, fecundo. Se é um mineiro, participa da essência mysteriosa da terra. No Brasil, o espi­ rito do homem rude, que é o mais significativo, é a passagem moral, o reflexo da esplendida e desordenada matta tropical. Ha nelle uma floresta de mythos. São lendas de todas as partes que ahi se encontram, lendas do Mediterrâneo harmonioso, da incerta Islândia, dos steppes, das munidas noruegas, do Oriente inverosimil, deformadas em longas peregrinações e entrela­ çadas ás lendas toscas, grosseiras, vindas na invasão negra, e áquellas que nascem nas selvas americanas, mythos physicos da natureza, for­ mando um só e intricado todo, mysterioso e extravagante, que é a alma do homem brasi­ leiro. E para esta os personagens fabulosos têm uma vida real, são tangíveis e activos, sejam as bellas e enigmáticas mães d'agua ou os errantes e tenebrosos curupiras. E o objectivismo mythologico é tão intenso nos espíritos ainda
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primitivos que não se pôde precisar onde co­ meça para elles a realidade objectiva e onde acaba o sonho na floresta dos mythos.
A historia social do Brasil é a historia dessa imaginação. Durante dous secules a grande fescinação foi a do ouro. Desenrolou-se em plena natureza o drama de uma ardente e esfalfada~ cubiça. O paiz foi todo varado, as mattas devastadas, as montanhas desvendadas e estri-padas, os campos fendidos, e as feridas da terra, retalhada e escavada para dar a pepita de ouro, se encheram de sangue humano, e o homem cresceu em energia, e o seu poder dia­ bólico de destruir foi uma allucinação... Mas dessa fúria foi nascendo a civilisação, amassada no sangue e na lama sobre a Terra maravilhosa. O ouro foi a miragem, depois o poder, a força, a primeira revelação brasileira ao mundo cu-pido e deslumbrado. Foi o ponto de partida de outras miragens, e tudo dahi em deante é uma illusão dourada para o mesmo homem, que antes era subjugado e agora se torna deste­ mido, se colloca em desafio deante da natureza bruta e vae por arrancos devastando e creando. A grande adversaria pôde oppôr-lhe a tenaci­ dade e a astucia de uma defesa sem egual em toda a historia da civilisação. Elle a combate encarniçadamente, conhece-lhe os segredos, de-
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fende-se das suas insidias, e pelo ferro e pelo fogo doma-a, faz delia a sua serva, ordena-lhe que o alimente, enriqueça e encante. Foi uma submissão, mas não o apaziguamento : a lucta se mantém sempre imminente, o homem está em desafio e a natureza em ameaça. A vida é uma perpetua lucta, uma anciã insa­ ciável de descobrimentos contínuos, um infa-tigavel movimento de conquista, a marcha para o interior do paiz, uma vaga inquietação, uma instabilidade perturbadora, nessas immigra-ções incessantes das próprias gentes da terra, que errantes vão para além á busca da riqueza, n'uma corrida accelerada para a morte, que as espreita nas florestas traiçoeiras e nas pérfidas águas dos rios sinistros. Que importa ? Outros homens virão para o triumpho, fascinados, ardentes e ávidos, — perpétuos escravos da imaginação...
Mas, por um capricho commum do sentimento, essa própria Terra, que o brasileiro combate e martyrisa, se lhe torna objecto de veneração e amor. Ha uma fatalidade no temperamento da raça para a exaltação. O prestigio da gran­ deza do território enleva e envaidece o brasi­ leiro. Elle sente-se o homem de uma grande terra e sabe que essa terra é bella. E nessa seducção, nessa dominação da natureza, está
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a fonte do providencialismo, que exerce no espirito brasileiro a faculdade motora da sua actividade e também de um doce descuido. O brasileiro imagina que tão maravilhosa terra não pôde deixar de ter um esplendido destino, e vae para adeante impellido pela fata­ lidade, na barca da phantasia, certo de repre­ sentar no mundo o papel que crê estar-lhe reservado.
E também nesse mysticismo physico da gran­ deza da terra estão as raizes do exaltado pa­ triotismo, que se vae transmittindo ás gerações e dá logo á aurora da infância essa illusão nacional, que enche a creança brasileira do orgulho da luz, do céo, das estrellas e das ou­ tras expressões da natureza pátria. As me­ nores cousas se engrandecem nessa miragem infantil. Para uma creança brasileira tudo da sua terra é superior a tudo das outras terras. O Brasil é o paiz dos maiores rios do mundo, da mais bella bahia, e o Pão de Assucar a mais elevada montanha do globo. E quando a creança percebe o seu erro, chora amargamente essa decepção infligida ao seu patriotismo. Mas a illusão da grandeza nacional lhe persistirá fecunda no espirito. E, mais tarde, fiel á miragem, a creança se tornará o homem ávido de alargar ainda mais a immensidade da terra brasileira.
OS TRABALHOS DO HOMEM BRASILEIRO
Logo que se sente separado do Todo univer­ sal, o homem tem de vencer os obstáculos que impedem a sua volta á unidade essencial do cosmos, que é a suprema razão do espirito hu­ mano. Essa tragédia fundamental da alma aggrava-se no Brasil pela discorrelação insupe­ rável entre o meio physico e o homem, incompa­ tibilidade da qual se origina uma metaphysica barbara, sobrecarregada pela hereditariedade dos elementos psychicos selvagens das primi­ tivas raças formadoras da nação.
Os trabalhos que ao homem brasileiro cabe executar para attingir á sua victoria espiritual, não são trabalhos physicos. Assim, o dever de vencer a natureza é mandamento moral que importa em submetter ao seu domínio o espirito tenebroso da terra, eliminar-lhe o terror que assombra e separa.
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A victoria material do homem sobre a natu­ reza do Brasil é considerável. Durante tempos immemoriaes o homem indígena da terra bra­ sileira foi subjugado pela natureza, de que se tornou o puro reflexo animal; o seu espirito se conservou rudimentar, absorvido totalmente no trágico meio physico, até que a redempção lhe foi chegando, trazida pelo espirito dos ho­ mens vencedores de outras naturezas. Mas a terra recebeu hostilmente o homem extranho que a viera domar. Dessa opposição da natureza contra a civilisação estrangeira se poderia formar o mytho de uma nova Atlantida selva­ gem, defendendo e escondendo para sempre o mysterio que a torna irreal como um sonho, e que, uma vez revelado, a despe da sua mara­ vilha, para tornal-a escrava do homem libertado.
A physionomia physica do Brasil predesti­ nava o paiz a resistir á invasão. O Brasil é disputado pelo mar, mas o mar não o penetra, e o continente fica massiço como indicio da lentidão e da força, que mais tarde caracterisa a marcha da sua civilisação. Logo á margem do mar, as montanhas se perfilam para prote­ ger a terra. E, além dellas, immensos rios, den­ sas e emmaranhadas florestas são alternados por campos ilümitados, tristes desertos, sertões desolados, onde passa o terror, das seccas que
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se revezam ao espanto das inundações, dando a toda a natureza a attitude das catastrophes imminentes, que trazem ao espirito a angustia dos cataclysmos sem fim.
A historia da civilisação portugueza em tão trágica terra é um dos mais profundos teste­ munhos da victoria do espirito humano sobre a matéria. A obra do descobrimento do conti­ nente brasileiro, a conquista da terra, a colo-nisação do território pelos portuguezes são phenomenos da lei espiritual da nacionalidade portugueza : a lei de constância vital, que re­ side no espirito de progressão da raça portu­ gueza. Essa lei de vida será também a do espi­ rito brasileiro, herdeiro do espirito portuguez, emquanto o homem brasileiro conservar pre­ ponderante a sua hereditariedade psychologica e emquanto a immensidade do Brasil, ainda por longo tempo insondavel, determinar o senti­ mento da progressão nacional.
Na diversidade geographica do continente brasileiro, a unidade moral, política e histórica da nação é o effeito espiritual da unidade de raça, que é o principio creador do paiz. As varias regiões do Brasil são disparatadas e tendem todas a differentes destinos geogra-phicos, e nenhum laço de ordem geológica as funde para formar com ellas um só todo phy-
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sico. A lucta do Rio-Grande do Sul para perma­ necer brasileiro, vencendo o destino geogra-phico, veiu attestar a força tradicional luso-brasileira, que encerra dentro do massiço do Brasil uma nação uniforme pela lingua e pelo espirito.
Emquanto a civilisação material se desen­ volve impavidamente, o elemento espiritual é perturbado pelos factores bárbaros das raças e do meio. A actividade do homem brasileiro, cujo fim será a sua libertação do terror, deve-se appücar principalmente á realisação da intima e infrangivel unidade do homem com o Todo, de que elle é parte instantânea e imaginaria. Para attingir a esta unidade absoluta, o homem deve se impor uma disciplina, que será a esthetica da sua vida espiritual.
Já vimos que o primeiro « trabalho » do ho­ mem é o da resignação á fatalidade do universo, o segundo o da incorporação á terra, o terceiro o da ligação á sociedade. São as três categorias da actividade humana; exercendo-as, não é a disciplina do .respeito que o homem pratica, é mais outra cousa: uma intima fusão com a vida total nos três aspectos em que ella se apre­ senta.
Para chegar á realisação d'essa unidade, 0 homem brasileiro terá de vencer os obstáculos
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que impedem a serenidade da sua vida esthe­ tica. Deve vencer a « natureza », qüe o apavora e esmaga, a «metaphysica», que lhe vem d'essa natureza e da alma das raças selvagens gerado­ ras do seu espirito, a « intelligencia », que é a faculdade de' comprehender o universo e no Brasil é estranhamente perturbada.
Resignação ao Universo. Seja o sentimento do eterno e perpetuo anniquilamento do universo a fonte da nossa vida* a força iirtrnortal da nossa existência. Vivámos a profunda alegria de sen­ tir em nós a passagem do universo nas suas transformações sem fim! Olhemos em nós mesmos a unidade absoluta! Tudo passa, tudo vive e morre, torna a passar, a viver, a morrer sob outras fôrmas em que se esvae a matéria universal, e não ha agonia na metamorphose da natureza. O segredo inquietador e tremendo da unidade do universo está percebido. E o pessimismo, que condemna tudo ávida instan­ tânea, seja a razão da nossa serenidade. Que os homens e as cousas não se lamentem de existir, que a vida continue ao rythmo do amor, que dá o esquecimento divino.
A base da perfeição está no conceito dò Universo. O Universo só se pôde expücar como i um espectaculo, em que o bem e o mal nãò existem e em que o prazer e a dôr são elementos
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geralmente activos e se confundem. Façamos da nossa existência o reflexo d'esse conceito esthetico; não basta a idéa pura, incapaz por si só de renovar a vida ; é preciso o sentimento. As civilisações brahmanicas e greco-romanas se engrandeceram no sentimento da força e da energia. O buddhismo e o christianismo, pelo sentimento da compaixão e da piedade, inspi­ raram a sympathia entre os homens. Os mo­ dernos reclamam a volta ao sentimento da energia para com elle renovar a vida humana. Não se volta a um sentimento perdido. Para renovar a vida é precisa outra cousa, que seja o reflexo de uma idéa nova; é preciso arrancar do conceito do perpetuo anniquilamento, da metamorphose universal, o segredo do senti­ mento espectacular do mundo. Deante d'esse sentimento cada homem é uma instantânea expressão do universo, e na sua consciência se reflecte a unidade essencial das cousas. Por elle chegaremos á nossa integração no cosmos e á suprema resignação á fatalidade universal. A arte é o espelho d'esse espectaculo. E a philosophia se transforma, vivaz e fecunda, na arte, como a idéa no sentimento.
Serena seja a nossa postura, impassível deante da vida e da morte.
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VENCER A NOSSA NATUREZA
A fremente energia que faz e refaz o mundo objectivo, inspira a sensação de que a natureza é uma obra de enthusiasmo. O Universo fra­ gmenta-se em fôrmas successivas, fugazes, inquietas e anciosas de se revelar. Ora, em parte alguma esse supremo enthusiasmo é mais vivaz do que na natureza do Brasil!
Estamos na dourada habitação da luz. Do alto do céo todo o vasto continente brasileiro apparecerá como um diamante a scintillar nas sombras do Infinito... A terra é perpetua-mente vestida de luz. A sua refulgencia abre no silencio dos espaços uma claridade ínextin-guivel, fulva, ardente, branda ou pallida. Tudo é sempre luz. Descem do sol as luminosas vagas offuscantes, que mantêm na terra a quie-tação profunda. A luz tudo invade, tudo ab­ sorve. Chapeia nos cimos das montanhas, derrama-se pelos valles, penetra nos desvãos das arvores, e a matta rutila como uma esme­ ralda ; espia pelas fendas da terra, e um sol se abre nas grutas sepulcraes. A vida não ador­ mece ao implacável clarão; vibra, fulgura o ar incandescido, a terra se volatilisa numa pulve-
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risação de luz. Desmaiam as cores do mundo e tudo se torna da côr da luz. E quando a noite,
repentina e doce, surge, estrella-se subitamente o céo, pontas de ouro dardejam sobre a terra e vêm tremeluzir na nacarada espuma dos mares, nas nuas cascatas argenteas, nos rios phospho-rescentes. A luz vaga sobre a terra. Loucos, juvenis, noctambulos espíritos das florestas, os pyrilampos executam a dansa da luz... Outras vezes, a luz é o luar. Gélida lividez transfigura o mundo. A terra é o espectro da lua, as cores fogem, tudo empalüdece n'uma brancura de cal. Agonisa allucinada a Uvida luz. E morrendo desce ao fundo dos abysmos e se transforma n'uma gloria de ouro: diamantes, topazios, rubis, mysteriosas estrellas a refulgir no desterro immemorial das entranhas da terra do Brasil...
Dentro dessa luz a Natureza ostenta os prodígios da sua creação. E' uma maravilha de grandeza e força. Como um rio que descesse do Infinito, o Amazonas, amplo e majestoso, atravessa aquelle mundo e com mil braços enlaça a terra, nympha tropical, fresca, humida, resplandecente. Pela sua força indomável tudo vence, tudo arrasta, tudo submerge, florestas e campos. Afoga-se nas suas próprias águas e um immenso e tranquillo mar apparece. Renasce e contínua impávido o seu curso sem fim.
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Fugindo a essa loucura das águas, a Natureza refugia-se nas altas terras descampadas, nos sertões, onde, inquieto, vaga na torrida solidão o gado silencioso, ou nos vastos pampas vapo-rpsos, onde a terra melancólica se vae unir aos céos longínquos. Por um momento a Natureza é triste, mas não tarda a desforra da alegria, que lhe vem no delírio da vegetação. E' a flo­ resta tropical na sua magnificência e na sua desordem» a floresta creadora da vida eterna, onde arvores sobem das profundezas da terra e se enlaçam como irmãs; onde tudo se trans­ forma, os pássaros coloridos são como flores aladas, os ventos como pássaros que cantam... Tudo é magia no silencio verde. Curupiras surgem como fogos que dansam, e toda a matta estremece. Mas, n'um canto da floresta, á mar­ gem do regato, á hora rubra do sol poente, a Yara, a mãe d'agua, penteia os seus cabellos ouro e verde. A luz acaricia-lhe os olhos crys-talünos, e toda a matta sorri...
Tal é a maravilha da natureza em que se perde o homem brasileiro. Ha no seu espirito a angus­ tia do exilado nesse mundo paradoxal. Lamenta-se e transforma em dôr a alegria tropical, que exalta e divinisa o Universo por um excessivo arrebatamento da belleza. O brasileiro é o lyrico da tristeza. Ainda não sentiu gloriosa-
104 A ESTHETICA DA VIDA
mente nos trópicos magníficos o frêmito do turbilhão das cousas tumultuosas. Só agora começa o deslumbramento do espectaculo da vehemente formação das novas sociedades, e uma doce aurora aponta no espirito de alguns homens, que despertam de um longo esqueci­ mento e sentem a nação predestinada a uma grandeza illimitada. O Brasil cessará um dia de ser o ambiente da elegia para inspirar os accordes do hymno dyonisiaco á força, á belleza, á alegria de nascer, que alli sorri na irreprimível germi­ nação da vida maravilhosa.
VENCER A NOSSA METAPHYSICA
As relações entre o homem e a natureza são secretas e imperceptíveis. Jamais o homem se separa totalmente da natureza. Esta continua indefinidamente no espirito humano. Ha um grande enigma no poder formidável da natu­ reza inconsciente, que procura prender e fixar a essência movei do homem e prolongar-se n'ella. Em plena intimidade com a natureza, o homem rude, desapercebido, é um prolon­ gamento do meio physico a que está identifi­ cado. Já vimos como o homem brasileiro é a
OS TRABALHOS DO HOMEM BRASILEIRO 1 0 5
imagem da floresta tropical. N'esse ambiente o homem primitivo vive a profunda e suave inconsciencia. Mas, se a floresta virgem é devas­ tada no espirito do homem e este se vê separado psychologicamente do seu meio physico, então a natureza é a grande adversaria e os homens têm a attitude de esmagados por uma força implacável. E' um terror immenso, instinctivo, gerado do despertar da consciência cósmica no espirito humano.
Desponta o mysticismo physico. A natureza, que foi espanto, passa a ser a grandeza descom-munal que nos arrrebata. O domínio da adver­ saria se transforma de terror em divinisação. Começa o culto da natureza. O espirito perde-se, dissolve-se, no êxtase da belleza do mundo, cujas caprichosas e desmedidas expressões são o orgulho do homem brasileiro. A metaphy­ sica desse espirito é a representação da alluci-nação causada pela natureza, como foi a meta­ physica da índia, e como não foi atranquiüa, harmoniosa e lúcida metaphysica dos gregos. Um povo com semelhante metaphysica está fatalmente paralysado pela exaltação mystica. A acção, aquella acção indispensável para viver no presente, que nasce do profundo e mara­ vilhoso idealismo e deve ligar a existência ao ambiente physico e social, não se caracterisa
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no Brasil pela actividade positiva evictoriosa da cultura. A acção é sobretudo outra; é mys­ tica e ascende dos fetichistas ingênuos, cujo espirito se perde na immensidade da natureza, até aos poetas, aos chefes de religião, aos ascetas e aos santos, creações desse mysticismo physico, que a floresta virgem transplantou para a alma humana.
O nosso delírio metaphysico se manifesta principalmente na representação trágica da natureza na alma dos selvagens. Os Índios e os negros da nossa formação são raças cheias de terror. Pela consciência se separaram do cos­ mos, e elles povoaram este terrível espaço de separação de seres phantasticos e tenebrosos, que são as divindades da sua rude mythologia. São mythos da natureza selvagem. E' a própria natureza adversaria manifestada pelo terror. Que deuses e que mythos são esses ? Ou o ser diaboüco, terrível, que encarna as forças ameaçadoras e destruidoras da natureza, o gênio mysterioso da matta, ou a melancólica ave que se lamenta de não mudar as perpétuas pennas, ou o supplicio do animal devorado pela própria pelle, ou o supremo esforço para fugir aos soffrimentos do mundo, que faz os homens subirem cantando e dansando aos céos, onde são mudados em estrellas, ou a ma-
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guada explicação de que os rios são os prantos da lua, lagrimas que correm pelo mundo. Tudo é allucinação, pavor, melancolia na alma selvagem que os gerou.
O mysticismo dessas raças primitivas explica o estado de magia interminável em que ainda vivem os seus descendentes. Na ausência de uma discipüna scientifica das forças naturaes, estas se tornam maléficas ou propicias pelas praticas dos pagés ! E o pagé, o mago, ainda persiste na nossa vida, na nossa poesia, na nossa ütteratura, na nossa política, através dos rudimentos da nossa cultura.
Outra conseqüência da metaphysica selva­ gem é o estado de immobiüdade, em que per­ manece a alma dos homens vindos dessa for­ mação. E' uma profunda inércia para a cultura e uma invencível lethargia. Os gestos animaes dominam no homem animal. A natureza transfunde aos homens o frenesi lubrico que lhes dá o instantâneo esquecimento da agonia do terror em que vivem. Esses espíritos não fazem a viagem sentimental que os liberta da própria animaüdade. A representação ideal do Universo é a do espanto e do assombro. A mentira nasce dessa perpetua illusão em que se abysmaram, e a maior illusão é a da natureza invencível. Dessa passividade e indifferença
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na noite mysteriosa em que divagam, vêm-lhe, como uma epidemia de ideal, o sentimento da negação da vida, a renuncia a toda a conquista do espirito. A rude metaphysica creou-lhes, sem chegar ás fôrmas superiores do nirvana indico, o mesmo fatalismo pessimista.
A grande victoria contra a natureza geradora dessa magia animista está na concepção esthe­ tica do universo. Eliminemos do nosso espirito o terror que vem daimmensidade. Approximemo-nos serenamente do mundo physico, que se reflecte em nossa alma. Não deve haver expressões dê espanto na natureza. Tudo é a unidade inquebrantavel da vida a que nos devemos conformar. Para vencer as montanhas que vos aterram, matae-lhes o espirito tenebroso nos antros de pedra e vereis como se abaixarão e serão para vós colunas sobre que passeareis os vos­ sos espíritos descuidados. Não vos será precisa a malícia dos homens astutos e tímidos que, para vencerem as montanhas, empregam o esprito sub­ terrâneo... Vós e ellas sois a mesma substancia universal. O imperativo categórico da vossa conducta é tratar a natureza como a vós mes­ mos, com esse largo e risonho amor do próximo, que a ella mais que aos homens deveis applicar. A natureza é a vida eterna!
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VENCER A NOSSA INTELLIGENCIA
Sa a intelligencia é destinada a conceber a relação entre causa e effeito, a « pensar a maté­ ria », a intelligencia brasileira soffreu a inelu-tavel influencia dos elementos bárbaros, nossos formadores. O espirito desprendido apenas do ani­ mismo permaneceu metaphysico, e a intelfi-gencia se caracterisou por essa fuga idealista que se contrapõe ao realismo portuguez. E' a grande separação entre o espirito brasileiro e o do seu creador europeu, depois que este, fundindo-se nos elementos selvagens, se transviou na pavorosa allucinação da natureza tropical.
Por esse vago e constante terror, o homem brasileiro parece sentir-se extranho ao mundo do seu destino. E' um perpetuo desterrado. Falta-lhe a intimidade com a natureza, esse accordo subtil e mysterioso que outros homens têm com as suas terras e que se traduz n'umainque-brantavel harmonia, na expressão de uma per­ feita unidade entre o espirito e a matéria. Por vezes tem-se a impressão de que o homem bra­ sileiro deixou as suas raízes em outras para­ gens ; é um transplantado que enlanguece n'uma singular nostalgia. Será a alma dos antepassa-
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dos europeus, a alma antiga, que se atarda e, divagando em sonhos, busca a pátria verda­ deira, perdida para sempre ? Será o acabrunha-mento deante da natureza adversaria e mys-tificadora ? O homem brasileiro é melancólico, e a sua tristeza se exprime pela voz da poesia.
De uma grande doçura, essa poesia é um queixume, uma suppüca. Ella diz a amargura da vida rudimentar, a adoração perpetua á natureza implacável, que envolve e subjuga o homem. No recolhimento das florestas, â mar­ gem dos rios, na contemplação do deserto oceano, nos plácidos e infinitos campos ou no saudoso sertão, o brasileiro estremece de pavor, exalta-se e é arrebatado no vôo mystico, consolo da tremenda realidade. Na hora da solidão, a poesia, nascida do terror, é uma oração deante do eterno mysterio... E de todos os rudes corações dos homens do mar, dos sertane­ jos, irrompe immenso, inextinguivel canto de saudade e de amor. E no rythmo dessa poesia das águas, das arvores e das mil expressões da natureza, passam as angustias de uma alma de esmagado, as ancias de eternidade, e a litte-ratura vinda de tão extremada sensibilidade imaginativa será fatalmente poética e meta­ physica. A arte no Brasil não é a representação da reaüdade, o divino espelho da vida. E' a
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representação da subjectividade do espirito humano, que se reflecte pelo prisma da poesia.
O sentimento do Infinito, o assombro, a hielancofia afastam a emoção artística da fôrma tangível das cousas. Esses sentimentos vagos, indefinidos, são fonte de poesia, mas não das artes de fôrmas Objectivas, das artes plásticas. Deixando de parte as questões subtis de luz e côr, ou, melhor, a ausência de côr por excesso da luz, no Brasil, apezar da luz triumphante e das maravilhas do desenho em que se ostentam as cousas reaes, não ha uma grande pintura nem uma grande esculptura. A razão essencial é que para o livre e completo desenvolvimento dessas artes falta-nos um considerável senti­ mento realista. Na índia também não houve grande pintura e nem uma esculptura superior. A índia é a pátria da metaphysica. Como os hindus, no fundo do nosso inconsicente tememos a natureza, que nos avassalla, e por isso não a representamos, porque não se repre­ senta plasticamente o terror, quando este chega a ser o terror da dominação. E' a falta de liberdade no meio physico. E não ha esfcul-
* ptores, porque não temos bastante sentimento realista e a natureza glorifica no corpo humano 0 seu triumpho. Para que houvesse artes plásticas e fossemos uma nação de artistas da
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fôrma, seria indispensável uma grande intimi­ dade com a natureza e sentirmos a imperiosa necessidade de represental-a pela sua côr e pelas suas linhas; seria preciso o sentimento da realidade, que é o sentimento das cousas objectivas, um conceito philosophico da vida, que eliminasse a nossa metaphysica do terror, que não fosse moral nem immoral, e para o qual o Universo fosse simplesmente a successão inde­ finida dos seres, conceito que fecundasse uma civilisação, em que o culto da fôrma e da sua expressão espiritual fosse inspiração da vida. Para o grego um bello corpo é a finalidade da existência; melhor e mais feliz uso do nous, da causa motora do Universo, que está em todos os seres, lhe épermittido. A esculptura, uma arte divina, porque reproduz a gloria do bello corpo... Magnificat!
A essa razão primordial que, pela psychologia, pelos elementos bárbaros da raça, pela gran­ deza pavorosa do meio physico, explica a ausência das artes plásticas no Brasil, devem-se juntar outras razões sociaes. O nosso tempo ainda não foi o da pintura nem o da esculptura. O sentimento do infinito, que é o da essência da arte, se inicia em todas as civiüsações pela poesia. Só mais tarde apparecem as outras artes, suscitadas pelas condições da vida social.
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As condições sociaes do Brasil não foram até agora favoráveis ao surto das artes plásticas. Durante os primeiros séculos que se seguiram ao descobrimento da terra brasileira, a nossa historia se escreve nas luctas pelo predomonio portuguez sobre outros invasores europeus, nas aventuras dos bandeirantes e nas longas e reveladoras viagens dos vaqueiros pelas cha­ padas do sertão. E' a vida nômada com a sua instabilidade e a sua incerteza, deixando no paiz apenas ügeiros traços de civiüsação. Nesse período, em que quasi nada se funda, em que as futuras cidades são simples aldeias ou pousos de soldados e traficantes, não ha solici­ tação alguma para a pintura e a esculptura. Os monumentos que exigem o ornamento da estatuaria, ainda não existem, nem egrejas, nem túmulos, na deserta terra em que o acam­ pamento de alguns dias é logo abandonado, segundo as necessidades da existência aventu­ reira. As casas, os palácios, que exigem a deco­ ração da pintura, não existem. As habitações são palhoças ou toscas moradas de vaqueiros, que vivem com os selvagens, na grande e inf e-cunda nostalgia dos errantes. Só mais tarde, quando se estabiüsa a conquista portugueza, começam a apparecer os primeiros monumentos de civilisação, geralmente egrejas rudes ou
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ingênuas, que ainda testemunham na nossa epocha o insignificante e encantador passado artístico, legado pelos fundadores da nacionaü-dade. Mas ávida daquelles tempos no nosso paiz, apezar de começar a fixar-se nas grandes proprie­ dades agrícolas e nas cidades embryonarias, ainda não era bastante prospera e culta para o desen­ volvimento das artes. Nos engenhos do norte, imagem da vida feudal, a arte não era uma neces­ sidade, e nem havia o excesso de civilisação que\;rea o luxo da arte. No sul do paiz a instruc-ção era ainda mais rudimentar, e os homens despendiam as forças em vencer a natureza, de que esperavam a fortuna.
Póde-se dizer que só ultimamente as cidades, como expressão de cultura de um povo, surgi­ ram em todo o esplendor no Brasil. Nessas magníficas cidades o sentimento da natureza desponta como um elemento artístico, o que é uma grande victoria do espirito brasileiro. A paizagem é incorporada ás cidades que se fundem no maravilhoso quadro de luz, de côr, de fôrmas, e por instantes parece que a arte, que fez a cidade, excedeu a própria natureza, nesse sentimento vago, que torna deliciosa­ mente indecisa a passagem do que é natural ao que é artificio humano. Será o começo de um grande despontar artístico no Brasil, em que
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a architectura, a pintura e a esculptura, as artes da fôrma assignalem o instante triumphal? Mas para a victoria completa, vençamos aquelle terror inicial, que nos separa da nossa própria natureza divina... Façamos da natureza uma obra de arte...
Na ausência das artes plásticas, a nossa imaginação tem os seus meios de expressão na littératura. A nossa producção litteraria é vasta e longa, mas ella se caracterisa infeüz-mente pela falta de obras que pela universaü-dade da emoção ou da creação tenham entrado no patrimônio collectivo da humanidade. E' ver­ dade que a littératura portugueza também não attingiu a essa alta situação, não porque fosse escripta em uma língua pouco conhecida, mas porque os seus melhores escriptores, limitando-se ao quadro portuguez, não souberam tirar das particularidades dos seus assumptos a genera-üdade da emoção indispensável para a commu-nicação com o espirito dos outros povos. Não tiveram o gênio dos escriptores da Noruega e da Suécia, que exprimiram nas suas obras o interesse universal, permanecendo essencial­ mente escriptores das suas pequenas nacionali­ dades.
E' possível que a littératura brasileira trans-mitta um dia o fluido que nos ponha em com-
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municação com o Universo intelügente. Por ora, ella não satisfaz plenamente á própria alma brasileira. Ha uma discorrelação entre esta e os seus interpretes. Não temos monu-mentes ütterarios, como têm todos os povos, porque somos um cháos, a matéria cósmica informe. E' precisa a estratificação pelo tempo, para que se erga o monumento, pedregoso embora, mas fixo e eterno, que exprima o gênio de uma raça. Por ora, vagamos nafluidez dos elementos. Todo o idealismo profundo e myste-rioso que se escapa na poesia triste e inquieta, raras vezes chega a penetrar nas regiões da littératura. A poesia culta, ou é extremamente formal, ou pela sua emoção lyrica e ás vezes pantheista é tão superior que é sentida por poucos.
Esse a formaüsmo » da nossa poesia se pro­ paga por toda a ütteratura. O brasileiro balbucia ainda uma fingua em que se sente extrangeiro, e como não escreve nessa Ungua hesitante, a ütteratura não representa pela língua escripta a alma collectiva. Ha uma üngua escripta e uma fingua popular. Aquella, producto de cultura, é fria, acadêmica, gongorica, e nesse paiz em formação, cuja alma se procura manifestar com energia e por signaes precisos, que sejam os signos fieis das cousas exteriores da nossa vida
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e dos secretos anceios do nosso espirito, volta-se extranhamente e sem esperteza ao classicísmo « bárbaro » dos portuguezes, como á suprema fôrma litteraria do Brazil. E" uma jrasta ütte­ ratura de pedantes. E' o defeito da cultura artificial, vicio que perdeu as modernas litte-raturas italianas e hespanholas, que foi cons­ tante em Portugal, e separa pela linguagem a casta dos litteratos do verdadeiro espirito nacional.
Assim, a nossa inteüigencia, para se übertar dos elementos bárbaros, fez da cultura um acto de máo gosto e um acto de cobardia, produzindo uma ütteratura incolor, sem obras, onde o idealismo do nosso espirito metaphysico não encontra os seus symbolos, nem a vida as suas creações ideaes. E no emtanto aquelles elementos bárbaros da nossa formação espiritual e da nossa nacionalidade reclamam, antes do seu desapparecimento total, os seusvates e os seus escriptores. O que ha de grandioso, de descom-munal, de monstruoso, de amorpho, de infantil, de caduco mesmo, na natureza e nas gentes, exige a sua epopéa. Alguns tentaram ser o poeta, o épico dessa selvajaria, A natureza os fez bárbaros e capazes da necessária incons­ ciencia. A cultura rudimentar, porém, que adqui­ riram, pol-os em desequiUbrio com a sua ver-
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dadeira « pátria ». O pedantísmo matou nelles a intima selvajaria. Deixaram de exprimir inconscientemente para vêr e explicar. Nunca taes escriptores se entenderam secretamente com as cousas de que trataram.
Louvemos por isso a finura de Machado de Assis, que escapou á selvajaria dos assumptos e da expressão e não cahiu no gongorismo e no pedantísmo. O seu espirito ficou clássico, mas do classicismo do pensamento, que remonta á Grécia, e de que só a França tem nos nossos dias o segredo. Um dos problemas que preoc-cupam a critica no Brasil, é a ausência da a natu­ reza » nos livros de Machado de Assis, e quasi todos concluem ser um traço da inferioridade do escriptor. Alguns mais perpicazes attribuem essa singularidade, no meio de uma ütteratura desordenada, em que a paizagem é um perma­ nente, e por vezes fastidioso, personagem, á influencia da ütteratura clássica pre-rousseau-niana. A questão não fica resolvida, porque, se Machado de Assis pendeu para o classicismo, foi exactamente por causa da sua antipathia intima á natureza tropical. Não foi o classicismo que o afastou da expressão do sentimento da natureza, porque o classicismo é pantheista na sua ori­ gem, a natureza lhe inspirou as obras do seu lyrismo, as pastoraes, as bucoücas, as georgicas,
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como a civlisação e a historia lhe inspiraram as epopéas.
O segredo de Machado de Assis, que o faz único no Brasil, é a sua incompatibi­ lidade com o meio physico e a metaphysica que deste provem. E a sua grande superiori­ dade foi que, não podendo vencer a natureza, dominal-a pela arte e pela philosophia, teve o heroísmo de simular a não existência dessa natureza tropical, que é a grande perturbadora dos artistas e poetas brasileiros e que, elle o sentia, devia ser vencida... E' um traço de malícia hellenica. E por elle e por muitos outros Ma­ chado de Assis fica sendo o escriptor solitário da üngua portugueza. As raízes do seu espirito são seculares. Pela harmonia dos seus gestos, pela graça da sua expressão, pela agudeza e claridade da sua razão de geometra, não tem companheiro em qualquer tempo na ütte­ ratura da üngua portugueza. E quem tem a sua liberdade de espirito ? Machado de Assis é o nosso escriptor üvre. A sua phantasia é impre­ vista, elle escreve vendo, gosando o espectaculo. Os seus grandes livros foram escriptos quando tinha os olhos inteiramente abertos, e por isso a sua pintura da vida é uma zombaria. E' es­ criptor, actor, espectador e leitor dos seus pró­ prios livros e nunca responsável pelo que nelles
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possa acontecer. E' um auctor sem compromis­ sos. Entrega os factos sobre que escreve ao inconsciente da sua invenção, e assim procede como a natureza, descuidado, surprehendente, fatal. Nesse escriptor livre, senhor de si, e tão üvre que não teme imitar outros escriptores, ha dous embaraços á plena e indomável liber­ dade : o pessimismo e a volúpia. A cultura da melancoüa, o preconceito do scepticismo, a obrigação do commentario pessimista limitam-lhe a maravilhosa überdade do espirito. E além dessa restricção, tem ainda para o fazer hesitar um vago respeito conservador, que transparece excepcionalmente, mas que não se liberta de todo. Por que razão Braz Cubas se enternece, perde a sua serenidade desdenhosa, se torna compassivo, vendo a mãe morrer ? Sterne não sacrificaria á piedade. Machado de Assis sacri­ ficou, porque é meigo fundamentalmente. Como elle trata as mulheres, como as faz desejadas! E o escriptor é atraiçoado pelo poeta volu­ ptuoso. O sexo domina-o, alquebranta-o, como uma pertinaz e deüciosa obsessão. Mas, ainda assim, esse voluptuoso, esse pessimista, mantém nas suas obras a ordem dos gestos e se torna incomparavel pela tendência da sua arte á universafidade, pelos prodígios da invenção, pela mobiüdade da expressão, pela subtileza e
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limpidez do pensamento e da phrase, pelo desdém que o isola e engrandece. Nelle a intelfi-gencia foi differente, e por isso tal escriptor foi o maior accidente brasileiro 1
Não é uma arte victoriosa a dessa ütteratura de disfarce, que dissimula e ignora o grande elemento cósmico em que vive o espirito brasileiro. A esperteza de Machado de Assis, illudindo a existência da natureza tropical que o esmaga, e libertando-se da sua oppressão pela ironia, não resolve o primordial problema da intelügencia brasileira, que é o de vencer o terror do mundo physico e incorporar a si a natureza. A cultura übertará o nosso espirito. E' a grande transformadora da vida. Por ella tudo é compre-hendido, dominado e tudo se torna accessivel ao espirito, até então vago e assombrado. No co­ meço foi o terror, no fim será a libertação. Pela disciplina da cultura esthetica se realisará a união indissolúvel do homem brasüeiro e da natureza tropical, a hypostase mystica do espi­ rito e da matéria no Universo, que formará a alma e o corpo de um só deus, total e infinito.
CULTURA E CIVILISAÇÃO
A MELHOR CIVILISAÇÃO
O que distingue o homem do animal é sobre­ tudo a faculdade de idear, de crear as relações entre o seu próprio eu e a matéria universal. A cultura, que é a subjugação da permanente animalidade no homem, é tanto mais elevada quanto os homens são capazes de comprehender a unidade infinita do Todo. E como esse sen­ timento só lhes pôde vir pela philosophia, pela arte ou pela reügião, uma civilisação em que as faculdades intellectuaes predominem, será superior áquella em que as actividades mais animaes forem preponderantes. Uma civiüsação em que se forme uma eüte de philosophos, de artistas e de religiosos, será superior a outra em que as preoccupações dos indivíduos forem de ordem material, composta de negociantes, de industriaes, de agricultores e mesmo de guer­ reiros. Povos carniceiros, povos guerreiros como os Romanos ou os Allemães, povos traficantes
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como os Carthaginezes ou os Inglezes, não valem esses povos mysticos e artistas, Hindus, Gregos ou Francezes, cuja homogeneidade de cultura se exprime na perfeita harmonia das manifestações do espirito que crea um pensa­ mento, uma arte e uma religião, signos de uma civilisação transcendental.
A libertação da animalidade collectiva, que é o facto essencial da civilisação, é a epopéa do espirito humano. A civiüsação é uma vio­ lência do homem á natureza. Os deuses primi­ tivos, que guardavam os segredos da vida, velavam pelas fontes da eternidade. Não eram civiüsadores e mantinham o homem na total ignorância dos mysterios. Num povo adean-tado e vivaz como o grego, o mytho de Pro-metheu traduz esse ciúme que os deuses tinham do espirito humano, ávido. de conhecer e pro­ gredir. Prometheu, traidor dos segredos divi­ nos, é punido por querer civilisar os humanos» iniciando-os nos mysterios da natureza, de que o prodígio do fogo é um symbolo. Mais tarde, pela evolução dos próprios deuses, estes per-mittem a libertação de Prometheu, e o pacto se faz entre deuses e homens pela instituição do culto. E* a marcha da civiüsação, que se notará em todos os povos e que as religiões primi­ tivas assignalam nas suas lendas. Assim entre os
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Judeus, entre os Hindus e çntre os Escandi­ navos.
Ao mesmo tempo que a humanidade se espi-ritualisa, por uma evolução parallela do di­ vino, os deuses se humanisam. Em todas as religiões os deuses primitivos são cruéis e, se chegam a ter o sentimento da justiça, esta é inflexível e implacável. Pouco a pouco os deuses se tornam clementes, a justiça recebe aquella porção de piedade e doçura que a abranda. Jehovah se transforma em Christo, Brahma em Buddha. Ainda hoje, entre os selvagens, os deuses do mal sobrepujam os deuses do bem e a divin­ dade é o terror dos homens. O primeiro milagre da civiüsação foi suscitar uma religião de sym-pathia humana, verdadeira Uga espiritual, que estabelece a sociabilidade sobre as bases do sentimento do divino, que aspira a ser uma regra de concórdia universal.
O outro milagre foi o sentimento collectivo da arte. Certamente que, por uma fatalidade do nosso espirito, somos levados ao sentimento do infinito pelas emoções vagas, que nos vêm das fôrmas, das cores e dos sons. E a unidade do Universo se realisa assim no nosso espirito pela Arte. Mas foi uma magnífica victoria dessa civilisação tornar coüectivo esse senti­ mento inherente ao homem, dar espiritua-
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üdade ás sociedades humanas que, pelas suas manifestações de arte, e no culto desta, reafisa uma homogeneidade sentimental. Do senti­ mento collectivo se origina uma idéa de belleza peculiar a cada povo e em que se synthetisa a sensibilidade de cada civiüsação. Não ha duvida que o conceito da belleza é relativo e muito contingente; a sua crystalüsação na alma múl­ tipla das sociedades humanas fôrma esse ideal, que é a suprema aspiração da existência e a força inspiradora da cultura. Póde-se dizer que, se a sociedade tem um fim, esse seria a constituição de uma elite, em que se realisasse um ideal de belleza. Essa belleza se exprimiria na obra de arte, templos, estatuas, quadros, poemas ou também na flor humana. Belleza puramente plástica, beüeza da fôrma e da unha, ou belleza espiritual da expressão e do gemo, é o labor incessante da cultura na matéria universal, e o supremo artista é o Tempo, subtil e infatigavel. Um povo se deve orgulhar tanto da sua mais bella mulher, do seu mais perfeito homem, como do seu maior poeta ou seu mais sublime santo. Em todas essas expressões, ha o supremo resultado do esforço da raça e da civiüsação. Póde-se dizer que o organismo social se desenvolve parallelamente na sua fôrma externa e na sua estructura intima, e que
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o esforço das energias accumuladas da 'civili-i sação é aspirar á creação das expressões supe­ riores, o ideal, o guia, que attráem e engran­ decem as multidões moraes. Pela sua magní­ fica força de suggestão, a vida collectiva seria a maravilhosa epopéa da aspiração transcen­ dente, a divina tentação do segredo do infinito.
Uma civiüsação em que se determinasse a formação de taes elites, seria evidentemente superior a outra civilisação em que a actividade humana se desenvolvesse na progressão da força material, anniquilando as forças espiri-tuaes. Pelo facto de uma tendência mais accen-tuada de uma ou outra corrente, já se quiz dividir a civiüsação em civilisações de quanti­ dade e civilisações de qualidade, attribuindo-se a crise, o apparente cataclysmo da civilisação actual ao predomínio da quantidade sobre a qualidade.
Esse conceito paradoxal da historia inspira-se directamente no espectaculo da civilisação mo­ derna, em que a industria de alguns povos se distingue, pela qualidade, da quantidade pro­ duzida em outros. Desse facto industrial não se pôde tirar a característica de toda a civilisa­ ção e menos ainda concluir que as civiüsações antigas eram civiüsações de qualidade e reali-savam um ideal de belleza perdido na civilisação
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moderna, em que o numero, a quantidade, a loucura do ilümitado vieram abolir o sentimento da perfeição. O erro fundamental desse con­ ceito está em attribuir uma vontade, um fina-lismo á sociedade humana. O conceito finalis-tico da historia é um contrasenso, como o con­ ceito finaüstico da natureza.
A teleologia, a finalidade na historia, sup-põe um plano preconcebido ou pelo menos uma vontade directora, uma providencia, o que é inútil refutar. E" preciso não se dar uma excessiva attenção á parte do consciente na evolução humana. A philosophia da historia commetteria um erro, se concluísse que a civiüsação se enganou. A civilisação, que exprime a aspiração collectiva da humani­ dade, não se engana. Tem de obedecer á fatalidade das forças que a conduzem, que a inspiram, e os seus fins são os deteiminados pela sua própria natureza. Não se pôde dizer que houve retrocesso na civiüsação, tornando-se esta mais quantitativa do que qualitativa, se isto fosse exacto. Realmente a civiüsação moderna não poderia reproduzir a formula da civiüsação antiga. Pela evolução histórica, pela confluência de todos os povos em nossa epocha, não somos gregos nem romanos. Somos do nosso tempo.
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E' possível voltar-se ao ideal antigo, ao ideal perdido ? Todo o senso esthetico, moral e político de uma epocha não é aquelle que se deseja. E' o que nos vem do sangue dos povos que confluem em nós e de toda a lucta que caracterisou a marcha do espirito humano no grande espaço percorrido. Se alguns povos se distinguem de outros por um ideal differente e mesmo por uma doutrina collectiva, esse ideal e essa doutrina são as expressões mais com­ patíveis com o inconsciente desses povos. A dou­ trina da força se desenvolveu melhor e mais im­ periosa na Allemanha, porque correspondia ao inconsciente allemão, como um ideal pacifico coreresponde melhor ao sentimento americano, ao espirito de um povo de commerciantes, industriaes e juristas. No emtanto, a Alle­ manha e os Estadcs-Unidos são, segundo aquelle paradoxo da critica»histórica, civiü­ sações de quantidade. Nada mais differente que o sentimento de cada uma dessas nações, e essa opposição as levou á guerra.
Póde-se affirmar que a civilisação não se divide em dois princípios antagônicos e a civilisação antiga não foi somente uma civiü­ sação de perfeição ou da busca da perfeição pelo principio da qualidade, e que a civiüsa­ ção moderna, rejeitando a qualidade, é uma
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civiüsação de poder, de força, baseada na quan­ tidade. Esses dois princípios não são separa­ damente o apanágio da edade antiga ou da edade moderna: sempre coexistiram em todos os tempos. Os Assyrios, e os Egypcios de Sesos-tris, na antigüidade, tinham o ideal do poder. Os Gregos não o tiveram por circumstancias de meio geographico e condições históricas, que os ümitaram. Roma fez do poder a funcção principal da sua organisação. Toda a quanti­ dade tende á qualidade, e na própria força do domínio busca-se um ideal de perfeição. O mysticismo do poder é a conseqüência do espirito de dominação. Não foi a quantidade, isto é, o desenvolvimento industrial excessivo, que determinou o imperialismo da Allemanha. Ao contrario, foi o espirito mystico de domi­ nação que inspirou a concentração de todas as forças industriaes para um ideal político de domínio.
As idéas de quaüdade e de quantidade expri­ mem uma critica clássica, fora da realidade presente. Aquelles que lamentam os suppos-tos velhos tempos da qualidade, como principio exclusivo da industria, são reaccionarios e românticos. Os factos marcam a evolução. Pela lei histórica da industria esta tende á con­ centração, portanto á quantidade. Não ha meio
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de voltar-se a uma concepção social que fez a sua epocha. Os paizes da qualidade seriam absorvidos pelos da quantidade, que teriam a supremacia econômica e tornariam os outros seus dependentes. E' preciso conceber a quan­ tidade conjunctamente com a qualidade. Pro­ duzir intensamente e bem, tal é a lição da historia e a fatalidade da coexistência social. A arte é uma expressão de qualidade ; á indus­ tria, porém, que é uma appücação da arte e da sciencia para o fim utilitário immediato, deve conciüar a qualidade com a quantidade, segundo as necessidades da população superabundante e da necessidade do conforto que domina os espíritos übertados da escravidão da Edade Média. E' o sentimento da egualdade na socie­ dade inspirando o progresso industrial e econô­ mico. A civilisação não é um simples facto econômico; ella é a victoria total da cultura do espirito na matéria universal, o surto da espi­ ritualidade humana além da animalidade im-perecivel. Essa victoria se realisa fatalmente na evolução do espirito humano pela quanti­ dade ou pela qualidade da producção collectiva, por ambas ao mesmo tempo.
Tendo tornado clemente a divindade e insti­ tuído o culto religioso que liga os homens, tendo suscitado um ideal collectivo de belleza e a su-
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premacia da eüte, que é uma força suggestiva, a outra grande conquista da civilisação foi a organisação poütica da sociedade sobre a base do direito e a subordinação do governo ao prin­ cipio da justiça.
A imagem que nos suggcre a marcha da civi­ üsação, da tribu á nação, da classe ao indivíduo, é a de uma immensa parábola descripta pela historia dos povos. No principio foi a auctori-dade absoluta, a concentração do governo numa classe dominadora ou na pessoa de um chefe rudimentar, quasi divino, armado de um poder discrecionario. Pouco a pouco, a pará­ bola se desenvolve do máximo governo ao menor governo, o que levaria a se suppôr a hypothese mathematica de uma coexistência social sem auctoridade, se a figura geométrica não soffresse as opposições contingentes que embaraçam o seu livre e absoluto traçado. Todavia, no inicio das sociedades políticas, a força social não residia nos indivíduos como entidades synthe-ticas. Antes delles se affirmavam as corpora­ ções, em que as individualidades ainda não despontavam. Ainda se encontram vestígios dessa organisação na historia dos povos de uma cultura superior, como os Gregos. As cor­ porações de poetas existiam unificadas antes de Homero; os asclepiades eram corporações de
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médicos, curandeiros, adivinhos, antes de Hippo-crates. Os indivíduos se destacaram pouco a pouco dessas nebulosas geradoras das personali­ dades.
A mais remota fonte do direito é a força; a civiüsação transformou essa força em direito e lei, e a justiça foi appücada pelos árbitros e pelos tribunaes. Uma evolução parallela desses institutos jurídicos occorre tanto no direito privado como no direito pubüco e internacional. O Parlamento é a figura do poder arbitrai pela sua origem e pela sua funcção. O Estado já está sujeito ao regimen commum dos tribunaes, como os indivíduos. No direito internacional, procura-se restringir os excessos da força pelo arbitramento e pelos tribunaes de justiça.
Neste instante da civiüsação, o poder mystico do Estado é uma anomalia. O Estado-Deus, (exaggeração do principio individualista do di­ reito germânico e fructo da concepção unitária do mundo, que se synthetisa nas mónadas, gera­ doras do Universo e da sociedade) consoüdou o poder autocratico incompatível com a idéa de überdade e o espirito de justiça da civiüsação moderna, e levou a Allemanha ao desastre. A lei histórica exige que a civiüsação proceda como a natureza, do homogêneo ao heterogêneo, do máximo Estado ao menor Estado,
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A idéa de justiça é relativa, mas na sua essência significa a limitação do poder absoluto, o impedimento da absorpção do indivíduo no Estado e do domínio exclusivo de uma classe sobre outra, de um homem sobre os seus se­ melhantes. Nella repousa a sociabiüdade humana. Quando se rompe o equilíbrio que esse sentimento crea, é fatal a ruina do povo movido pela injustiça.
A NAÇÃO
Durante a batalha o espirito interrogava : — « Para onde esta incommensuravel guerra
levará o mundo ? Que mysterio estará reservado a esta frágil terra, açoitada pelo vendavàl da metralha ? Que nova ordem social resultará deste amálgama de sangue, de lama, de crimes, de sonhos e de esperanças ? Que floração enfei­ tará de novo a terra estripada, devastada e morta ? »
Findo o combate, a alma andada interroga ainda e o enigma persiste inquietador. Esta­ mos em plena decomposição de um mundo, absorvido no cataclysmo, e no instante indeciso da nebulosa geradora de outro mundo. O espi­ rito dos homens está perplexo e presagia que toda a construcção dos dirigentes dos povos é vaga e instável, que ha um artificio inspirado nas formulas do passado, que não se adapta á terrível realidade do presente. Nesse nevoeiro, em que se esbate em contornos tão imprecisos
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o mundo ainda longínquo, vê-se que o homem se apossa do Universo. Para esse homem novo o niundo é a sua propriedade. Elle übertou-se do terror inicial e domina a matéria infinita. Não se curva a nenhuma auctoridade e os dons da terra lhe pertencem.
Desencadeiado, ébrio de desejos, leva pelos vastos espaços livres o facho que queima, de­ vasta e illumina. E que mais vês na treva inson-davel, ó alma inquieta ? « Vejo na densa bruma os sonhos que se juntam depois de longa sepa­ ração, vejo as esperanças que se reúnem depois de tão duramente afastadas, os espíritos que se entendem nas secretas imagens da mesma üngua, a idealidade collectiva que brilha, vinda do mesmo sangue e do passado immortal. »
O homem e a nação, a affirmação do indivi-duaüsmo transcendente e o renascimento do espirito da nacionaüdade são as duas forças que recompõem o mundo nesta curva da his­ toria. Vão eües contradizer-se ? Oppor-se-á o individualismo ao nacionaüsmo ? Não persisti­ rão, não se renovarão as nações ? Quebrar-se-á tudo o que era o molde do espirito humano ? Será o homem sem pátria, o homem univer­ sal, a expressão victoriosa da evolução ?
Por mais estranho que pareça e por mais ousado que seja qualquer affirmação nesta
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hora turva, os dois princípios não são antagô­ nicos e uma solução espontânea se está dese­ nhando na incorporação definitiva do indivíduo á nação. A idéa de pátria está na raiz do espi­ rito humano. E a tenacidade maravilhosa com que na guerra todos os homens acabam de defendel-a, é uma affirmação da sua presença permanente na ideaüdade humana e do seu glorioso rejuvenescimento. A nação é o quadro inquebrantavel do indivíduo. O eu individual se completa no eu nacional. No encadeiamento dos seres do mesmo passado coüectivo, que continua a marcha no tempo sem fim, é que está o doce mysterio da vida humana. A Nação é o meu próprio eu no que elle tem de eterno, de profundo, de remoto e de forte, porque ella resume e exprime os sentimentos de almas como a minha, que formam um todo immortal.
E as luctas em que o indivíduo se empenha neste momento da posse do mundo, fora das affirmações superiores da nacionalidade, são de ordem secundaria. As questões econômicas mais ameaçadoras não se resolverão fora do conceito da pátria retemperada no fogo e na morte. Assim como a victoria do terceiro estado na Revolução Franceza não entravou o principio da nacionalidade, assim o advento do quarto estado não quebrará as espheras
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nacionaes e dentro d'ellas se realisarão as trans­ formações da sociedade. Nessa accommodação das idéas absolutas á realidade ineluctavel está a formula do pragmatismo político indispen­ sável á vida humana, de cuja infinita comple­ xidade a ordem é o precipitado essencial.
A guerra é a dôr. Ella despertou em nós a consciência do espirito nacional. A partici­ pação de Portugal e do Brasil na guerra revelou a essas pátrias a identidade da alma da raça que, apesar de tantas uniões disparatadas, persistiu a mesma, tenaz e immorredoura, através da fuga irreprimível do tempo. A guerra foi mais um traço de união da nacionalidade lusitana dos dois mundos. Pela força do ins­ tincto da raça o povo brasileiro e o portuguez se sentiram em communhão de destino na defesa contra o germanismo, que os quiz eliminar das suas pátrias!
A guerra foi também a pedra de toque da vitalidade portugueza. Se o organismo amea­ çado de morte não tivesse reagido, seria o fim de Portugal. A repulsa instinctiva opposta pela raça portugueza é um admirável teste­ munho de que Portugal não renunciou á sua immortal missão no desenrolar da historia da humanidade. Elle não fez a grande abdicação, il gran rifiuto, a que se condemnou a Hespanha.
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A intervenção de Portugal foi um acto lógico de tradicionalismo nacional. Assim como ha para os seres da escala zoológica uma lei de constância vital, deve haver a mesma lei de vida para (as nações. A lei de constância portugueza se define no espirito de progressão da raça.
Todos os organismos tendem a manter as cellulas que os compõem, n'um meio chimica-mente idêntico ao seu meio original. A historia da formação da nação portugueza attesta-lhe a lei de constância. Logo que a nação se consti­ tuiu ahi « onde a terra acaba e o mar começa », o destino de Portugal ficou traçado. E' um des­ tino de expansão inspirado pelo espirito de progressão nacional. Formou-se uma alüança entre Portugal e o mar, e nessa fusão se encontra o meio vital da nação portugueza. Na fideüdade a esse meio de origem cellular está o segredo da vida do organismo portuguez. Pelo mar, Por­ tugal se estendeu, e antes de partir de Sagres e dobrar o Cabo da Boa Esperança já havia attingido á África e á Ásia. Portugal se torna uma nação universal e ao Brasil transfunde aqueüe inicial espirito de progressão. Em um e outro hemispherio a lei de constância da raça portugueza é a mesma. A fatalidade da força vital a impelle á expansão nacional, ao desenvolvámen-
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to da pátria pela face da terra. Portugal não pôde como a França fimitar o seu território euro­ peu. A sua alüança primitiva com o oceano fixou-lhe o destino. Se elle não conservar o ambiente desse meio vital, se o quizerem redu­ zir a viver sem expansão, Portugal definhará, e essa é a principal expücação das crises de desfallecimento no curso da historia.
Quando Portugal cessa de desenvolver a sua nacionalidade, a raça portugueza continua no Brasil a sua prodigiosa tarefa de descobrir e conquistar terras, de povoar desertos e incor­ porar novas regiões, mantendo assim o im­ pulso originário pela força da lei de constância vital. Essa anciã de crescimento não terminou, e ella é a melhor expressão da vida collectiva brasUeira. O mesmo caracter de raça anima os dois povos, a mesma lei de vida funde espi­ ritualmente os dois paizes. A união política de Portugal e do Brasil, conseqüência da uni­ dade moral das duas nações, seria a grande expressão internacional da raça portugueza.
Para se justificar essa magnífica aspiração de duas nações da mesma alma e da mesma língua, bastaria o sentimento da defesa do patrimônio portuguez ameaçado ainda ha pouco pela cú­ bica da Allemanha.
E' uma questão essencial para o Brasil.
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No século XVII os Brasileiros, já conscientes do destino universal de Portugal, vieram, com-mandados por Salvador Correia de Sá, expulsar os Hoüandezes de Angola. A historia se repe­ tiria : os Brasileiros teriam vindo novamente defender as colônias portuguezas, se Portugal, n'um esplendido esforço, não tivesse repelüdo por suas próprias mãos a invasão allemã. Trata-se de manter o nosso prestigio commum no Atlântico. E, além dessa consideração, que é dominante na ordem poütica, deve-se considerar o grande bem que seria para a immortaüdade do pensamento brasileiro a sua incorporação no mundo portuguez. Haveria a universali­ dade para o espirito brasileiro e maior aspiração humana para os destinos do Brasil. Unido a Portugal, o Brasil se tornaria uma nação euro-péa, reaüsando a fusão do Oriente e do Occi-dante sob um só espirito nacional, que seria portuguez, como para outras regiões é inglez ou francez. Para Portugal um grande bene­ ficio poütico resultaria da sua união com o Brasil, nação americana, onde a cultura portu­ gueza obteve un rythmo mais accelerado e vivaz. Por toda a parte, no vasto e velho domínio portuguez, sopraria o espirito de mocidade vindo do Brasil, e uma nova vida recomeçaria, mais ardente, mais poderosa e mais bella.
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E como essa unidade de dois paizes viria imme-diatamente terminar com as barreiras fiscaes nos portos portuguezes para a exportação brasileira, Lisboa se tornaria a grande cidade européa, base do commercio brasileiro, e logo uma grande transformação se reaüsaria na poética metrópole portugueza, chamada a um deslumbrante futuro internacional, epara todo Portugal seria a magia da prosperidade.
As razões econômicas que determinam a união de Portugal e do Brasil, foram percebidas pelos Allemães, quando ambicionavam se apossar do sul do Brasil e das colônias portu-guezas da África. A Allemanha queria cana-fisar para Hamburgo os productos do Brasil e de Angola. Sc o Brasil e Portugal se unirem, em vez de uma concorrência entre às duas re­ giões productoras dos mesmos gêneros e das mesmas matérias primas, se daria fructuosa e fraternal collaboração.
E o momento é opportuno para realisarmos esse admirável plano político, porque desta guerra nasceu uma decisiva corrente idealista, que influirá para chamar a sympathia do mundo para o ideal luso-brasileiro. Uma grande força de attracção funde as nacionalidades da mesma üngua e do mesmo pensamento, e desse esplendido movimento de cohesão nacional
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surge a Polônia renascida, a grande Rumania, a federação yugo-slava e a Bohemia revelada pelos Tcheco-Slovacos. A federação luso-brasi-leira mais simples, mais fácil, não se fará pela guerra nem pela morte, mas pela intelfi-gencia e pela vontade de cincoenta milhões de homens, inspirados por um mesmo pensamento nacional, que quer ser eterno.
Sendo portuguez, o Brasil não deixará de ser uma nação americana. A originalidade do Brasil é ser o continuador de Portugal, o herdeiro de espiritualidade latina no mundo americano. O privilegio do Brasil é o de fundir duas forças : a que vem do passado no sangue portuguez e a que recebe do ardente meio physico em que se desenvolve essa transplantação da alma latina. Essas duas forças não se excluem, e emquanto a sua fusão se realisa suavemente e a im-pulsão americana move sem violência as idéas e a sensibiüdade portugueza, uma vida ardente inflamma o immenso paiz. A terra brasileira eleva-se n'uma ascenção espiritual. Sente-se em cada pensamento a inspiração de um grande destino. A energia crea a miragem, que por sua vez se torna o animador da vontade. O Brasi­ leiro vive o poema da aspiração. A sua alma illumina-se á idéa de que a pátria deve ser forte e majestosa, como a natureza onde elle se
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fixou. Na equivalência do mundo moral e do mundo physico, no esforço de adaptar a nação á natureza e de a edificar nas mesmas vastas dimensões desta, acha-se a cellula primordial de toda a ideafidade brasileira, herdeira de Portugal. Concentram-se as energias nesse plano de uma grande nação. Para o realisar, todas as forças espirituaes se applicam na dominação do mundo material. Conquista-se de novo a terra. Uma força indomável leva as gentes da beira do mar aos sertões do interior. Nas flo­ restas do Matto-Grosso, nas chapadas de Goyaz, nos rios do Amazonas, repete-se o cyclo dos descobrimentos.
E' a volta dos bandeirantes. Uma alegria physica transforma a antiga melancolia ori­ ginada do deslumbramento e do pérfido que-branto dos trópicos. O enthusiasmo harmonisa o homem com a natureza. Uma mesma energia anima a força consciente e a inconsciente. Os homens são emfim os filhos da terra, desta terra ideal, que se lhe mostra, na sua predesti­ nação, immortal. Os constructores da pátria a cream á imagem da natureza. Deste senti­ mento de unidade indissolúvel do homem e da terra surge a reacção contra os povos pertur­ badores, que tentam separar as almas e alterar a combinação secular da espiritualidade bra-
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sileira. Iibertando-se dessa impureza, o Brasil se affirma como o continuador do gênio por­ tuguez no mundo americano, e dá á alma antiga mais enthusiasmo, mais vigor, á America mais claridade na sua intelligencia com o Universo.
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Talvez na historia da humanidade momento algum fosse mais critico do que esse do invero-simil mez de Novembro de 1918. O império allemão, que era a simulação da ordem e o baluarte da dictadura mifitar, se desmoronara; a velha monarchia austríaca, remontando ás origens divinas o prestigio do seu reino na terra, se dissolvera; a decomposição da absurda Rússia asiática se consummára ; a democracia, na lucta definitiva entre a America e a Europa Central, vencera o imperiaüsmo; o gênio latino renascera vivaz e altaneiro; o império britannico, poderoso e innumeravel, se affirmára nos mares sem fim e nos continentes disparatados. Jamais a historia assignalára acontecimentos tão consi­ deráveis, enfeixados em tão resumido espaço e reaüsados em tão breve tempo. Assim fechou-se o cyclo de toda a éra moderna, que se ini­ ciara com a apparição perturbadora da America em face do velho mundo,
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No primeiro instante esses descalabros e essas auroras trouxeram aos homens do occi-dente libertado uma dilatação de esperança. Pouco a pouco a complexidade dos problemas políticos e sociaes começou a entravar a anhelada paz do mundo, e o desequilíbrio em que ficou a civilisação, não tardou a mostrar o immenso vácuo que o absolutismo, desapparecendo, abrira deante dos nossos olhos attonitos. Ha longos séculos o mundo se havia habituado a essa formula política, que pela sua resistência excitava o ardor e aguçava a sensibiüdade dos temperamentos liberaes. Logo que a opposição desappareceu e nos vimos excessivamente victoriosos, tudo nos pareceu obscuro e extre­ mamente inquietador. Que significa a revo­ lução da Rússia ? Para onde vae a Allemanha ? Como organisar as nacionalidades que se des­ membram da Áustria ? Que destino terá o intromettido império turco ? E deante dessas interrogações, que se multiplicarão infinita­ mente, o espirito humano fica perplexo e uma vaga de pessimismo assoberba o mundo.
A these dos historiadores pessimistas é sim­ ples demais para ser a synthese de tão grave e complexa transformação da sociedade. Assignala o afundamento do velho mundo sem a creação de um mundo novo. E' a catastrophe
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total da civiüsação. Para chegar a essa conclusão apressada, a observação pessimista se prende principalmente á crise da Rússia, que será õ symptoma revelador da catastrophe ou da evo­ lução da civiüsação neste chãos em que nos debatemos para a morte ou para a vida. Interro­ ga-se : não é exacto que a revolução russa, depois de pretender realisar rapidamehte o programma da revolução franceza de 48 e de aspirar ao mais generoso humanitarismo polí­ tico, veiu acabar numa tremenda dictadura mifitar, sob a apparencia de uma improvisada appücação de communismo impraticável ? E quanto á revolução na Allemanha, tudo ahi se confunde extranhamente, militarismo e socia-üsmo, aristocracia e democracia, e tal é a força de mystificação da Allemanha nestes últimos cincoenta annos da sua historia que o mundo ainda não se resignou a acreditar na profundeza e na vastidão da sua revolução. O tumulto ganha as nações vencedoras e se torna universal. Uma fúria de guerra ainda agita os espíritos, as coleras nacionaes se misturam e se oppõem aos ódios de classes;por longos annos a paz definitiva parece impossível. O espectaculo das nações é o de uma immensa catastrophe da civilisação, crise de que assistimos apenas ao começo. E a imaginação evoca a agonia do
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mundo nos séculos que seguiram á queda do império romano...
O parallelo histórico, que procura uma se­ melhança entre a transformação do mundo moderno e a dissolução do império romano, não tem fundamento na realidade dos factos. O império romano foi submerso na invasão dos bárbaros, ao passo que a civilisação Occi­ dental nos nossos dias, herdeira e reconstru-ctora da civüisação greco-latina, repelliu a ameaça dos novos bárbaros, herdeiros dos demo-üdores da civiüsação latina. Os novos bárbaros tentaram impor ao mundo moderno a formula da monarchia militar-feudal, que os bárbaros da antigüidade haviam implantado na Europa. A democracia dos nossos séculos veiu desforrar victoriosamente a formula das velhas demo­ cracias gregas. Se a Allemanha tivesse sabido vendecora deste formidável conflicto, então se repetiria em grande parte a catastrophe por que passou o mundo antigo.
Não ha duvida, porém, de que essa differença essencial entre as duas crises não elimina as apparencias que apresentam as duas epochas de maior revolução sentimental da humani­ dade, que foram, na antigüidade, os séculos da decadência de Roma, e na historia contempo­ rânea o período que se conta da Revolução
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Franceza até hoje. Antes da investida formidável dos bárbaros contra Roma, « a immensa paz do império romano » não era somente a augusta ordenação poütica: era também uma perfeita harmonia moral. Por esse tempo o espirito do christianismo soprou em todos os ângulos da terra, e a solida argamassa da construcção romana começou a se diluir, e uma nova sensi­ biüdade creou um mundo novo. Assim nos tempos modernos a monarchia do direito divino presidia majestaticamente á Europa, quando o espirito da egualdade e da überdade veiu demolir a realeza feudal. A revolução não se fimitou á ordem política, alastrou-se por toda a esphera da intelligencia humana, pois coin­ cidiu com o facto mais considerável da evolução nestes últimos séculos, a constituição da sciencia biológica, que dissolveu a fé nas origens sobre-naturaes da vida e destruiu a superstição scien-tifica da hierarchia na natureza fundada no principio religioso. O conflicto entre o paga­ nismo e o christianismo no século iv e a lucta entre a sciencia e a religião no século xix são casos curiosos de paralleüsmo na historia.
Nessas duas epochas a grande preoccupação espiritual é a indagação das origens da vida e a expücação dos mysterios da natureza, Quando
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as religiões desfallecem, o espirito libertado se vivifica na ilümitada descoberta do mundo. O christianismo, substituindo o paganismo, de­ terminou a crise religiosa, que proporcionou a emancipação intellectual dos espíritos da antigüidade. Neste magnífico instante, que é o da passagem de um estado religioso a outro, assignala-se a importância do século iv, e o seu estudo é o mais fecundo da historia antiga, e seguramente um dos maiores gosos intelle-ctuaes dos nossos tempos, ávidos de confrontos e parallelos. Uma esplendida germinação espi­ ritual o identifica com o século xix. Em ambas as epochas o mysticismo mais transcendental se emparelha com o realismo mais restrictamente scientifico. A explicação mathematica do cosmos, sobre a qual repousava a philosophia antiga, se amplia pela contribuição das sciencias naturaes. No século iv apparecem os laboratórios, onde o empirismo começa a ser subordinado ao methodo da investigação positiva. O surto intellectual é tão vivo e intenso que, por uma conclusão retrospectiva, se pôde aflirmar que se a evolução mental da humanidade tivesse se guido a sua trajectoria normalmente, o que só foi afinal realisado no século xix, o teria sido no século iv, se a civilisação não houvesse sido
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perturbada nos seus fundamentos pela invasão da massa barbara ignara, seguramente o maior cataclysmo da historia.
Ao mesmo tempo que a evolução scientifica se accentuava, as divagações mysticas eram mais ardentes. Foi o tempo áureo do occultismo oriental, o momento das heresias excessivas e de uma geral sobre-excitação religiosa. Não é singular que também no século xix, parallela-mente ao desenvolvimento das sciencias natu-raes e philosophicas, positivas ou pantheistas, mil seitas religiosas borbulhassem e uma anciã de mysterio suscitasse o apparecimento dessa myriade de adivinhos, de alchimistas, de astro-logos, de confabuladores de espíritos e de uma philosophia de negação scientifica ?
Um idêntico sentimento inspira e move a sociedade humana nessas duas crises do pensa­ mento. O que fez o christianismo no século iv, fez a Revolução Franceza no século xix, re­ volta contra a ordem clássica, reacção contra o passado', affirmação de uma nova sociabili-dade. Os espíritos ainda identificados com o passado emigraram, não das suas pátrias, mas do tempo presente, e uma ütteratura de reaccio-narios luctou por suffocar a nascente üttera­ tura de revoltados. A exaltação moral foi exces­ siva em ambos esses momentos da historia,
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e um desgosto da sociedade e uma anciã de volta á natureza se apodera dos homens, ins­ pira o ascetismo reügioso dos primitivos chris-tãos, e as thebaidas têm a sua imagem moderna nos phalansterios, nas colônias anarchistas dos nossos tempos. O desequilíbrio social foi com­ pleto : instituições, sentimentos, idéas se cho­ caram n'uma grande desharmonia. A reacção do passado não podia deixar de se manifestar nessas crises, que foram a gestação de um mundo novo. No século iv a reacção teve como seu máximo representante esse enigmático, sin­ gular e maravilhoso personagem, que foi o imperador Juliano. No século xix a reacção se manifestou a principio na Santa Alüança, para mais tarde se personificar no extrava­ gante imperador Guilherme.
Juliano é um dos typos mais seductores da historia. Tudo nelle interessa, mesmo a sua monstruosa hypocrisia. Pelo seu gênio de so-phista, pelo seu temperamente reügioso, pela sua capacidade militar, esse grande e falso espirito morre aos 34 annos a morte admirável de um pbilosopho desabusado. A sua reacção contra o christianismo mostra a incomprehensão do seu espirito retrogrado. Restabelecer o antigo império romano, e com este o paganismo, era uma tentativa romântica, destinada ao
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mais completo mallogro. Pela interpretação retrospectiva do seu caracter reconhece-se na sua mysteriosa personalidade que elle não pertencia mais ao paganismo, de que se fazia o fanático restaurador. O Oriente havia defor­ mado o seu espirito, o christinaismo victorioso havia-lhe soprado na alma as suas virtudes ascéticas. Assim, o imperador pagão restaura o culto dos deuses e extranhamente funda seve­ ros mosteiros philosophicos em honra de Aphro-dite. E a sua moral é a moral eguafitaria dos christãos, que fizeram da caridade a clava com que modificaram a sensibiüdade antiga e revolucionaram o mundo. Em pleno triumpho ascencional do christianismo, a volta ao passado, segundo a formula de Jufiano, era um contra-senso, e por isso eivado como elle estava, e como todos, dos novos sentimentos, o paga­ nismo de Juüano era o christianismo poly-theista, como r#ais tarde o cathoücismo foi o paganismo monotheista.
O imperador Guilherme não é uma figura do mesmo plano intellectual de Juüano. A sua tentativa reaccionaria, porém, accentúa o paral-lelismo das suas epochas históricas. Como Juliano, elle também foi necessariamente incoherente. Ha nos seus actos uma mistura do espirito antigo e do espirito moderno; representava a
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aspiração industrial e commercial da Hanse e encarnava o principio divino monarchico-feudal. Essa reacção não podia vingar contra a corrente profunda dos sentimentos da nossa epocha. Pôde haver perturbações mais ou menos graves, verdadeiros cataclysmos sociaes; mas, ao lado da destruição, ha sempre a reconstruc-ção. O paganismo desappareceu para dar logar ao christianismo, fundando a moral, que faci­ litou o progresso scientifico e a paz espiritual. Hoje o absolutismo feudal é eliminado pelo surto da democracia. Eis a funcção creadora da grande guerra.
Por mais critica que ella seja, não se compara a nossa epocha com o longo e tenebroso período que succedeu ao império romano. Este foi avassallado pelos bárbaros; o mundo moderno repelüu a barbaria, salvando o patrimônio da civilisação. Além dessa inversão das situações, que é capital, é preciso considerar que o de­ sastre da humanidade no século iv foi ter sido o progresso espiritual interrompido pela domi­ nação de bárbaros totalmente incultos. Foi a ignorância dos vencedores do império romano que espalhou a confusão e fez a civiüsação greco-latina desnaturar-se na paradoxal edade média. Ora, esse perigo nos será poupado. A cultura se generalisou por tal fôrma que os
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bárbaros, quê ameaçam dominar o mundo, são instruídos, e se o governo das nações passasse á dictadura proletária, como já suc-cedeu na Rússia, o progresso scientifico e indus­ trial não seria interrompido. Uma epocha de obscurantismo será impossível mesmo nas con­ vulsões políticas mais extensas e profundas. Podem certas elites ser substituídas por classes menos cultas, pôde haver uma grave deslocação de valores econômicos, uma radical transfor­ mação da propriedade e como conseqüência uma revolução política; mas a sciencia, a arte, a industria, emfim o progresso total do espirito humano não será destruído, e isso é o essencial. Todo o patrimônio da intelligencia, tão laboriosamente constituído e accumulado des­ de a edade média, será respeitado e perma­ necerá intacto para a dominação da matéria universal, que nos cerca e ainda nos apavora. Pela sciencia, pela arte, pela philosophia, cujo vôo não será retido, seremos um com o Universo.
Não havendo uma catastrophe que destrua toda a civilisação, haverá fatalmente uma evo­ lução nos acontecimentos que nos envolvem. Por mais tumultuosos que sejam estes tempos, por mais incerta que seja a paz, sente-se que um espirito novo, nascido nesta crise da civilisação,
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vae inspirar a vida humana. O pensamento da Revolução Franceza foi afinal vencedor e se tornou universal. Os povos são livres, senhores dos seus destinos. O historiador deve assignalar no cataclysmo que transmudou a ordem pofi-tica da Europa, ao mesmo tempo a queda das monarchias de direito divino e a ascendência do principio eguaütario da democracia, que as substituiu. E assim se cumpre a lei da evolução social, que exige, ao lado da destruição, a recons-trucção.
A evolução não será perturbada nos seus desenvolvimentos essenciaes pelos perigos do mysticismo communista, que procura transfor­ mar as bases econômicas da sociedade. As questões econômicas são de ordem secundaria, e, se influem nos movimentos políticos, são prin­ cipalmente os sentimentos e as idéas geraes que lhes imprimem o rythmo. Resolvido o conflito entre o abolutismo monarchico e o principio do direito dos povos, resta o formidá­ vel embate entre o nacionalismo e o communismo internacional. A solução desse enigma máximo da nossa civiüsação parece todavia indicada nas origens da crise que determinou a guerra, e no espirito que conduziu esta até ao seu des­ fecho. Combateu-se pela überdade dos povos, mas combateu-se principalmente pelo senti-
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mento da pátria, que se affirmou victoriosa-mente. A energia nacional dos povos é tão imperiosa que, insaciável e insatisfeita, ameaça a paz do mundo com a installação da guerra permanante. Não parece que o internaciona-lismo operário a possa subjugar. Será dentro do quadro nacional que se fará a transformação econômica do mundo. Os socialistas, os commu-nistas da Allemanha se bateram e se baterão contra os seus camaradas francezes ou inglezes. O communista russo não fraternisou por muito tempo com os seus correligionários de outras pátrias. Se a sciencia e a universalidade da cul­ tura impedem a catastrophe da civilisação, as nacionalidades, pela nitidez da sua expressão, pela sua affirmação positiva e luminosa, evi­ tarão nesta crise da historia a confusão do chãos.
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PESSIMISMO BRASILEIRO
Um povo que não exprime uma cultura é como se não existisse. Que somos nós ? Todo o nosso trabalho social tem sido até agora a indistincta obra material, commum a todos os povos nivelados pela uniformidade da imi­ tação occidental, obra de plagio, sem caracter, que não sáe do nosso sangue e do nosso pen­ samento. Não somos uma nação de senhores, de homens de guerra ou de estadistas, e muito menos de philosophos, de artistas ou santos. O nosso momento é ainda nocturno.
A historia da civiüsação no Brasil se poderia escrever em quatro unhas, tão simples, tão insignificante tem sido a sua contribuição na luminosa historia do espirito humano. Pode­ ríamos reduzir todo o esforço da cultura no immenso território em que acampamos, a três factos essenciaes: o « descobrimento » que des­ pertou a cubiça européa e foi accidente do qual resultou a fusão das raças que povoaram
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primitivamente o paiz; a fundação da «naciona-lidade » sob o trabalho escravo, e a transforma­ ção dessa base econômica para dar logar ao estabelecimento do a trabalho livre », desenvol­ vido pela immigração dos povos europeus, de que resultará a modificação dos fundamentos da nacionalidade constituída. Três únicos grandes successos históricos que interessam á humani­ dade: descobrimento, independência nacional, abolição da escravatura. Como para toda a America, simples destino econômico, terras de produção material, de trabalho e de riqueza. Mas ainda assim, nessas mesmas unhas geométri­ cas dessa historia de um paiz, se pôde perce­ ber o movimento singular da civiüsação, que se apresenta como o resumo, a recapitulação vaga, esbatida, de toda a historia universal. Seria a verificação daquella imaginaria lei da historia, já engenhosamente ideada e formulada no pensamento brasileiro, lei pela qual se expü-caria a evolução poütica dos povos, a evolução dos organismos sociaes â semelhança da evo­ lução dos organismos naturaes e dos corpos astronômicos. Por um processo de ontogenese a evolução social repete, recapitula, a phylo-genese universal. De facto, apparentemente, a civiüsação no Brasil repete de um modo sin­ gular em rápidos movimentos as grandes phases
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poüticas da civiüsação humana. Como esta foi theocratica no seu começo, assim fora a primeira organisação social brasileira, apezar do gráo superior de civiüsação da metrópole naquelle momento. Nesse primeiro período colonial os homens representativos da historia do Brasil são os bispos, os padres jesuítas. Quando, em seguida, a phase social repetiu a epocha rnifitar das civilisações históricas, os homens representativos, os chefes da organisação poütica brasileira foram os donatários de capi­ tanias, os capitães-móres, os vice-reis soldados. Afinal, no império e na repubüca, ella se tornou burgueza e democrática, como toda a humani­ dade depois da formação anglo-sàxonia dos Estados-Unidos, e da Revolução franceza.
Esse trabalho de recapitulação não accres-centou uma formula nova ao patrimônio uni­ versal. Foi uma evolução apagada, longínqua, e o rythmo da evolução é tanto mais lento quanto é accelerado o movimento dos outros povos. Parece que o massiço geológico fica entor­ pecido nas brumas do mysterio e as almas se paralysam no esplendor da luz. No era-tanto, desde o inicio, os trabalhos dos desco­ bridores obedeceram áquella vontade de crear, aquelle instincto de conquistar, de se alastrar e organisar, que é a lei de constância de
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Portugal. Os territórios da America foram a perpetua miragem européa; mas, emquanto Inglezes, Hespanhóes e Hollandezes ahi fizeram incursões de traficantes, Portugal, vencendo a resistência de uma terra que não se entregava facilmente, e num momento de industria ainda mal apparelhada, realisou uma consciente obra de estado. O paiz foi descoberto, varado, estudado, conquistado por militares e funccio-narios, uma nação política foi fundada. Os ves­ tígios dessa organisação são os alicerces do estado brasileiro. Ainda hoje, quando se debatem os direitos dos povos que succederani nos terri­ tórios americanos ás nações européas, os títulos do domínio portuguez são títulos de ordem publica, actos jurídicos que testemunham o funccionamento de uma organisação política. A esses títulos da conquista e do domínio dos capitães-móres, donatários e vice-reis, os outros paizes oppõem incertos roteiros de negociantes, vagos traços da passagem de forasteiros nômadas, vestígios de precários esta­ belecimentos commerciaes independentes entre si e sem ligação com o governo das metrópoles.
Naturalmente, dentro de tal organisação poütica militar se devia formar um estado aristocrático. O Brasil nas suas origens é uma nação de senhores e escravos. No instante da
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independência, uma elite de homens brancos governa o paiz, e foram esses aristocratas os creadores da nacionalidade. Jamais o homem brasileiro foi tão senhor e tão grande como na aurora da sua pátria. Um espirito de moci-dade o conduzia.
Para o valor-homem o grande momento da historia foi a Renascença. A personalidade humana nesse ardente e fecundo instante expandiu-se vivaz e üvre, não conheceu limites á curiosidade da intelligencia, não refreiou as paixões, e tudo foi um deslumbramento de for­ ças intellectuaes e sensuaes, que refez o mundo e renovou a sensibiüdade. A Renascença do Brasil foi a epocha da Independência. O homem único, o homem universal, appareceu como fugitivo clarão na vida do Brasil. Os « homens » não foram somente os conductores do movi­ mento, Pedro Io, José Bonifácio ou José Cle­ mente. Foi uma vasta floração da personali­ dade humana, revelada na lucta política da independência nacional, que tornou ousado o caracter. O exemplo da revolta do Príncipe, que se fez Imperador, deu o contagio da independência a todos. Foi uma insurreição geral dos espí­ ritos, que insuflou o sentimento nacionalista e repelliu a vassallagem de Portugal, purifi-cando-se de todo o cosmopolitismo. Nesse mara-
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vilhoso instante da nossa historia havia o orgulho de se sentir o homem novo de uma pátria nova. O nacionalismo no alegre nascer da pátria foi a aftirmação da vontade brasileira. Nesse tempo, a incandescencia nacionalista não temia os compromissos despertados pela necessi­ dade de povoar o solo, pelo destino econômico do paiz, que exige a collaboração extrangeira. O homem brasileiro naqueüe alvorecer nativo tinha a fulgurante illusão de se bastar a si mesmo. Depois começou a diminuir. E a historia do Brasil deixa de ser a elaboração da elite para ser traçada pelo movimento das massas.
O segundo império foi a reacção do espirito democrático, que acabou vencendo a aristocracia para instituir a republica. No Brasil o espirito democrático, além de ser o reflexo de toda a evolução social do Occidente, também foi o resultado da fusão das raças. O sentimento da egualdade, que se encontra na raiz da democra­ cia, já se vinha aflirmando no Brasil desde a epocha colonial pelo influxo do christianismo e pelo prestigio da Revolução franceza. O christi-naismo trazido pelos missionários, sobretudo jesuítas, tratou de redimir o indigena. A sua grande obra foi a libertação dos índios do se­ nhorio europeu e a incorporação delles á nação. O movimento creado para aüberdade dos indígenas,
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o sentimento de independência indomável, que se lhes attribuia, crystalüsaram-se numa idéa coüectiva, a da nobreza do selvagem, dono e antigo possuidor da velha terra brasileira, e nessa idelisação se corporisou a primeira revolta dos mestiços contra os brancos domina­ dores do paiz. D'ahi uma ütteratura indiana, exaltada, que fôrma a base nacional do roman­ tismo brasileiro. A Revolução franceza veiu accentuar ainda mais esse sentimento da egual-dade entre os homens. O cruzamento das raças foi afinal o factor decisivo da nossa democracia, em que sem preconceitos, e numa larga tolerância, encontra a sua natural expressão política um povo de origens oppostas.
A Repubüca no Brasil foi a conseqüência desse sentimento de egualdade, e só se tornou possível quando o exercito deixou de ser go­ vernado pela eüte aristocrática e foi inteira­ mente democratisado pela fusão das raças, que determinou a revolta militar. A Republica foi também a reacção provinciana contra a unidade nacional reaüsada pelo Império, e o pacto em que se firmou essa desforra do espi­ rito particularista e egualitario das províncias é a Constitução federativa.
O pensamento, funcção cerebral, é a expressão do indivíduo e da raça. No Brasil o pensamento
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é mestiço. O governo, a elite que realisa esse pensamento collectivo, deve ser fatalmente da mesma expressão racial ou não será representa­ tivo da nacionalidade. Os antigos brancos ficaram extranhos ao paiz, o equiübrio entre elles e a nação, que os seus antepassados fun­ daram, rompeu-se. Hoje têm alma de emigrados na própria pátria. Mas o equilíbrio formado pelo cruzamento das raças, de que resultou o typo predominante do Brasil actual, também vae se romper pela vaga sempre crescente da immigração. O conflicto será grave. A sub-raça, que é a sentinella da nação, é ainda forte. O immigrante tem que esperar para se medir com o actual dominador do paiz. A lucta virá fatalmente, se o homem branco não fôr absorvido pela raça mestiça e o cruzamento das espécies não se mantiver como a solução inconsciente e salutar do equilíbrio da civilisação no Brasil.
Nesse feixe de forças democráticas, que é a nação brasileira, não ha mais logar para uma elite aristocrática que, pelas suas aspirações, tradições e crença, mantenha o patriciado poütico, cuja finalidade seria a monarchia constitucional. Era fatal que de tão grande tu­ multo de raças, de aspirações, de culturas dis­ paratadas, de desharmonica progressão interna, brotasse o governo forte de um dictador.
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O governo presidencial é a imagem do governo despotico e da tyrannia clássica. O governo parlamentar é o governo de classes, e corresponde ao arbitramento, no direito publico, no direito privado e no direito internacional. Os Parla­ mentos, compostos de representantes com o .po­ der de resolver, são os árbitros, legisladores e juizes.
E' preciso examinar a formação histórica dos dois governos para se comprehender bem o que elles são. O Parlamento foi instituído na Inglaterra, onde teve origem, quando os barões e os communs venceram o rei e impuzeram a assembléa dos seus representantes para governar em collaboração com o monarcha. O governo dos Presidentes, creado na democracia americana, foi o prolongamento do governo de mandato e de concentração estabelecido no regimen colonial. Foi necessária a continuação em vez da substi­ tuição.
Não foi levianamente que o Brasil adoptou como governo da repubüca o regimen presi­ dencial. O regimen parlamentar é que foi absurdo e illogico. Logo que o Brasil se consti­ tuiu em nação, era necessário e fatal que o seu governo fosse despotico e militar. O Brasil que, já vimos, havia sido uma theocracia miütar, para ser depois francamente, com os capitães-
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mores e os vice-reis, uma organisação militar, devia ter no seu Imperador o chefe militar absoluto. Mas, por uma inversão histórica, esse poder absoluto, combatido pelos miütares e pela reacção das províncias, levava á federa­ ção e não á unidade. O poder absoluto do Impe­ rador teve de abdicar, e succedeu-lhe o regimen parlamentar. Ainda assim, esse governo imposto precipitadamente foi mantido pela aristocracia, composta de senhores, de famílias e classes.
A Repubüca foi em primeiro logar o triumpho completo da democracia. A aristocracia estava piorta no Brasil com a abolição e. o desenvolvi­ mento do cruzamento das raças. Em segundo logar, foi um retrocesso. Foi a volta ao período da independência, e caracterisou-se pela reacção das províncias sob um governo militar. Houve um cataclysmo, um nivela­ mento absoluto, as classes foram dominadas por uma só classe, a militar. Nessas condições, como manter-se o regimen parlamentar, go­ verno de árbitros, governo de classes, quando não havia mais necessidade de equiübrio, de arbitramento, de representação de outras clas­ ses ?
Para haver regimen parlamentar seria preciso que a preponderância exclusiva da classe miütar diminuísse e desse logar ao apparecimento de
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outras classes organisadas dentro da democracia, classes fundadas organicamente ou sobre a riqueza ou sobre o trabalho, em vez dessa vaga agglbmeração de gentes acampadas passageira­ mente no território do paiz, vivendo na mais profunda ignorância, que não se pôde representar, nem exige o equilíbrio e o arbitramento polí­ tico. O governo presidencial é o expoente dessa democracia. Não porque seja o governo do bom tyranno, mas porque, com todos os seus defeitos, é o governo da força, da concen­ tração do poder, o governo absoluto que se apoia no regimen miütar e realisa a estabilidade nacional.
OPTIMISMO BRASILEIRO
A magia que rompe da terra brasileira, torna-a a eterna «desejada das gentes». Póde-se dizer que o encanto brasileiro está na aureola de opulencia e de esperança, na doçura nativa, no sentimento vago e indefinido que emana da mysteriosa grandeza do Brasil. A seducção começa no instante da descoberta, no sé­ culo xvi, quando a energia da Renascença impelle os homens a desvendarem o mundo
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depois da grande epopéa libertadora do espirito humano que, vencedor do terror inicial, subjuga a natureza na armadura da sciencia e a apazi­ gua nos limites de uma arte serena e discipli­ nada. Desde o victorioso domínio portuguez, o destino do Brasil se fixou parasempree conti­ nuou a espiritualidade no mundo americano.
Pela sua gigantesca extensão, pela sua popu­ lação dominante, pela cohesão nacional, pela fidelidade á cultura clássica, que lhe foi sempre um traço característico, o Brasil pôde realisar soberanamente o seu maravilhoso destino hu­ mano. Portador do amável esforço daquella discipüna que venceu a natureza, conservador dessas tradições fecundas, o Brasil as torna mais activas, mais enérgicas, imprimindo-lhes o rythmo accelerado da America.
Como definir com justeza a elaboração ame­ ricana nas camadas desse paiz formado pelos latinos ? Que é o espirito americano ? Sente-se que ha no fermento americano uma modifi­ cação do conceito da civilisação. Será unicamente o americanismo uma reacção contra o principio quaütativo que é a matéria prima geradora do espirito latino ? Em todo o caso, teve por muito tempo a significação de uma ruptura da tradição européa, e a America foi comprehen-dida singularmente como o continente do novo,
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uma civilisação de base material opposta á civilisação espiritual da Europa, uma colossal forja de trabalho e de transformação dos velhos valores da cultura.
Mais tarde, vem a revelação do idealismo americano, e as suas syntheses sociaes, democra­ cia, egualdade internacional, poder do dinheiro, excesso da força, rapidez da acção, foram inter­ pretadas como signaes do mysticismo originário, expressões de uma dynamisação moral deter­ minada pela formidável atmosphera physica, creadora de uma civiüsação de energia e de jus­ tiça.
O mais interessante problema da civilisação brasileira seria saber até que ponto as fôrmas européas dos nossos espíritos resistem ao mecha-nismo americano, e como a vibração deste se adapta ás tradições da nossa cultura. Dessa fusão dos doisespíritos, latino e americano, resultaram algumas soluções de que o Brasil tem o segredo. Na ordem moral, em parallelo com a indepen­ dência de espirito, a ausência de preconcei­ tos, a persistência de humanismo e a claridade do idealismo clássico. Na ordem social, o prin­ cipio da egualdade, como base do direito pu­ blico, e a subordinação do poder administra­ tivo á justiça. Na ordem material, o sentimento do progresso indefinido, justificado pela victoria
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do Homem contra as resistências formidáveis do mundo physico, a conciliação da producção intensa, indispensável ás novas sociedades, com a qualidade que é o signal da perfeição das civiüsações tradicionaes, a incorporação da natureza á arte na reaüsação da Cidade do sonho, da luz, da côr e da phantasia, sublime mo­ rada do Êxtase.
A suprema belleza do paiz deslumbra o homem nascido no seu mysterio, enfeitiçado pelo seu quebranto. Não estará nesse amor physico do homem e da terra o segredo do patrio­ tismo brasileiro, que tem o sabor capitoso de uma união voluptuosa ?
PRAGMATISMO BRASILEIRO
Depois de ter sido uma nação paradoxal­ mente clássica, movida pelo humanismo e pela imaginação ütteraria, eis o Brasil lançado no extremo da opposição á cultura intellectual. Ha um pragmatismo que procura supplantar todo o intellectuaüsmo. Ha uma philosophia de acção pratica, que dirige a energia brasileira para os trabalhos physicos da posse da terra e para a accumulação da riqueza. Nesse sentido
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o Brasil se americanisa e se desintegra do cosmos latino. Não ha maior perigo para a personali­ dade brasileira do que essa trajectoria animal da vida. O nosso encanto estaria em ser uma nação americana com espiritualidade latina. O excesso de cultura seria um grande bem para um paiz que só pela sciencia pôde valorisar a sua natureza. Este momento do Brasil reclama o máximo de instnicção e de sciencia, que liberte os homens da barbaria americana e da servidão européa. Os possuidores1 de tão profundas, mas adormecidas riquezas, devem disputar pela intelügencia a verdadeira propriedade e o livre goso dessas infinitas forças de acção mate­ rial. O neo-pragmatismo brasileiro seria o propulsor do nacionaüsmo, se a sua base fosse a cultura scientifica. O grande fim da vida é conhecer. O pragmatismo pôde no Brasil fazer do conhecimento a alavanca do domínio e da posse da natureza.
O QUADRO NACIONAL
Reforcemos o quadro da nação. Não permitía­ mos que dentro delle reine a alma de outros povos e a nossa própria alma seja expulsa e, exi-
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lada da terra que lhe creou a expressão ainda incerta, mas ardente e luminosa. Emquanto não tivermos, sólidas, as fronteiras moraes da nação, emquanto o quadro que encerra a pátria não fôr rijo e inquebrantavel, fechemos a porta á invasão, defendamos a frágil muralha, solidifi­ quemos a argamassa, e seja tudo impenetrável ao sentimento extrangeiro. A peior invasão é a que se infiltra no sentimento, a que trans­ forma a alma, transmuda a poesia secreta da sensibilidade, dá outro rythmo ao sonho, trans­ figura o pensamento.
Ha um destino geographico na terra brasi­ leira, ha o impulso do progresso material para o qual o extrangeiro é útil. Mas a alma de uma nação não está num pé de café. Cuidado, eco­ nomistas, industriaes, negociantes, gentes tra­ ficantes, pelo vosso espirito de compromisso não sois os zeladores da nossa personalidade. E se nesse amálgama de sangue e corpos dispara­ tados, nessa confusão de desejos e reaüsações, não formos os mais fortes, a terra, onde foi o nosso Brasil, será mais rica, mais prospera, espantará o mundo com os seus prodígios indus­ triaes, porém já não seremos nós... Tudo se romperá no curso do tempo. O futuro não enten­ derá mais o passado...
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O NOSSO ESTYLO
_Q_escriptor da fingira portugueza julga que todo o « estylo » está_na palavra. Essencial-mentejverbal, elle_dá ás palavras jima ejxtensão exaggerada e um^ valor excessivo. Assim, só pôde exprimir "o seu pensamento vasando-o todo nas palavras, que formam phrases inter­ mináveis, sonoras e muitas vezes inúteis e des-connexas. Ignora a suprema arte do silencio, que tem o valor da palavra, como na musica a pausa vale a nota.
Esse escriptor não sabe que, além da arte expressa, exterior, aquella que se vê ou que se ouve, ha a arte interior, que é apenas indicada pela palavra, pelo som, pela linha e pela côr. O traço na pintura deve evocar também o que não foi pintado e é a emoção secreta do artista, aquella que elle reserva para o seu sonho e o seu êxtase intimo... O esculptor indica no movimento da fôrma o que se vae prolongar, o que nós solicitamos, que elle magnificou e não quiz dizer... Na musica é ainda a tona-üdade mysteriosa que apenas se revela no som enunciado, que nos faz imaginar e fundir, pelo vago indefinido da sua sensação, no Uni-
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verso. Ha sempre em arte esse segredo do artista, que é como a essência da sua obra de arte. Ha alguma cousa que não foi revelada, que está antes e nos leva para o que está depois. O que a arte exprime claramente, é como uma ponte entre dous mysterios, o que vive profunda­ mente na alma do artista e o que vem depois da obra de arte e não acaba nunca.
Para o escriptor brasileiro não existe esse mysterio, e se elle o sente inconscientemente, o seu primeiro trabalho é eliminal-o e no fluxo das palavras expandir-se totalmente.
Vejamos nessa manifestação do estylo bra­ sileiro uma separação essencial entre o escriptor e a matéria universal. O estylo deve ser uma grande harmonia do mundo sensível. O Bra­ sileiro está separado desse mundo e procura illudir a separação pelas palavras, que muitas vezes não são a alma das cousas e soam dispara­ tadas no ambiente universal. Falta ao escri­ ptor brasileiro aquella intimidade com o Todo infinito, que se exprime pela arte. Elle não é essencialmente artista. O escriptor artista deve sentir toda a natureza como arte. Não ha as­ sumpto que não seja um aspecto do mundo sensível, e a sensibiüdade do escriptor deve ser completa. Elle sentirá-o mundo como um mara­ vilhoso espectaculo de fôrmas, de cores e de
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sons, e cada palavra, cada phrase exprimirá essa atmosphera transcendental, que será adi­ vinhada, suggerida, e nos transmittirá a emoção suprema. Só pela intensa e profunda vibração de todas as moléculas do Universo em nós é que se faz a transformação da nossa própria natureza em uma expressão de arte. O escriptor não possuirá jamais o seu assumpto totalmente, se lhe faltarem esses dons de artista. Quando o pintor traça uma linha e exprime a côr, sente-se que o mundo se dilata, não só em fôrmas e cores, mas também em sons e sonhos. Assim, o artista da palavra na phrase, na pausa ou no silencio deve fazer vibrar o Universo inteiro como côr, forma, som e pensamento. Deve saber que no universo tudo se liga, que nada é isolado e independente. A palavra deve reflectir uma unidade de sensações e o pensamento deve ser integral. Todo o assumpto, por mais indifferente e singular que pareça, interessa ao conjunto das emoções humanas, e o escriptor que não tem essa emoção inconsciente ou essa comprehensão esthetica, não é completo e parecerá sempre limitado e inferior.
Não é a üngua artista, ou Vécriture artiste dos francezes, que se insinua nessa funcção artista do escriptor. Este pôde usar da escripta artista, e a sua phrase, o seu estylo ser defi-
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ciente e não exprimir a emoção total do Uni­ verso. O que se procura é pela concepção esthe­ tica suscitar o verdadeiro escriptor, aquelle que domine, não somente o seu assumpto, mas tam­ bém a matéria universal, e exprima a sua arte intima, fazendo pela divina mistura da palavra e do silencio perceber e continuar o mysterio da vida infinita.
O TYPO BRASILEIRO
Formado n'um meio physico ardente, abra-sado de sol, o homem brasileiro é magro, secco, musculoso, porém sempre prompto a uma incessante lucta contra uma natureza pujante, que o quer dominar, avassallar. E' o velho typo do caçador, do homem primitivo, que erra pela floresta, que se sente perseguido pelas feras e vive aventurosamente, alimentando-se sobriamente de fructos, raízes e caça. Os seus antepas­ sados europeus foram-se adaptando ao meio physico e pouco a pouco perdendo no curso das gerações a corpulencia planturosa ou a placidez resignada dos bois, para se tornarem, nos seus descendentes mestiços, o homem feito de aço, o animal de canella fina, que deve varar
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florestas, atravessar rios a nado, escalar mon­ tanhas e caminhar por longas, infinitas e áridas chapadas desertas. Esse typo de olhos fais-cantes e vibrações acceleradas persiste no ho­ mem brasileiro moderno, civilisado, sempre exaltado, ardente, volúvel e sensual, e cujo esforço é um arranco, um ímpeto, que logo se esvaece e é substituído pela apathia, pelo desinteresse, pela resignação fatalista dos ho­ mens da natureza.
* : 1.
O PARADOXO BRASILEIRO
O Brasil geographicamente tem um grande destino econômico no mundo. As matérias primas do Brasil não são ainda de ordem intel­ lectual. Interessam á industria dos outros paizes, para os quaes o Brasil é um productor e um fornecedor.
Tal nação devia ser dirigida sobretudo por homens de espirito industrial, homens de realisação das forças e das riquezas naturaes do paiz.
Em vez d'isto, os dirigentes brasileiros são homens fora da realidade, homens de educação litteraria, de espirito clássico, alheios comple-
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tamente aos assumptos vitaes da nação, áquelles que encerram o seu destino humano e são preponderantes para o seu progresso.
Eis o paradoxo do governo brasileiro : ho­ mens não preparados para a funcção de gover­ nar uma nação de destino industrial governam essa nação.
Minas-Geraes é o paradoxo máximo. O solo dessa região é de uma prodigiosa riqueza eco­ nômica; os homens da política de Minas são grammaticos, poetas e latinistas, e os melhores são juristas clássicos.
S. Paulo, felizmente, é dirigido por uma elite de fazendeiros, agricultores e industriaes. Os homens antigos não são extranhos á industria, e essa perfeita conformidade entre a capacidade, a competência dos governantes e o destino social do Estado, é que mantém o progresso de S. Paulo, o menos paradoxal dos Estados brasileiros.
MEDITAÇÃO SOBRE A LÍNGUA PORTUGUEZA
í A perfeição é o signal do começo da deca dencia e da morte. Na arte, na ütteratura, como
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na natureza, a observação nos demonstra a verdade desta lei da evolução universal.
A esculptura começou a declinar quando attingiu â perfeição de Phidias. Praxiteles é um admirável esculptor de perfeição, mas a força creadora estava extincta. A poesia latina morreu com Virgílio, Horacio e Ovidio, seus perfeitos mestres. A poesia franceza chegou ao seu apogeo na forma raciniana. Depois, mesmo com Hugo, Musset, Vigny e Lamartine, nada renovou. A üngua estava perfeita e definitiva. Só mais tarde, com Baudelaire e Mallarmé, tomou nova feição. Em Portugal, a üngua, que foi pedregosa, dura e difficil, se foi apurando até dar-lhe Camões a perfeição. Depois, a poesia seguiu o rythmo camoneano e nada foi creado. Garrett é um romântico amaneirado. A prosa protugueza também se fixou em João de Barros e Vieira; Herculano foi um perfeito escriptor dentro da fôrma clássica. Eça de Queiroz teve a feücidade de trazer á ütteratura portugueza dons de vida. Foi um artista que, ignorando a üngua, escreveu de um modo encan tador, n'uma üngua espontânea e corrompida, com certa überdade, por lhe serem extranhos os moldes clássicos. E assim os principaes defeitos do escriptor que é Eça de Queiroz, contribuíram para avivacidade e a magia dos
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seus livros. No Brasil a situação da língua favorece o gênio creador. A perfeição ahi é difficil de ser attingida. Quem escreve na língua de Camões e Vieira e mesmo de Hercu-lano ou Camillo, escreve uma üngua affectada e postiça. A üngua exprime a grande desordem da formação nacional. Nesse tumultuoso rio, varias correntes se despejam e as águas são turvas, porém violentas e bravias e ás vezes de uma livre e grandiosa belleza. A vida se desenvolve em toda a natureza. Cada instante é uma nova affirmação do espirito humano sobre a infinita matéria, e as relações se mani­ festam na phantasia das expressões felizes, novas, alegres de nascer... De toda a parte chegam numerosas palavras, que se impõem pela violência, ou se affeiçoam geitosas á at-mosphera. Tudo é uma grande alluvião, e a terra é movediça, e o espirito alli sopra livre e fecundo. Vindas da própria natureza mara­ vilhosa, vindas da vida humana que alli se desen­ volve, ou vindas de longe, de remotas paragens, encanto de uns, espanto de outros, as expressões da linguagem luctam, se repellem e afinal se cruzam por instantes, até que novas expressões, novas fôrmas, não cheguem e não perturbem violentamente a plácida corrente que se havia formado... E com a üngua assim vae o estylo,
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movediço, tortuoso, sem regras, n'uma desor­ dem que irrita, mas que é um signal de infância ou de perpetua renovação. E ainda nada se fixou ; as velhas fôrmas portuguezas são absur­ das na terra incoherente e paradoxal do Brasil. Ha uma liberdade suprema para se revelar o gênio litterario. E ha um immenso esforço para attingir á perfeição. E' o delicioso momento de uma ütteratura, o maravilhoso instante de creação em que se lucta por fabricar de tantas matérias bellas e informes a obra-prima. E em­ quanto as raças trouxerem as suas expressões próprias, emquanto do solo e da civilisação que se fôrma, a linguagem for inquieta, tumul­ tuosa, o esforço será magnífico, e soberbo o espectaculo da creação litteraria ; mas, quando naquelle mundo extranho tudo se fixar, e uma só raça, uma só nação, uma só alma alli for definitiva, e grande, e majestosa, e serena, a perfeição será attingida e assistiremos ao começo da morte !
VISAGENS DA LITTÉRATURA BRASILEIRA
O espirito dominante na ütteratura brasi­ leira foi o do classicismo. Toda a nossa cultura
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foi sempre inspirada pela discipüna clássica. Os que escaparam a essa disciplina, foram os extravagantes, os absurdos, os bárbaros. E sempre coexistiram na nossa producção litte-raria duas correntes bem distinctas: a dos inspi­ rados pelo gosto e pela cultura e mesmo pela rhetorica clássica, e os indisciplinados, trans-bordantes e possessos. Aquelles, escriptores ou oradores castiços, artificiaes e extranhos ao movimento sentimental do seu tempo; estes outros, informes, chaoticos e incultos. Póde-se dizer que nos primeiros se via a persistência do espirito portuguez em contrariar a nossa natureza, e nos segundos o espirito de revolta da raça em plena formação, nessas explosões que exprimem a allucinação do terror e deslum­ bramento e a fascinação da miragem.
Ha uma grande lentidão da* influencia euro-péa nas manifestações litterarias portuguezas e brasileiras. O romantismo veiu apparecer em Portugal mais de vinte annos depois do seu apogeo em França; o realismo também levou quasi. o mesmo espaço de tempo para se tornar portuguez,. « Madame Bovary » é de 1859, o « Crime do Padre Amaro », de 1878, e o « Mu­ lato » de 1880.
Houve um momento em que a nossa üttera­ tura teve a apparencia do modelado clássico.
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E essa extravagância occorreu ainda na aurora da formação nacional do Brasil. Essa « perfor-mação » litteraria foi uma simples transposição de Portugal ao Brasil colonial. Do artificiaüsmo apenas se salvou a inspiração lyrica de Gonzaga e de Basiüo da Gama. O nosso espirito ainda está muito próximo da natureza para chegar á perfeição. Só attingiremos a esta depois de termos desbravado a nossa matta. Até lá, a ütteratura deve viver da nossa própria seiva tropical e o modelado nesse instante é um arti­ ficio, que importa em traição ao momento espi­ ritual do paiz.
Preconisar-se o classicismo como o canon do estylo é um absurdo. Cada epocha tem o seu estylo e neste se devem vasar as emoções humanas que se estyüsam. O escriptor de hoje que escre­ vesse como no século xvu, seria ridículo. Também
'eãda pátria tem o seu estylo. A simpücídade do caracter portuguez e brasileiro deve ser vertida na ütteratura. Evitemos o emphatico. O alexandrino é emphatico. Assim o Grego, abundante de poesia, era extremamente har­ monioso e simples. O Romano é secco, e essa seccura o leva á emphase, porque elle quer dar pelas palavras e pelas imagens a expressão que não lhe vem naturalmente, a sensação de naturalidade que lhe falta. No Brasil, o estylo
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emphatico é uma prova de sequidão e de vazio; é rhetorica em opposição á poesia. Os Brasi­ leiros não deviam ser emphaticos, porque são poetas e lyricos.
JOSÉ DE ALENCAR
Rompendo com o classicismo portuguez, Alencar affirmou a independência intellectual do Brasil. Tem-se dito que o « Guarany » é o grito do Ypiranga da ütteratura brasileira. Pela primeira vez a alma brasileira canta livremente, sem as cadeias da tradição colonial. A üngua incorrecta, exuberante, é a de uma nação joven, que desapprendeu a disciplina clássica e gosa alegremente das primicias da liberdade. Em todo o poema sopra o espirito da mocidade. No seu tempo Alencar foi o mais brasileiro de todos os escriptores, por­ que Gonçalves Dias, apesar de todo o seu nacionalismo e do seu indianismo, obedecia ao rythmo clássico, e se cantou Y-Juca-Pirama, escreveu as Sextilhas de Frei Antão. Alencar é mais integralmente brasileiro e um escriptor verdadeiramente americano. O seu romantismo separa-se da inspiração européa pelo enthu-
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siasmo tropical, que é uma expressão opti-raista de um povo possuído da grandeza do seu destino. Os escriptores portuguezes da mesma epocha de Alencar, como Garrett ou Herculano, são inteiramente differèntes do escriptor brasi­ leiro, como Portugal é differente do Brasil.
José de Alencar teve o privilegio de ser 0 primeiro escriptor de synthese que surgiu no Brasil. Machado de Assis foi um immenso es­ criptor de analyse : examinou os fragmentos do mundo moral brasileiro, mas em nenhum dos seus fivros teve a força de reunir estes fra­ gmentos e dar a synthese da civiüsação brasileira; e por isso faltou a Machado de Assis esse relâmpago de gênio que teve Alencar, quando no « Guarany » fixou o cyclo da forma­ ção nacional do Brasil, o encontro do portuguez e do indio no mundo tropical, a fusão das duas raças, de que nasceu a alma brasileira.
OS PRODÍGIOS DE ROUSSEAU
Christo e Rousseau são os dous accidentes mais extraordinários na historia do espirito humano. A influência de Rousseau no Occi-dente só foi excedida pela do Christo. Ochris-
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tianismo transformou o mundo, creando e inspirando um espirito novo, que mudou os valores da moral, da política, da intelligencia, da sciencia e da arte.
E que fez Jean-Jacques Rousseau ? E' a historia maravilhosa de um miserável, vindo da dôr profunda dos pobres, accumulando em si, inconscientemente, as surdas revoltas dos opprimidos, possuido de uma sensibilidade que leva a intelligencia ao paroxismo da agudez e do delirio. E a sensibilidade de Rousseau se tornou a sensibilidade da humanidade por mais de um século ! E* a sensibilidade de todo o século dezenove, que começou por um mal, a morbidez romântica, e acabou no desencanto do idealismo, seu próprio creador.
E que fez Rousseau ? Quasi analphabeto até aos trinta annos, começa a escrever aos trinta e cinco. Esse revelador do sentimento da natureza se insurge naturalmente contra a desegualdade social. Encontrara no principio absoluto da egualdade a avalanca para a revo­ lução de 89. O pamphleto que foi o « Contrat Social », destruiu toda a sociedade clássica, gerada na edade-média e no feudalismo. Desde então o mundo se tornou eguaütario e libertá­ rio. Rousseau creára a anarchia poütica. Tra­ zendo para a ütteratura o sentimento da natu-
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reza, já percebido por Condillac, libertou os espíritos do quadro em que girava até então o classicismo, em volta do homem e da vida social do homem. Pelo naturalismo de Rousseau o quadro foi alargado e a natureza incorporada â ütteratura. Rousseau inspira Bernardin de Saint-Pierre, Chateaubriand e, todos os paiza-gistas do livro. E' o pantheismo penetrando na obra de arte. E a evolução é parallela na pintura e mesmo na musica. Rousseau pelo seu natu­ rismo crea toda a escola da paizagem moderna, em que a paizagem não é mais um accessorio do homem e se torna o personagem da obra de arte. Sem Rousseau e o seu romantismo da natureza, Beethoven não teria produzido a Symphonia pastoral e a musica desse tempo permaneceria fiel ao classicismo de Mozart.
Com Rousseau surgem dous personagens novos no mundo : a natureza e o homem livre, na sociedade livre. E' toda a historia do espirito humano no século dezenove. E que prodigiosa transformação esses dous factores não determi­ naram na evolução social e na psychologia humana! Foram duas forças absolutas, que o gênio e a doença de Rousseau fizeram desen-cadeiar no mundo, até então limitado e contido pela disciplina de uma organisação religiosa, que ignorava a natureza ou a fazia inimiga da
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alma, que enquadrava o homem dentro da sociedade, sua perpetua categoria. Rousseau abalou esse edifício, queveiu a ser derrubado pelo espirito rousseauniano da Revolução franceza. Foi um grande prodigio cumprido por um só homem. Essa destruição foi um acto de exalta­ ção, e o defirio de Rousseau se propagou no mundo. E' uma revolta, uma blasphemia perertne contra a vida, é a não conformação do espirito-humano á fatalidade da existência. E' a doença de Gcethe, quando escreveu Werther, inspirado no absolutismo de Rousseau, é René de Chateau-briand, é Obermann de Sénancour, é Corina, dé Staêl, é Adolphe, de Benjamin Constant, é todo Byron, é mesmo o transcendental Shelley pelo seu pantheismo agudo. E' todo o romantismo que transmudou os valores da vida e espalhou o deücioso veneno de tristeza por ura século inteiro.
Rousseau é a doença do espirito. Façamos a nossa cura do mal de Rousseau, voltando á Grécia, comprehendendo o tranquillo segredo do Parthenon, discipünando o nosso espirito pela geometria eterna, raciocinando com Des­ cartes, investigando com Spinoza. E seremos um com a Natureza, e seremos os domina­ dores de nós mesmos.
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MUSICA
O estylo que traduzirá nielhor a alma de hoje não é o da esculptura nem o da pintura. Esses estylos correspondiam á sensibilidade antiga, como a esculptura da Grécia á pintura da Renascença, e mais tarde o sentimento da paizagem da natureza, infiltrado por Jean-Jacques Rousseau, e que annuncia o advento do pantheismo na ütteratura (Rousseau, Gcethe, Shelley). Hoje o estylo deve 3er musical. Pela musica deve-se interpretar o Universo. Pela musica deve-se exprimir toda a alma musical, o sonho e a morte. E' preciso ao escriptor trans­ por em musica todos os valores da natureza e da vida. A musica é o rythmo mundo de que só o homem moderno possúe todo o segredo.
A Iliada é um desfilar de estatuas, em alto e baixo relevo; a Odysséa é um baixo relevo que reproduz as anecdotas da vida na fôrma secca, simples e austera da pedra. A Eneida, fluida, é ainda arte esculptural. Dante mais tarde inaugura a pintura, mas ainda se atem á tradição esculptural nos baixos relevos infernaes e na construcção gothica. Racine volta ao puro classicismo esculptural. Rousseau, Chateau-
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briand, Gcethe (burguez e doméstico), Flaubert, são pintores. D'Annunzio é um colorista vene-ziano. Os grandes estyüstas musicaes são os poetas do século xix, e cada um teve a sua mu­ sica intima : Lamartine, Baudelaire, Verlaine, Mallarmé, Shelley, Keats, Heine.
Porque somos nós mais musicaes ? Ha uma evolução das sensações, que determina a predo­ minância de certa arte ? Isto é, ha uma sensibilidade que se transforma e se exprime em uma epocha por uma arte e em outra epocha por outra ? Porque só chegou a musica ao seu máximo de expressão no século xix ? Ha uma influencia de meio ? E também uma influencia psychologica evolutiva ? Não foi o século xix o século do pantheismo ? E não é a musica a arte mais livre, mais pura, mais arte ? Não tende tudo ao universal ? Dizemos alma musical, alma moderna, porque ?
A musica, incorporea, aérea, sem plástica, procura incorporar-se no Universo, como o Amor se procura unir ao ser amado.
O ROMANTISMO DE BEETHOVEN
Pelo espelho mágico do romantismo vimos em nossa epocha as imagens da edade média.
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O gothico' revive na musica de. Beethoven, quando esta foge ao pantheismo. Assim, na marcha fúnebre da « Eroica » desfilam os sym-bolos guerreiros da edade média, ouve-se a gargalhada sarcástica das gargulas, e na parte final um coro angelical, primitivo, arrebata o heróe morto.
Apesar do seu romantismo, do seu século xix, do seu gothismo, Beethoven é dominado pela aspiração â alegria. Elle se liberta na arte, e a sua arte tenta exprimir a natureza em triumpho acima da dôr.
DEBUSSY
Debussy exprimiu a extrema sensibilidade moderna por uma musicalidade aguda, pelo senso do pittoresco, pelo requinte nervoso de uma musica cerebral profundamente sensual. O caso Debussy não é singular nem isolado. Não ha movimento artistico que não seja inte­ gral n'uma epocha. Debussy liga-se aBaudelaire e a Mallarmé como aos impressionistas da pintura. De Mallarmé trouxe o segredo da dissonância, que é o rythmo dos nossos nervos. Mas não chega a ter a crueldade baudclairiana, o sadismo da
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imaginação, a necessidade do soffrimento, a infatigavel anciã do goso sem goso, que é a desharmonia da loucura.
Debussy üga-se aos impressionistas, sobretudo a Claude Monet, na expressão fugitiva e vaga, no esbatido das cores, na alegria do som, que é a festa da côr, e por todo o luminoso pantheismo. Mas, interpretando a natureza pela musica, Debussy não attingiu como Beethoven e Bach á essenpia da musica. Sente-se que está fora e não dentro da musica. O artista máximo deve ser o próprio assumpto da sua arte e não o interprete. O poeta é a própria cousa, a própria matéria poética que se desfaz em arte. A poesia que interpreta, que está acima ou distante, deixa de ser a poesia. Pela poesia tudo se con­ funde e une mysteriosamente, o poeta, as cou­ sas, o universo. Não ha separação para a inter­ pretação do mundo. Por esse conceito, poetas como Heredia não são poetas. E' poesia sem a poesia. Beethoven é a musica.
FLAUBERT
Na literatura universal dous escriptores fo­ ram singularmente creadores : Gcethe e Flau-
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bert. Em cada livro fizeram surgir succes-sivos novos mundos. Póde-se dizer que morriam em cada creação e renasciam noutra. Nada é egual, nada se repete. Tudo é diverso e infinito. Gcethe escreve « Werther », depois abandona toda a sensibilidade romântica, que lhe vem de Rousseau, e entra no classicismo, d'onde tira o segredo antigo e nos dá « Iphigenia » e mais tarde « Hermann e Dorothéa ». Escreve as « Affinidades electivas », e crea «Wilhelm Meis-ter », que é toda a sociedade moderna vista de cima. E mais tarde publica « Fausto ». Tudo é differente, diverso, e cada livro é um mundo.
Flaubert é também um creador de novos valores, de novas expressões da vida, e os seus livros são mundos distinctos. Nada tem de com-mum um com o outro a não ser a grande origem creadora. « Madame Bovary », « Salammbô », a«Tentação de Santo Antônio», oh variedade 1 Em comparação com esse creador, os outros escri­ ptores abundantes parece ;terem escripto um só fivro em muitos tomos. Balzac, apezar da sua força creadora de typos e de vida, escreveu um fivro único. Zola sempre se repetiu infi­ nitamente. Gcethe e Flaubert são creadores excepcionaes de novas, successivas e extranhas sensações e sensibilidades.
Flaubert escreveu os seus üvros acima delles.
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O escriptor não está dentro da obra. E' o artista que domina o trabalho e não vive a vida com-mum, irregular, incerta da sua própria creação, e não está dentro delia de um modo absoluto e fatal. Nisso Flaubert não procede como a natureza inconsciente, espontânea e una. Como Deus, elle crea de longe. E* o processo divino, mas não é o processo da natureza. Elle vê que as suas creações são perfeitas e boas, e pôde se repousar, ou mudar voluntariamente a força da expressão e crear o que quer 1 Por isso, procede magistralmente, senhoril como um distribuidor de graça e de vida. Por isso, economisa a sua força e dá o que acha bom. Assim exprime a virtude franceza, a razão econômica que mede o esforço, reflecte, aproveita e arranja com os seus meios o que é útil e bello.
Flaubert é o gênio francez, mais completo que Voltaire. Deste gênio da raça só três escri­ ptores se separaram : Pascal, a quem a loucura deu a allucinação do infinito e que não conheceu limite á sua alma; Rabelais, que teve a seiva da Renascença e cujo cosmopoütismo liberal o assemelha aos italianos da sua epocha, desenver-gonhados e desembaraçados ; Victor Hugo, que a Hespanha fez transbordante e gastador de emoções e forças.
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A TRISTEZA DOS « NATURALISTAS »
Vendo, ou estudando, as obras de arte do natu­ ralismo, sente-se nellas uma grande tristeza. Parece que esses artistas (poetas, romancistas, esculptores e pintores) tiveram uma profunda decepção da natureza humana é que todas as suas obras, sendo sobretudo humanas, reflectem esse desencanto. O romantismo que o precedeu, exprimiu uma grande melancolia, como em Chateaubriand, em Musset ou em Delacroix, mas toda a sua obra foi de enthusiasmo, de revolta, o que ainda é uma modalidade da illusão numa anciã de sonho. O naturalismo, não. E' triste, porque para elle a realidade é triste. Zola, mesmo o impassivel Flaubert, Maupas-sant e Daudet são amargos e desilludidos como Manet e Degas.
Depois da tristeza do realismo succedeu um período de alegria, de vivacidade na manifes­ tação artística, como um retorno ao paga­ nismo, uma sensação de Renascimento. Veja-se por exemplo a pintura sadia, colorida e phanta-sista de Renoir, Monet e Besnard, a poesia de d'Annunzio, Paul Fort e Henri de Régnier, os romances de Anatole France e toda essa
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pequena ütteratura franceza de Courteüne e Tristan Bernard.
VELASQUEZ
O realismo de Velasquez, em contraste com todo o mysticismo e a dôr da arte hespanhola, tem a sua raiz na raça portugueza, de que Velas­ quez é originário.
Essa excepção na expressão hespanhola é uma singularidade. Goya é mystico, satânico, hespanhol. Murillo é o êxtase, o enthusiasmo hespanhol! Ribera, a tortura, é também hes­ panhol, e o próprio Greco se impregna da dôr e da exaltação da Hespanha. Velasquez é a realidade, a natureza sem interpretação, é Portugal. Ha uma grande ausência de imaginação na arte portugueza. Os portuguezes não são creadores ou poetas, são antes executores e portanto artistas. Camões é um supremo ar­ tista ; não teme imitar Virgílio, mesmo nas suas grandes creações, como o Adamastor. As suas qualidades de invenção mostram-se infe-rioresás suas qualidades de exprimir, compor e modelar. Eça de Queiroz, Garrett são artistas de execução e pequenos creadores. O senti­ mento do reaüsmo é perenne no espirito
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portuguez. A arte de Velasquez, como a dos Flamengos e Hollandezes, influe nos mode­ rnos. E assim o realismo portuguez se torna uma expressão da arte universal pela força do gênio de Velasquez.
MYSTICISMO PORTUGUEZ
Os pintores primitivos portuguezes interpre­ tam o sacrifício e a miséria de Christo como o soffrimento, a desgraça, a tristeza da própria raça portugueza. Christo é o povo portuguez que soffre. Nofae nesses retratos o aspecto phy­ sico do portuguez, a palüdez, o martyrio, o abandono de tudo, o pobre portuguez que parece o symbolo da pobreza, o pobre dos pobres.
INEXPLICÁVEL TRISTEZA
Porque me compadeço dos outros seres e das cousas ? Porque sinto o què se denomina tristeza ? E porque para um ser como eu tudo não é indifferente, excepto o goso esthetico ?
Onde a fonte da minha compaixão ? As raízes da minha tristeza ?
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Porque soffro e porque desejo ? E porque não existo somente para a contemplação e o arrebatamento do espectaculo universal, e o meu espirito é carregado da dôr extranha á belleza ?
Explica-se o soffrimento do amor, que é a necessidade fundamental do ser que aspira pela confusão de toda a sua individualidade desapparecer no Todo Universal e abysmar-se no infindável silencio da Inconsciencia.
Mas porque esse soffrimento que vem da sympathia e se chama compaixão ?
RABELAIS
Rabelais, surgindo em plena Renascença, não só representa como também traz em si o t novo mundo », que se revela com uma sangüí­ nea energia; E* a canalha que sobe, e em seus livros Rabelais exprime esse formidável movi­ mento que vem de baixo para cima e transforma a terra. Tudo ahi pullula : vagabundos, his-triões, médicos, legistas, financeiros, soldados, padres, monges revoltados, n'uma insurreição geral, que revoluciona a própria üngua, a enri­ quece de mil vidas e lhe dá o esplendido colo-
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rido da epocha. Em Rabelais o movimento poütico da Renascença tem o seu interprete máximo, pois a sua « revolução » não se limita aos estudos, á arte, ao paganismo resuscitado; é o despontar da nova éra, o advento do indi-viduo; é o homem novo sem raízes, sem tradição, e dessa canalha rabelaisiana se fará mais tarde a magnífica elite que, a partir do século xvi, assombrará o mundo no pensamento, na poesia, na arte e na poütica. E dessa elite os represen­ tantes são homens novos, fora de toda a aristo­ cracia, como Rabelais, Corneille, Molière, Ra-cine, Shakspeare, Ariosto. A Revolução se annuncia. Rabelais é o precursor do vagabundo Rousseau.
CLEOPATRA E SALOMÉ
« Minha serpente do velho Nilo », diz Antônio, e Shakespeare synthetisa nesse verso a antigüi­ dade da mulher, a sua eternidade tentadora e a essência da volúpia oriental.
Mas porque Salomé perturba hoje os homens mais do que Cleopatra ? Será porque Salomé é ainda mais sensual, e só sexual e erótica, ao passo que em Cleopatra se sentem a intelli­ gencia e uma expressão de cultura ?
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O prestigio de Salomé prova o accrescimo de sensualidade no cérebro dos homens da nossa epocha. Nessa deliquescencia viril a emoção erótica efimina as outras emoções de volúpia, como as emoções de arte, de graça e intelügen-cia feminina. Tudo se reduz ao erotismo puro, á essência da sensualidade. Não é a emoção da sensuaüdade superior própria do occi-dente, onde o amor foi sacrifício e ideal, e o excesso da castidade divinisou a mulher na virgem vestal, na virgem christã, na virgem celtica. Com Salomé, e Cleopatra mesmo, o Oriente enfeitiça novamente o Occidente. Cleo­ patra fala, discursa, crea a arte, a elegância, seduz pela palavra e com intenção. Ao passo que o veneno de Salomé é animal. Salomé seduz, perturba, envenena, mata. Salomé não fala, dansa. É uma attitude; e toda ella des­ prende o fluido do erotismo, como uma arvore verte o veneno.
IBSEN
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Ibsen é o grande interprete do mundo mo­ derno, é o gemo que exprimiu antecipadamente o pensamento victorioso na guerra (o pensa-
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mento secreto, a victoria do homem, do indi­ víduo). Como um puro determinista, Ibsen vê na vida o indivíduo vindo da natureza. A sociedade, categoria do homem, é um simples accidente.
A Revolução franceza e o século xix foram precedidos pelo gênio de Rousseau, que revelou no « Contracto Social » a grande alavanca des-truidora do passado : a egualdade. Ibsen encon­ trou a nova expressão: o homem, o ser humano, só, isolado, poderoso, « e u e o mundo a minha propriedade » (Stirner). Nesse feroz individua-üsmo está a gênesis da nova sociedade. No fundo, o que venceu nesta guerra foi o indivi-dualismo. Se Ibsen tivesse possuído o gênio da fôrma e o fluido communicativo de Rousseau, a sua « revolução » não teria sido inferior.
O pensador dominou o apóstolo. Mas nesse grande pensador o pessimismo do século xix deixou a sua marca. Ibsen se esforça por fazer a alegria no espirito humano e tudo termina em catastrophe e desolação. A libertação, que é o ideal, é inattingivel. Só a morte attráe e fiberta (Rosmersholm, Solness, Brandt, Hedda Gabler).
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A ESTHETICA DE UMA TRAGÉDIA.
« Hedda Gabler » é um destino trágico. A sua tragédia é quasi animal, a tragédia da sensi­ bilidade, a tragédia da dominação. Hedda Gabler é uma vontade que necessita vencer as forças humanas. De uma vida mesquinha, de um circulo de ferro, em que as leis sociaes a mantêm, uma mulher impulsionada pelo phan-tasma da vontade, transfigurada pelo sonho, desilludida, na vã busca da eterna belleza, mal­ dita porque tudo em que toca se mancha e apodrece, foge pela passagem angusta e liber­ tadora da morte. É Hedda Gabler e a sua ins­ tantânea tragédia. O drama está na fatalidade substancial do temperamento dessa mulher, na sua incompatibilidade irremediável com a sociedade, não só com a que a sorte lhe pre­ parou, mas com qualquer outra.
O gênio de Ibsen nos affirma nesse drama ma­ gistral que só ha tragédia no que é insoluvel para o destino humano. Toda a arte inspirada nos problemas sociaes é precária, e a tragédia ahi é passageira: uma simples e mesmo imper­ ceptível inclinação da esphera moral basta para resolver todos os dramas familiares e eli-
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minar delles o interesse permanente. A solução dos conflictos humanos é a morte pelo frio das obras de arte, que só vivem do calor fugaz e enganador das theses sociaes. Em Hedda Ga­ bler ha alguma cousa de insoluvel, portanto uma tragédia eterna, como não ha solução humana possível para Prometheu e Hamlet.
Está a essência da tragédia antiga no império de uma fatalidade tenebrosa, inexorável, que esmaga a existência humana ? Será a tragédia moderna o vário, doloroso e inquietador drama da vontade ? Se Hedda Gabler é uma vontade que necessita vencer as forças humanas, Pro­ metheu não é uma vontade que necessita vencer as forças divinas ? O conflicto na tragédia grega é com os deuses; aqui, com os outros homens. Nem na fatalidade, nem na vontade está o elemento essencialmente trágico de ambos os dramas. O fundamento é esthetico, e não ha arte onde a impressão se pôde reduzir a um conceito. Eümine-se a fatalidade das tragédias antigas e a vontade do drama moderno, a sen­ sação esthetica subsiste a mesma, indifferente e exclusiva. Um conceito eqüivale ao outro e a essência não foi alterada. A fatalidade antiga provinha do sentimento Teügioso; a vontade moderna é a illusão do livre arbítrio e vem de um erro philosophico. Essa vontade é um sorti-
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tagâo da natureza implacável e o determinismo de querer eqüivale á noção antiga da f ataüdade. Além de tudo isto, além da consciência, éque estão a arte e a atraosphera olympica do prazer esthetica
S,e Hedda Gabler pudesse expandir üvremente a sua personalidade, saciar os seus illimitados e desenfreiados desejos de domínio, trans­ formaria o mundo, subjugaria as outras exis­ tências, reinaria no silencio,, espectro soberano e desdenhoso, exclusiva fonte de vida e de arte. Única e o mundo a sua propriedade 1 Mas na impossibilidade de attingir a esse máximo de belleza, só a libertação pela morte, supremo anniquilamento da illusão e ainda sarcástica affirmação da vontade indomável.
Como em todo o theatro de Ibsen, ha alguma cousa mais interessante em Hedda Gabler do que a manifestação dessa personalidade ex-tranha e fascinante; é a obra de arte que é esse drama. No theatro, como nos romances, os conflictos da moral, os problemas da vontade ou da intelligencia só valem quando creara a emoção esthetica. O próprio destino humano, O «trágico quotidiano.», nos deixam inddfferentes, se neües não ha a fonte benéfica do prazer esthetico* Quaesquer que sejam as intenções de Ihseo, a moraüdade, a poütica dos seus
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assumptos e dos seus personagens, o que im­ pera nos seus dramas, é a arte. De todo esse maravilhoso theatro o que subsiste não são os problemas, mas sim o que ha nelle de vida, a milagrosa representação da vida, que é a essência da arte. E tal é a força de vida nos dra<» mas ibsenianos que, uma vez postos era acção, fazem nascer o prodígio de uma mysteriosâ communhão esthetica. É o instante sagrado em que o gênio do auctor se vasou na alma dos vários seres da sua emoção, em que o interprete vive n'uma tremenda reaüdade uma existência de outrem e o espectador Vê passar deante dos olhos todo um mundo de fôrmas, de ima* gens que* irrepressivelj se desenrola dentro do espaço finito, arrastado impetuosamente pelo tempo subtil e violento. Enlquanto Hedda Gabler, viva, ardente, na tragédia do instincto, procura domar as oppostas forças humanas e como uma maldita se debate contra a silenciosa fatalidade que 0 subjuga, e salva na morte o que lhe resta de sonho e de desejo, o espectador* possuído desse infinito prazer da arte, que nos arrebata além das contingências da vidaj sente» se único e o universo seu espectaculo.
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A MORTE DE RENAN
Renan não foi um pensador do seu tempo e por isso não foi respeitado pelo tempo. Renan envelheceu e o seu pensamento não teve a força de crear uma corrente de idéas que transformasse a sensibilidade humana. Porque o pensador que não antecipa o seu tempo pela idéa, não viverá no futuro. Aconteceu que o maravilhoso escriptor, que foi Renan, não comprehendeu a grande revelação intellectual que a biologia e as sciencias naturaes trouxeram ao século xix. Renan permaneceu, depois da revolução de Lamarck e de Darwin, como um pensador de uma epocha anterior, uma mistura de encyclo-pedista e humanista do século xvm. Os seus assumptos já estavam mortos, quando elle os lançou alegremente, crendo tornal-os eternos e gloriosos pelo fluido da sua phantasia de bretão. Engano ! O que faz perdurar o pensamento é a sua intima correlação com o tempo, que elle brota no cérebro humano. Discutir seriamente theologia, livre arbitrio, depois de Lamarck, é virtuosismo, puro exercicío rhetorico de amador üterario. As obras de um Platão, de um Thomaz d'Aquino, de um Descartes
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ou de um Spinoza são immorredouras, porque exprimem o verdadeiro pensamento do ins­ tante histórico em que foram produzidas. Ha uma eterna seiva que as alimenta e as faz vivas, como documentos da evolução intelle­ ctual. São uma epocha. As obras de Renan fica­ ram á margem da corrente que transformou o espirito humano, quando o delicioso « padre » procurou reanimar ou destruir pela sua magia de antigo theologo renegado os phantasmas do velho mundo reügioso.
Por essa epocha appareceu em França o espirito critico de Taine. E ahi vive o século xix no methodo scientifico, no determinismo, na incorporação da biologia ás idéas geraes da philosophia. É um edifício robusto, construído com as pedras do seu tempo, e ficará como o testemunho vivo da livre critica de um século desencantado. E Renan vae-se!...
NIETZSCHE E A SUA ALLEMANHA.
Nitzsche é um parvenu, e esse prurido de appa-recer se manifesta na ostentação de cultura, na declamação em alta voz, na intenção de refazer, de renovar.
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Nietzsche exprime esse novo espirito do Alle-mão, que no fundo é parvenu. Elles julgam ter o segredo do futuro. Para elles toda a França está exgottada. É preciso crear o novo. EUes se apoderaram do que a França produzia de mais moderno para se mostrarem adeantados e pro­ gressistas. O maior enthusiasmo deües era jus­ tamente pelo que a maioria dos francezes ignorava.
A França tem a tranquillidade firme e estável. Ella marcha sem alarde, descobre e crea sere­ namente. Sabe que tem o segredo da civiüsação; portanto, só o que sáe do seu espirito é perfeito, bom e razoável. Eis o instincto francez, resultado da Razão e da Sabedoria.
Não precisa de proclamar que elle inventou, que fez o novo, porque todas as expressões de civiüsação que elle dá ao mundo, são justas e naturaes. É o que devia ser e o que era esperado.
Nada parvenue, a civilisação na França é absoluta, inteiriça, integral. A unidade de cul­ tura se desenvolve sem esforço, com toda a natu-raüdade, de accordo com as forças profundas da unidade nacional.
Quanto differente a Allemanha moderna, no seu furor de renovar, de expandir-se, de dominar e de ostentar 1 É sempre o bárbaro, o grosseiro, que a civiüsação deslumbra e que ao menor
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verniz de cultura" se julga ultra-civiüsado ; e d'ahi um paroxismo de expressão, um prurido de novidade e uma necessidade de brilhar.
Póde-se concluir que o prestigio da Allemanha no mundo foi devido á decadência das eütes nas nações modernas e que o seu successo foi grande nas cousas de ordem secundaria.
O DRAMA SCIENTIFICO DE CUREL
Eis um intellectual- sem intellectualidade. Curei pensa e se esforça em pensar, vulgarisa a sciencia ou melhor as hypotheses, mas não exprime a synthese de um pensamento, acima e além da sciencia, o que cohstitue a expressão inteüectual superior. Eis um artista sem arte; ora, o que faz viver a obra de arte é a arte, o vago, o mysterio do infinito, que o pensamento ou a fôrma podem suggerir e evocar. As peças de Curei são essencialmente didacticas, theses para discussão, ensaios para contradicção, em que o elemento arte não conta, e por isso mor­ rem de frio. Curei é o gênio dos meios cultiva­ dos, dos meios sábios, e quanta banalidade, quan­ tos cousas envelhecidas nesse theatro scientifico 1 Apesar d'isto, Curei teve o merecimento de
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ter trazido á üteratura as suggestões da philo­ sophia naturalista, mas sem a envergadura de Rosny, em que predomina o sentimento artístico. Curei não é um escriptor; falta-lhe o dom de creação pela palavra ou pela phrase. Sente-se que permanece sempre o estudante, o homem de intenção, que quer produzir a obra de arte. Tudo nelle é voluntário,, pouco espontâneo, nem instinctivo, nem imprevisto, nem emo­ tivo. Como a todos os anthropologistas, falta a Curei o senso philosophico. É a philosophia sem a philosophia.
SHAKESPEARE E O TEMPERAMENTO INGLEZ
O Inglez exprime o seu temperamento ou pela força, ou pelo cômico excêntrico, ou pela sensiblerie. Um espectaculo completo na Ingla­ terra deve-se compor de athletas, palhaços e sentimentaes. Shakespeare é bem inglez, quando nas suas peças, mesmo as mais trági­ cas, interpreta genialmente essas faculdades collectivas da raça. No seu theatro ha sempre o clown, jogral e mystificador, o hércules saxão que exhibe a sua força physica e um
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maravilhoso sentimento lyrico, elevado ao má­ ximo da expressão humana.
A ALMA DOS POVOS NOS SEUS DIVERTIMENTOS
Um povo, ou melhor o caracter de um povo, se revela no seu divertimento preferido, porque é ahi que se manifesta a sensibiüdade collectiva. Na Hespanha o divertimento popular é a tou-rada, selvagem, cruel, sensação dolorosa e pun­ gente. Na Itália é o canto, serenada sensual e poética, Veneza e Nápoles, as saturnaes de San Giovanni em Roma, que exprimem o sen-suaüsmo religioso e pagão. Na França é o thea­ tro, manifestação do espirito social artístico e literário. Na Inglaterra, a corrida de cavallos, os sports, o exercido physico provam a anima­ lidade juvenil, a necessidade de transbordar a força physica. Na Allemanha as cervejarias são palácios onde come, bebe e dansa um povo sensual e voraz. Em Portugal é ainda a dansa popular, o canto que acaba em nostalgia e tris­ teza. No Brasil o carnaval é a alegria collectiva, todo um povo louco, n'um frenesi dyonisiaco, que se harmonisa com o sol e o mar.
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O SEXO TRÁGICO
É paradoxal procurar-se resolver serena­ mente a questão social feminina, essencial­ mente perturbadora. Desde longe na nossa memória famifiar a imagem da mulher é domi­ nante. As figuras fundamentaes da avó e da mãe sobresáem ás dos homens. O matriar­ cado está na raiz da sociedade. Mais tarde a mulher é o sexo trágico, guarda da vida e das suas fontes, é a força por excellencia do cosmos que attráe o homem. Vencida, fascina-o; ven* cedora, destróe-o. Geradora e conservadora da tragédia essencial da vida, é o traço da união entre o homem e o Universo. N'uma anciã dolorosa, o homem a busca incessantemente, e se delia se separa, a sua dôr é incommensuravel, porque é a quebra da unidade, a volta ao pavor. O frêmito do permanente desejo, que abras a a vida universal, é o elemento trágico que per­ petua, divinisa e anniquila a existência. E não é para ella também o sexo trágico o homem, que é todo o destino da mulher ?
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O MÓVEL E O IMMOVEL NA PHYSIONOMIA HUMANA
Pelo rosto humano se conhece a fixação das raças. Na Europa desde muitos séculos a phy-siononoia das gentes é a mesma. A pintura nos revela que o Francez de hoje nos seus traços é o mesmo que o Francez da Renascença. A exprest-são pôde variar com o tempo e cad!a traço exprimir a sua epocha. Nas raças em formação essa inamobiüdade não existe. Tudo é movei
* e em perpetua transformação. Nad!a raaás diverso de um Brasileiro) antigo* que um Brasi­ leiro moderno. Tudo é differente : as linhas, os volumes e as representações do rosto. O cruzamento das raças impõe essa infinita modificação, e, como o caracter, a belleza não tem o mesmo senso que tinha ha apenas cin-coenta annos.
A MYSTICA DO CHRISTO
Na vida symbofica do Christo ha uma inque-brantavel unidade com o Universo. Christo,
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na sua peregrinação na Terra, se julga uma emanação divina, o próprio Deus sob a fôrma humana em missão providencial. A sua vida inte­ rior é a expressão infinita dessa união absoluta. Tudo o que é relativo é por elle rejeitado. O seu espirito vive no absoluto. Nem os soffrimentos que lhe infligem, nem o martyrio corporal têm a força de arrancal-o da sua mystica illusão. Tudo o que a humanidade, a natureza humana, pôde lhe apresentar de delicioso, de tentador, ou de doloroso, para o arrancar deste estado mystico, é inútil. Christo permanece Deus, unido ao Todo divino, infinito e eterno. Humano, elle era indifferente ás dores humanas, ás lamen­ tações das mulheres que o seguiam, ás misérias dos homens que acreditavam no seu poder sobrenatural, á própria piedade maternal. Nada tem a força de o reter no mundo relativo da consciência humana. Elle é o filho de Deus, elle vive do sopro de Deus e está na mão de Deus. Mas, um instante, Christo soffre a maior dôr humana: é quando na cruz, no êxtase do sacri­ fício, que elle julga necessário para a sua missão divina, se sente abandonado. É a separação da sua consciência da inconsciencia universal. É a quebra da unidade essencial; e Christo se julga um ser, e o Deus outro ser. Elle chora na immensa tristeza de se sentir só, roto o mys-
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tico encanto da unidade absoluta com o seu Deus. E nesse indizivel instante, antes da morte, que é o silencio da Dôr, Christo é pela primeira vez humano e soffre o horror que lhe vem da consciência da sua separação de Deus.
ESTE INSTANTE DA ARTE
Na pintura o que se espraia é a decoração. E nessa phantasia do colorido, rebusca-se, diverte-se, brinca, uma arte fácil e superficial. Parece que o artista se compraz no exaggero da fôrma e da côr. O espirito cubista soprou por toda aparte e não foi inteiramente nocivo. O cu­ bismo trouxe á pintura maior largueza e maior precisão de desenho pela representação total dos volumes. É o seu principal serviço á technica artística que interessa naturalmente á sensibiü­ dade.
Como explicar essa superficialidade em um instante tão trágico do destino himano ? Parece que o artista hesita deante do abysmo e dis­ farça, brincando com a fôrma, a côr e o som. A esculptura obrigada a commemorar a Tra­ gédia começa a fazer o movimento para a tris­ teza. Pobre esculptura!
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Na musica domina o mesmo enthusiasmo de colorido e de decoração. Mas emfim póde-se dizer que a única manifestação de mocidade, de espirito novo, no mundo, depois da guerra e durante a guerra, é a musica moderna franceza. O movimento foi iniciado anterior­ mente por Debussy, cuja revolução technica foi mais considerável que a de Wagner.
Dado o signal de partida, o gênio francez expandiu-se livremente em musica. É uma total renovação da emoção e da technica. Uma arte superior, ardente, fecunda, joven, liberrima, dominadora, jamais escrava da sensibiüdade, eomo foi a arte romântica da Allemanha nas suas expressões sobre-humanas de Beethoven e Schumann. Se ainda não houve a revelação de um gênio superior, ha uma genialidade colle­ ctiva, uma unidade de intelligencia verdadei­ ramente surprehendente. Nenhuma arte em França se rejuvenesceu como a musica. É na musica que se deve vêr o que a guerra trouxe de revolução e de überdade. A poesia ainda está em Régnier, Valéry e Claudel, o romance em Gide, Rosny e Proust. A pintura faz um esforço extraordinário, mas a preoccupação de exterio»-risar denota a fraqueza da inspiração. O cu­ bismo é lateral e insufficiente. A esculptura é ainda anthropologica com Rodin ou clássica
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com os outros. Só a musica traduz plenamente a sensibiüdade de hoje e annuncia a grande vi­ ctoria do espirito humano nesta lucta animal e moral que foi a guerra.
A GUERRA, A ARTE E A LITTÉRATURA
O maior esforço humano realisado na grande guerra foi o excesso de espiritualidade que transbordou dos instinctos animaes, deu idea-üdade â lucta dos povos. Esse idealismo reper-cutir-se-á na arte e na producção literária ? A renascença esperada, o facto novo resultará do cataclysmo da guerra ?
As convulsões políticas, as guerras, nem sempre determinam transformações espirtuaes e são causas de novas correntes artísticas ou literárias. Recorramos á historia da cultura franceza, que é a mais unida e a mais estudada» para nos esclarecer sobre esta conseqüência que paradoxalmente se attribue ás guerras, sobre­ tudo quando tomam proporções de uma catas­ trophe universal. Depois da sua formação, a nacionalidade franceza correu alguns graves perigos, porém os três instantes mais sérios para ella foram o do século xv, quando se pro-
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duziu o maravilhoso caso de Joanna d'Arç o da Revolução franceza, deante da colügaçãc monarchica européa, e ultimamente na repe­ tição da invasão barbara dos germanos, de qut Sedan foi o inquietador prelúdio do drama qut se decidiu no Marne. Nas anteriores crises nacionaes os factos politieos ou não agiram logicamente na literatura e na arte, ou não agiram de fôrma alguma. O milagre de Joanna d'Arç annunciava uma floração de idealismo. Foi o contrario que se deu. Nesse período a literatura foi de inspiração mediocre, burgueza e reaüsta. Nenhuma epopéa, nenhum Surto de imaginação, nenhuma renovação da poesia, a não ser a de François Viüon, trinta annos mais tarde.
A Revolução franceza devia suscitar uma literatura revolucionaria, extremamente livre. Surgiu uma üteratura reaccionaria, religiosa, a literatura dos emigrados ou adversários do espirito da Revolução, como Chateaubriand, Benjamin Constant, Madame de Staêl, André Chénier, Bonald, Joseph de Maistre.
A uma explosão de energia como a da Revo­ lução e de Napoleão, corresponde uma ütera­ tura de desalento, do mal do século. Sob certos aspectos, o romantismo começou por uma reacção reügiosa e legitimista. Stendhal foi o
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espirito representativo da curiosidade scienti­ fica que caracterisa o século xix, e esse espirito üvre só surgiu trinta annos depois da Revolu­ ção. Não seria extranho que ao mysticismo da guerra dos nossos dias se seguisse, como um excesso de animalidade humana, uma literatura positiva, reaüsta e desabusada.
Nenhum laço logicõ prende a manifestação artística aos acontecimentos de ordem política. O que provoca e determina a transformação do sentimento artístico, é a evolução da cultura. Todo o movimento üterario ou artístico é pre­ cedido de um movimento philosophico. Se as guerras, as revoluções de toda a ordem, são causa­ das por uma profunda corrente de idéas em con-flicto, pôde acontecer que estes factos sociaes influam na intelügencia collectiva e inspirem uma nova sensibiüdade; mas a causa primeira é sempre aquella mutação de cultura geradora do pensamento.
A grande guerra poderá determinar um movimento intellectual novo e original, porque esta guerra não foi simplesmente uma lucta entre nações que se disputavam a preeminencia, uma querella de supremacia e amor próprio. Foi sobretudo o conflicto de duas fôrmas da civilisação, de duas estheticas, de duas philo-sophias e também de dois direitos antagônicos:
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o direito romano, que se tornou a fôrma jurídica do mundo occidental, e o direito germânico, que é ainda a armadura do espirito allemão. Desta vasta e profunda lucta pôde resultar uma nova esthetica ; mas esta deve remontar ao impulso intellectual, que foi a razão primordial da victoria da civiüsação, que melhor representa a cultura do nosso tempo, esta cultura é a que inspira a arte.
Certamente que a philosophia, a arte e a reügião, como interpretes do enigma do Uni­ verso, nasceram ao mesmo tempo nas origens do espirito humano; mas a discipüna philoso-phica, que no começo se poderia confundir com a reügião, constituiu-se antes da arte e esta recebeu a sua influencia.
Depois que as* primitivas cosmologias, fati-gadas de expücar o Universo pela indagação das causas finaes na interpretação da substan­ cia única, restringiram as suas cogitações á mechanica inicial, que dava a formula do movi­ mento e do repouso, a cultura mathematica subordinou os phenomenos do cosmos. Foi a primeira discipüna que organisou a intelli­ gencia do mundo. A arte, as suas leis e os seus preceitos reflectiram essa cultura mathematica, precursora de uma esthetica que não se limitou ás manifestações da emoção, mas que se esten-
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deu á vida integral do homem. Viveu-se, pen­ sou-se, ide afisou-se, segundo o senso mathema-tico, o numero, a unha, a fôrma. A arithmetica e a geometria methodisaram tudo, deuses, homens, cousas, musica, todo o pensamento, toda a reügião, toda a arte. O Parnaso foi uma construcção geométrica, hierarchica, or­ denada ; a sua architectura, imagem e reflexo da architectura humana; a musica foi a medida, o espaço, o numero ; a poesia, também o nu­ mero e a ordem. E como o sentimento é pro­ fundamente mathemâtico, a arte por excellen-cia devia ser aquella que fosse mais geométrica, a architectura, com a esculptura seu annexo, artes representativas dos volumes. Os templos, as casas, exprimem em unhas e fôrmas a mathematica do universo. Ha uma disciplina geométrica que ümita a sensibilidade, torna fria a imaginação e procura na impassibiüdade da figura, que se ergue no espaço, reproduzir um aspecto da eternidade. Por esse sentimento mathemâtico expüca-se mais a arte grega do que pelas condições do meio.
Ha uma unidade de cultura em todas as epochas da historia. A arte grega devia fatal­ mente receber a influencia do espirito mathe­ mâtico do seu tempo ordenador do cosmos, cujo sentimento vago e indefinido, transcen­
di'-.
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dental á sciencia, se manifesta pela linha, pela fôrma, pela côr e pelo som. E como a pintura é a menos mathematica de todas as artes (porque a musica é o numero) numa epocha de cultura geométrica como a da antiga Grécia, a esculptura e a architectura deviam ser as artes plásticas predominantes; e a ausência de uma grande pintura grega tem afinal a sua explicação na theoria da'unidade da cultura e da precedência da idéa philosophica em relação ao sentimento artístico.
Alguns séculos depois desse grande momento da Grécia, a explicação mathematica do Uni­ verso perdeu o prestigio, e outras interpretações philosophicas vieram explicar o cosmos e modi­ ficar a vida humana. O sentimento do mysterio tornou-se mais agudo ; percebeu-àe que, além da esphera geométrica, além do triângulo, além do numero, havia o infinito innumeravel e toda a tragédia da existência dos homens foi a intelügencia desse insoluvel enigma. O que se chama a edade média é a angustia do espirito humano desencadeiado dà antiga disciplina mathematica e ululando nas perdidas trevas do mundo o seu desespero de resolver o enigma do Universo. A arte se resente dessa anciedade. O inexpressivo, a frieza, a serenidade são substituídos pela expressão da sensibiüdade
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exaltada. Os monumentos como que perderam o senso do equilíbrio estável e são como as pro-jecções do delirio espiritual. Procura-se descon­ certar as leis da geometria na poesia, na archi­ tectura e em todas as artes plásticas. Foi a philosophia do tempo que inspirou a arte go-thica e a poesia de Dante, filha da theologia de S. Thomaz.
Nessa remodelação do universo em que des­ vairou o espirito humano, era conseqüente que este se indagasse a si mesmo, levado pelo pró­ prio excesso da investigação, que o impelliu a penetrar no mysterio do infinito. Aponta o humanismo a revelação do homem como centro da natureza, e a humanisação da natureza, que é o encanto do pantheismo do cântico das crea-turas de S. Francisco de Assis, annuncia a aurora da Renascença. Desse movimento espi­ ritual, que restituiu ao homem a sua graça, o seu gemo, resulta essa cultura humanista que brilha na poesia de Petrarca, nos poemas dos trova-dores, na erudição e na arte. Tudo é humano» tudo é expressão de sensibilidade humana. E nenhuma arte plástica pôde traduzir melhor essa diversidade da expressão do sentimento do que a pintura, a arte por excellencia do Renas­ cimento. É no traço da figura humana que se pensa exprimir a anciã da eternidade. A escul-
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ptura também segue o movimento para a expres­ são e renuncia á impassibiüdade clássica. A ar­ chitectura repete com mais largueza a concepção geométrica grega; nessa volta ella obedece ao movimento de cultura que, desdenhando as allucinadas indagações medievaefc, se circums-creve ao que é humano e social. Humana, sempre humana, é toda a Renascença.
O influxo dessa cultura se prolonga por longo tempo. As modificações politicas do mundo o seguiram de perto, mas não lhe alteraram a essência. Os impérios se transfoimaram, o mundo se alargou, as guerras se perpetuaram, a arte e o pensamento não se modificaram por esses movimentos de superfície. O humanismo tudo dominou, e o que se chama classicismo é unicamente a proeminencia do interesse hu­ mano na obra de arte, a projecção das paixões do homem na ordem social, em que elle se enqua­ drou.
Só mais tarde essa cultura, que deu ao homem uma posição universal, foi substituída por outra interpretação mais vasta da vida, a que se ini­ ciou na philosophia da natureza de Condülac. O pantheismo medieval, precursor da Renas­ cença, procurou humamsar a natureza; a philo­ sophia de Condülac tornou o homem natural, realisando a«naturação»do homem. Na verdade,
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é eUa que precede e inspira o movimento fite-rario, cuja iniciativa se attribue á sensibilidade de Rousseau. Dessa cultura philosophica vem á transformação da sciencia, o advento da cul­ tura biológica ou naturaüsta e o pantheismo na arte. Os maiores representantes da poesia e da literatura, Gcethe, Sheüey, Balzac, são inspirados pelas idéas da philosophia natural. Não tarda a cultura biológica a se espraiar em todos os domínios da intelügencia. A concepção de Lamarck, revigorada por Darwin, expüca muitos dos enigmas do mundo, e essas revela­ ções precedem o movimento artístico dos nos­ sos tempos. O homem passa a ser o descendente de outros animaes, o ultimo élo de uma escala biológica, que participa da essência natural dos seus antepassados. Essa expücação scientifica domina todo o século xix. A arte deve fatal­ mente ahi se inspirar, para ser a interprete da nossa sensibiüdade. Todo o pensamento que se propõe á vida, deve obedecer a esse mesmo rythmo philosophico. É o que torna magnífica a arte de Rodin, interprete dessa expücação anthropologica do homem, prolongamento dos seus formadores animaes, integrado para sempre na natureza.
A musica, por ser a mais vaga das artes, não se subtráe ao influxo philosophico, á corrente
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das idéas que modificam a sensibiüdade. Mozart traduz bem o humanismo do século xvm, a graça da vida social, como Watteau a reflectiu na pintura. Beethoven exprime o pantheismo de Rousseau, a melancolia do século xix; Wagner segue essa mesma dilacerante concepção pan-theista na paixão e no pessimismo universal, que absorve os velhos deuses germânicos. Ora, Debussy tem a sensibiüdade de um esthetismo naturista, que parece vir substituir aquelle movimento philosophico, dando ao mundo uma interpretação puramente espectacular, que é a concepção esthetica do Universo.
O pensamento projecta-se na arte para existir. A philosophia, que não se faz arte, não será vida.
Í N D I C E
A UNIDADE INFINITA DO TODO
O UNIVERSO E A CONSCIÊNCIA 3 A FUNCÇÃO PSYCHICA DO TERROR 7
Religião 12 Philosophia 20 Arte 36 Amor 60
A ESTHETICA DO UNIVERSO 71
METAPHYSICA BRASILEIRA i
A IMAGINAÇÃO BRASILEIRA 8 5 OS TRABALHOS DO HOMEM BRASILEIRO 9 5
Vencer a nossa natureza 101 Vencer a nossa metaphysica 104 Vencer a nossa intelligencia 109
CULTURA E CIVILISAÇÃO
A MELHOR CIVILISAÇÃO 1 2 5
A NAÇÃO 1 3 7 NACIONALISMO E COMMUNISMO 149
INS
Pessimismo brasileiro 165 Optimismo brasileiro 175
236 Í N D I C E
Pragmatismo brasileiro 178 O quadro nacional 179 O nosso estylo 181 O typo brasileiro 184 O paradoxo brasileiro.... 185 Meditação sobre a lingua portugueza 186 Visagens da littératura brasileira 189 José de Alencar 192 Os prodígios de Rousseau 193 Musica 197 O romantismo de Beethoven 198 Debussy 199 Flaubert 200 A tristeza dos naturalistas 203 Velasquez '. 204 Mysticismo portuguez 205 Inexplicável tristeza 205 Rabelais 206 Cleopatra e Salomé < 207 Ibsen 208 A esthetica de uma tragédia 210 A morte de Renan 214 Nietzsche e a sua Allemanha 215 O drama scientifico de Curei 217 Shakespeare e o temperamento inglez 218 A alma dos povos nos seus divertimentos 219 O sexo trágico 2̂20 O movei e o immovel na physionomia humana. . 221 A mystica do Christo 221 Este instante da arte 223 A guerra, a arte e a littératura 225
ABBEVILLE. — IMPRIMER.IE F. PAI1XART. — 5 - 2 1
ABBEVIIXE. IMP. PAIIXART. 6-21 .

 
 
 
 
 
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arteriaemchamas · 2 months ago
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jornada ao oeste 2
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arteriaemchamas · 2 months ago
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jpo 2
CAPÍTULO 19: O ESPÍRITO GOVERNANTE CONFECCIONA REMÉDIOS À NOITE; O REI DISCUTE DEMÔNIOS NO BANQUETE
Retomando a história, o Grande Sábio Sun Wukong chegou ao palácio, acompanhado dos eunucos. Eles foram direto ao pátio interno, parando diante dos aposentos reais. Sun Wukong entregou as três linhas de ouro aos eunucos, instruindo-os: "Peçam às concubinas reais ou aos eunucos próximos que amarrem estas linhas no pulso esquerdo do rei, nos pontos do cun, guan e chi, e depois passem as extremidades das linhas por entre as grades da janela até mim." Os eunucos fizeram conforme as instruções. Eles posicionaram o rei no leito imperial e amarraram uma das extremidades das linhas de ouro nos pontos de pulso indicados, passando a outra extremidade para fora da janela.
Sun Wukong pegou as pontas das linhas do lado de fora, posicionou o polegar direito sobre o dedo indicador e verificou o pulso cun; depois, posicionou o dedo médio sobre o polegar e verificou o pulso guan; por fim, posicionou o polegar sobre o dedo anelar e verificou o pulso chi. Ele ajustou sua própria respiração, dividiu as energias, analisou as condições superficiais e profundas, e identificou as causas subjacentes. Em seguida, pediu que soltassem o pulso esquerdo e amarrassem as linhas no pulso direito, onde repetiu o diagnóstico. Após concluir, Sun Wukong sacudiu o corpo, recuperando as linhas douradas, e anunciou em alta voz: "Vossa Majestade tem um pulso cun forte e tenso na mão esquerda, com o pulso guan apertado e lento, e o pulso chi oco e profundo. Na mão direita, o pulso cun está flutuante e escorregadio, o pulso guan lento e irregular, e o pulso chi rápido e firme. Um cun forte e tenso indica uma fraqueza no coração; um guan apertado e lento sugere suor excessivo e dormência muscular; um chi oco e profundo significa urina avermelhada e fezes com sangue. Já o cun flutuante e escorregadio na mão direita indica bloqueio interno dos canais de energia; o guan lento e irregular sugere alimentos e líquidos retidos; e o chi rápido e firme indica plenitude abdominal e frio interno. Ao diagnosticar esses sintomas, parece ser uma doença causada por medo e preocupação, conhecida como 'Dois Pássaros Perdidos'."
O rei, ouvindo essas palavras do interior do aposento, ficou extremamente satisfeito, levantou-se com entusiasmo e disse em alta voz: "Você acertou em cheio, exatamente como descrito. Por favor, prepare o remédio agora mesmo."
O Grande Sábio saiu do palácio com passos tranquilos. Os eunucos que ouviram a conversa já haviam informado os outros do ocorrido. Em pouco tempo, Sun Wukong saiu e Tang Sanzang perguntou como tudo havia corrido. Sun Wukong respondeu: "Já diagnostiquei o pulso e agora vou preparar o remédio." Os oficiais se aproximaram e perguntaram: "Santo monge, você mencionou a doença 'Dois Pássaros Perdidos'. O que significa isso?" Sun Wukong riu e respondeu: "São dois pássaros, macho e fêmea, que originalmente voavam juntos. De repente, uma tempestade os separou; a fêmea não conseguia ver o macho, e o macho não conseguia ver a fêmea. A fêmea pensava no macho, e o macho pensava na fêmea. Isso não é 'Dois Pássaros Perdidos'?" Os oficiais, ao ouvirem isso, exclamaram juntos: "De fato, você é um monge divino! Um verdadeiro médico milagroso!" Eles não paravam de elogiar Sun Wukong. Então, um médico da corte perguntou: "Já que a causa da doença foi identificada, que tipo de remédio será usado para tratá-la?" Sun Wukong respondeu: "Não há necessidade de seguir fórmulas fixas; qualquer medicamento adequado servirá." O médico da corte questionou: "Mas as escrituras dizem: 'Há oitocentos e oitenta tipos de medicamentos e quatrocentas e quatro doenças. Como um medicamento poderia tratar todas as doenças?' Como você pode dizer que qualquer medicamento servirá?" Sun Wukong respondeu: "Os antigos dizem: 'Os remédios não precisam seguir fórmulas rígidas; devem ser usados conforme a necessidade.' Por isso, eu reúno todos os medicamentos e faço ajustes conforme necessário."
O médico da corte não discutiu mais e foi até os portões do palácio, ordenando que os funcionários locais informassem todas as farmácias da cidade, tanto as que vendiam ervas frescas quanto as secas, para preparar os medicamentos. Cada tipo de medicamento deveria ser preparado em três jins (cerca de 1,5 kg), e então entregues a Sun Wukong. Sun Wukong disse: "Este não é o lugar adequado para preparar o remédio. Enviem todos os medicamentos e os utensílios necessários ao Hui Tong Guan, onde meus dois irmãos os receberão." Os médicos da corte obedeceram, enviando todas as oitocentas e oitenta variedades de medicamentos, cada uma pesando três jins, junto com os pilões, moinhos, peneiras e outros utensílios necessários, tudo para o Hui Tong Guan, onde os irmãos de Sun Wukong receberam os itens.
Sun Wukong foi até o salão principal do palácio e pediu ao mestre que fosse com ele ao Hui Tong Guan para preparar os remédios. Tang Sanzang estava prestes a se levantar quando um mensageiro do palácio chegou com a ordem para que ele ficasse no palácio, hospedado no Pavilhão Wenhua. Ele deveria permanecer ali até a manhã seguinte, após o rei tomar o remédio, quando, se a doença fosse curada, receberia agradecimentos e trocaria os documentos de passagem antes de seguir viagem. Tang Sanzang ficou alarmado e disse: "Discípulo, estão me mantendo aqui como garantia. Se você curar a doença, eles me liberarão felizes; se não, minha vida estará em perigo. Você deve ser extremamente cuidadoso e devoto na preparação do remédio." Sun Wukong riu e respondeu: "Mestre, não se preocupe, aproveite a estadia. Eu, o Grande Sábio, sei como curar reis."
O Grande Sábio se despediu de Tang Sanzang e dos ministros, e foi direto para o Hui Tong Guan. Zhu Bajie, ao vê-lo chegar, riu e disse: "Irmão, eu sei o que você está fazendo." Sun Wukong perguntou: "O que você acha que estou fazendo?" Zhu Bajie respondeu: "Eu sei que a missão de buscar as escrituras não dará certo, então você decidiu abrir uma farmácia por aqui, aproveitando que este lugar é próspero." Sun Wukong repreendeu: "Pare de falar bobagens! Nós vamos curar o rei, receber nossas recompensas e partir. Quem disse algo sobre abrir uma farmácia?" Zhu Bajie respondeu: "Não pode ser. Essas oitocentas e oitenta variedades de medicamentos, pesando três jins cada, totalizando duas mil quatrocentas e vinte e quatro jins, são para tratar apenas uma pessoa? Quantos anos levariam para consumir tudo isso?" Sun Wukong respondeu: "Quem precisa de tanto? Os médicos da corte são todos ignorantes, por isso trouxeram essa quantidade absurda de medicamentos. Eles nem sabem quais remédios eu usarei, assim não poderão descobrir minha fórmula milagrosa."
Enquanto conversavam, dois administradores do Hui Tong Guan se aproximaram, ajoelhando-se diante de Sun Wukong, e disseram: "Por favor, Mestre, venha tomar a refeição da noite." Sun Wukong perguntou: "Esta manhã vocês me trataram de um jeito, e agora se ajoelham para me convidar. Por quê?" Os administradores responderam: "Quando Vossa Senhoria chegou, nós, míseros servidores, não reconhecemos sua nobreza. Agora, sabendo que Vossa Senhoria salvou nosso rei, e que se ele se recuperar, Vossa Senhoria terá direito a parte do reino, nós, como súditos, devemos nos prostrar e reverenciá-lo." Sun Wukong, satisfeito com a explicação, subiu ao salão e se sentou. Zhu Bajie e Sha Wujing sentaram-se à esquerda e à direita. Quando a refeição foi servida, Sha Wujing perguntou: "Irmão, onde está o mestre?" Sun Wukong riu e respondeu: "O mestre foi mantido no palácio como garantia. Só depois de curarmos o rei, ele será recompensado e liberado." Sha Wujing perguntou: "Ele está sendo bem tratado?" Sun Wukong respondeu: "Como poderia não estar? Quando eu saí, três ministros estavam acompanhando-o até o Pavilhão Wenhua." Zhu Bajie comentou: "Então, o mestre é o maior beneficiado: ele tem ministros ao seu lado, enquanto nós só temos dois administradores para nos servir. Mas deixemos isso de lado, vamos aproveitar e comer à vontade." Os irmãos então se serviram de uma refeição farta.
Quando a noite caiu, Sun Wukong ordenou aos administradores: "Guardem os utensílios e tragam mais óleo e velas. Vamos preparar os remédios quando a noite estiver tranquila." Os administradores atenderam prontamente, trazendo a quantidade necessária de óleo e velas, que foram distribuídas conforme o pedido.
À meia-noite, quando as ruas da cidade estavam silenciosas e tudo estava em completo silêncio, Zhu Bajie disse: "Irmão, que remédio vamos preparar? Vamos começar logo, estou com sono." Sun Wukong respondeu: "Pegue uma liang (cerca de 50 gramas) de ruibarbo e moa até virar um pó fino." Sha Wujing então comentou: "O ruibarbo tem um gosto amargo, sua natureza é fria e não é tóxico. Ele é pesado e não flutua, e sua função é movimentar, mas não fixar. Dissolve bloqueios e restabelece a paz, sendo chamado de 'General'. É um medicamento eficaz, mas temo que para um paciente com doença prolongada e fraqueza, ele não seja adequado." Sun Wukong riu e disse: "Irmão, você não entende. Este remédio ajuda a expelir fleuma e a regular o qi, eliminando o frio e o calor retidos no estômago. Não se preocupe comigo. Agora vá pegar uma liang de grãos de Croton tiglium (ou 'ba dou'), retire as cascas e as membranas, extraia o óleo venenoso e moa-os em pó fino."
Zhu Bajie então comentou: "O ba dou é picante, quente e tóxico. Ele dissolve obstruções, eliminando o frio profundo dos órgãos internos; desbloqueia os caminhos e promove a eliminação de líquidos e alimentos retidos. É um remédio extremamente agressivo, não deve ser usado levianamente." Sun Wukong disse: "Irmão, você também não entende. Este remédio quebra acúmulos e libera os intestinos, tratando distensões e retenções de água no corpo. Prepare-o rapidamente, pois ainda tenho outros ingredientes para adicionar."
Os dois, então, moeram os dois medicamentos em pó fino e perguntaram: "Irmão, vamos usar mais algum dos outros medicamentos?" Sun Wukong respondeu: "Não, esses dois são suficientes." Zhu Bajie comentou: "Entre as oitocentas e oitenta variedades de medicamentos, cada uma com três jins, só vamos usar duas liang? Isso é um verdadeiro desperdício!" Sun Wukong pegou um pequeno prato de porcelana e disse: "Irmão, não fale demais. Pegue este prato e raspe metade dele com cinzas de panela." Zhu Bajie perguntou: "Para que isso?" Sun Wukong respondeu: "Vamos adicionar isso ao remédio." Sha Wujing, intrigado, disse: "Nunca vi cinzas de panela serem usadas em medicamentos." Sun Wukong respondeu: "As cinzas de panela são conhecidas como 'geada de cem ervas', capazes de tratar inúmeras doenças. Você não sabia disso?" O tolo Zhu Bajie realmente raspou meio prato de cinzas e moeu-as até ficarem finas.
Sun Wukong então entregou o prato a Zhu Bajie novamente e disse: "Agora vá buscar meio prato de urina do nosso cavalo." Zhu Bajie, confuso, perguntou: "Para que isso?" Sun Wukong respondeu: "Vamos usar para formar as pílulas." Sha Wujing riu e disse: "Irmão, isso não é brincadeira. Urina de cavalo é fétida, como pode ser usada em medicamentos? Eu já vi pílulas sendo feitas com pasta de vinagre, pasta de arroz envelhecido, mel refinado ou apenas água limpa, mas nunca com urina de cavalo. Essa coisa é tão fétida que alguém com o baço fraco vomitaria só de cheirá-la; e ao tomar ba dou e ruibarbo juntos, a pessoa provavelmente vomitaria e teria diarreia ao mesmo tempo. Isso não é brincadeira!" Sun Wukong respondeu: "Você não entende. Nosso cavalo não é um cavalo comum; ele é, na verdade, um dragão do Mar Ocidental. Se ele urinar sobre um rio, os peixes que beberem a água se transformarão em dragões; se ele urinar sobre a montanha, as plantas que crescerem lá se transformarão em ervas espirituais, que prolongam a vida. Por que ele desperdiçaria sua urina em um lugar tão mundano?" Zhu Bajie ouviu isso e foi até o cavalo, que estava deitado dormindo. O tolo o chutou para acordá-lo, posicionou-se debaixo de sua barriga e esperou um pouco, mas nada saiu. Ele correu de volta e disse a Sun Wukong: "Irmão, esqueça de tratar o imperador e venha primeiro tratar o cavalo. O pobre animal está tão constipado que não consegue urinar nem uma gota!" Sun Wukong riu e disse: "Vamos, vou ajudá-lo." Sha Wujing disse: "Vou com vocês para ver isso."
Os três foram até o cavalo, que se levantou e, com uma voz humana, gritou: "Irmão, você não sabe? Eu sou originalmente um dragão voador do Mar Ocidental, mas por ter violado as regras celestiais, a Bodhisattva Guanyin me salvou, serrando meus chifres, removendo minhas escamas e transformando-me em um cavalo para carregar o mestre em sua jornada ao Oeste, como uma forma de redimir meus pecados. Se eu urinar em um rio, os peixes que beberem a água se transformarão em dragões; se eu urinar sobre uma montanha, as plantas absorverão a essência e se transformarão em ervas espirituais, que prolongam a vida. Como posso desperdiçar minha urina em um lugar tão comum?" Sun Wukong disse: "Irmão, seja cuidadoso com suas palavras. Este é o reino de um rei do Ocidente, não um lugar comum, e sua urina não será desperdiçada. Como dizem, 'várias penas formam um manto'. Estamos tentando curar o rei deste reino. Se conseguirmos, todos nós seremos recompensados; caso contrário, temo que não sairemos daqui ilesos." O cavalo então respondeu: "Muito bem, muito bem." Ele se abaixou para frente, depois para trás, rangendo os dentes, e conseguiu liberar algumas gotas, levantando-se logo em seguida. Zhu Bajie comentou: "Esse pobre cavalo só conseguiu liberar algumas gotas. Seria melhor se tivesse urinado mais um pouco." Sun Wukong viu que tinha conseguido encher meio prato e disse: "Isso é suficiente, vamos lá." Sha Wujing ficou aliviado e satisfeito.
Os três voltaram para o salão, misturaram os ingredientes preparados e formaram três grandes pílulas. Sun Wukong comentou: "Irmãos, essas pílulas ficaram muito grandes." Zhu Bajie respondeu: "Elas têm o tamanho de nozes. Se fossem para mim, eu comeria tudo de uma só vez." Eles então guardaram as pílulas em uma pequena caixa e, depois de trocarem de roupa, foram dormir. A noite passou sem mais incidentes, e logo amanheceu.
Na manhã seguinte, o rei, ainda doente, convocou os ministros e pediu que fossem ao Hui Tong Guan buscar o Santo Monge Sun e o remédio que ele preparou.
Os oficiais foram ao Hui Tong Guan e se prostraram diante de Sun Wukong, dizendo: "O nosso rei nos enviou para receber a fórmula milagrosa." Sun Wukong chamou Zhu Bajie para pegar a caixa de remédios. Ao abrir a tampa e entregar aos oficiais, eles perguntaram: "Qual é o nome desse medicamento? Precisamos informar ao rei corretamente." Sun Wukong respondeu: "Este remédio se chama 'Pílula de Ouro Preto'." Zhu Bajie e Sha Wujing riram baixinho entre si, dizendo: "É claro que é 'Pílula de Ouro Preto', já que é misturada com cinzas de panela." Os oficiais perguntaram novamente: "Qual é o veículo (líquido para tomar o remédio) adequado?" Sun Wukong respondeu: "Há dois tipos de veículos que podem ser usados. Um deles é um decoto feito com seis ingredientes, o que é mais fácil de obter." Os oficiais perguntaram: "Quais são os seis ingredientes?" Sun Wukong respondeu: "Primeiro, excremento de corvo voando alto no céu; segundo, urina de carpa que nada contra a correnteza; terceiro, pó facial da Rainha Mãe do Oeste; quarto, cinzas do forno alquímico de Laozi; quinto, três pedaços de lenço velho usado pelo Imperador de Jade; e sexto, cinco fios de barba de dragão preso. Se ferverem esses seis ingredientes em uma sopa e tomarem o remédio com ela, a doença do rei será curada imediatamente." Os oficiais, surpresos, disseram: "Esses ingredientes são impossíveis de encontrar no mundo. Qual é a outra opção?" Sun Wukong respondeu: "A outra opção é usar água sem raiz para tomar o remédio." Os oficiais riram e disseram: "Isso é fácil de conseguir." Sun Wukong perguntou: "Como é fácil conseguir?" Os oficiais responderam: "Aqui, as pessoas costumam dizer que, para obter água sem raiz, basta pegar uma tigela, ir até um poço ou rio, pegar a água e, sem tocar no chão e sem olhar para trás, levá-la para o doente tomar o remédio. Isso é o que chamamos de 'água sem raiz'." Sun Wukong respondeu: "A água do poço ou do rio tem raízes. A verdadeira 'água sem raiz' é aquela que cai do céu e não toca o chão antes de ser usada."
Os oficiais disseram: "Isso também é fácil. Podemos esperar por um dia chuvoso para colher a água e tomar o remédio." Eles então agradeceram Sun Wukong e levaram o remédio de volta ao rei. O rei ficou muito feliz e imediatamente ordenou que os servos preparassem a água sem raiz. Os oficiais disseram: "O monge sagrado disse que a água sem raiz não é a do poço ou do rio, mas a água que cai do céu e não toca o chão." O rei então ordenou que um mensageiro fosse chamar o oficial responsável pelos rituais para pedir chuva. Os oficiais obedeceram e começaram a emitir os editais.
Enquanto isso, Sun Wukong, de volta ao Hui Tong Guan, chamou Zhu Bajie e disse: "Acabei de prometer que a água da chuva seria usada para tomar o remédio, mas, se não chover logo, como conseguiremos essa água? Acho que o rei é um governante virtuoso, então vamos ajudá-lo a obter um pouco de água para o remédio, o que acha?" Zhu Bajie perguntou: "Como vamos ajudar?" Sun Wukong respondeu: "Você ficará à minha esquerda como a Estrela Assistente, e Sha Wujing ficará à minha direita como a Estrela Ajudante. Vou invocar um pouco de água sem raiz para ele." O Grande Sábio então recitou encantamentos e, em pouco tempo, uma nuvem escura apareceu no céu oriental, movendo-se rapidamente para cima de suas cabeças. Uma voz foi ouvida da nuvem: "Grande Sábio, o Rei Dragão do Mar Oriental, Ao Guang, está aqui para vê-lo." Sun Wukong disse: "Não quero incomodá-lo, mas preciso que me ajude com um pouco de água sem raiz para que o rei possa tomar o remédio." O Rei Dragão respondeu: "Quando fui chamado, você não mencionou a necessidade de água. Eu vim sozinho, sem trazer meus instrumentos para chuva, nem trouxe vento, nuvens, trovões ou relâmpagos. Como posso fazer chover?" Sun Wukong disse: "Não precisamos de vento, nuvens, trovões ou relâmpagos agora, e nem de muita chuva. Só precisamos de um pouco de água para tomar o remédio." O Rei Dragão disse: "Se é assim, deixarei que dois espirros meus, com um pouco de saliva, sirvam de remédio." Sun Wukong, muito satisfeito, disse: "Ótimo, ótimo. Não precisa demorar, faça isso agora mesmo."
O velho dragão desceu a nuvem sobre o palácio, ocultou-se e expeliu uma névoa de saliva, que se transformou em uma chuva suave. Todos os ministros do reino exclamaram: "Nosso rei foi abençoado! Os céus nos deram uma chuva divina!" O rei então ordenou que utensílios fossem trazidos e que todos, dentro e fora do palácio, desde os oficiais mais altos até os servos mais humildes, recolhessem a água celestial para sua cura. Veja que todos os ministros, as concubinas, as damas da corte, as dançarinas e as servas se apressaram a pegar tigelas, pratos, copos e pires para recolher a chuva divina. O velho dragão permaneceu sobre o palácio, liberando a saliva até que se passasse cerca de uma hora, e então retornou ao mar após se despedir de Sun Wukong. Os ministros reuniram toda a água coletada, algumas tigelas contendo apenas uma ou duas gotas, outras três ou cinco gotas, e algumas não conseguiram coletar nada. No total, conseguiram encher três pequenas tigelas, que foram levadas ao trono. De fato, o aroma perfumado encheu o salão dourado e a fragrância se espalhou pelo pátio real.
O rei, então, se despediu de Tang Sanzang e levou as Pílulas de Ouro Preto junto com a água divina para seus aposentos. Primeiro, tomou uma pílula com uma tigela da água celestial; depois tomou a segunda pílula com outra tigela de água celestial; e, finalmente, tomou a terceira pílula com a última tigela de água celestial. Pouco tempo depois, seu estômago começou a fazer ruídos, como o som de um torno de corda, e ele precisou usar o penico três a cinco vezes. Após beber um pouco de mingau de arroz, ele se deitou na cama imperial. Duas concubinas examinaram o penico e viram uma grande quantidade de muco e fleuma, além de um aglomerado de arroz não digerido. As concubinas foram até a cama do rei e relataram: "Todos os resíduos da doença foram eliminados." O rei, ouvindo isso, ficou muito feliz e comeu mais um pouco de mingau.
Logo, ele começou a sentir o peito mais leve, a circulação de sangue e energia mais harmoniosa, e logo se sentiu revigorado, com força nas pernas. Ele se levantou da cama, vestiu suas roupas cerimoniais e subiu ao trono. Ao ver Tang Sanzang, ele imediatamente se ajoelhou em reverência. O mestre apressou-se em devolver a saudação. Após as saudações, o rei segurou a mão de Tang Sanzang e ordenou: "Rápido, prepare uma mensagem formal, na qual escreverei com minhas próprias mãos as palavras 'Reverências e Cabeça Curvada'. Em seguida, envie um oficial para convidar os três discípulos do Mestre. Ao mesmo tempo, prepare um banquete no Pavilhão Oriental e peça ao Ministério dos Banquetes que organize uma celebração em agradecimento." Os ministros seguiram as ordens: alguns prepararam a mensagem formal, enquanto outros organizaram o banquete. De fato, o reino se mobilizou rapidamente, e tudo foi concluído em um piscar de olhos.
Enquanto isso, Zhu Bajie, vendo os oficiais preparando a mensagem, disse alegremente: "Irmão, realmente é um remédio milagroso! Agora, eles vieram nos agradecer, tudo graças a você." Sha Wujing disse: "Segundo irmão, não fale assim. Como diz o ditado: 'Quando uma pessoa tem sorte, toda a família se beneficia.' Nós, que ajudamos a preparar o remédio, também temos mérito. Vamos aproveitar essa recompensa sem nos preocupar." E assim, os irmãos, felizes, foram juntos ao palácio para a celebração.
Os oficiais levaram Sun Wukong e seus irmãos ao Pavilhão Oriental, onde Tang Sanzang, o rei e os ministros já estavam preparados para o banquete. Sun Wukong, Zhu Bajie e Sha Wujing se curvaram respeitosamente diante de seu mestre. Em seguida, os oficiais também se juntaram a eles. Lá no alto, havia quatro mesas vegetarianas, todas com pratos requintados, e uma mesa de carnes, igualmente bem servida. Ao redor, havia entre quatrocentas e quinhentas mesas individuais, todas organizadas de maneira impecável. Como diz o ditado:
"Pratos raros com cem sabores, vinhos finos em mil copos,
Creme de leite e queijo delicado, carnes tenras e rubras,
Decorações exuberantes de flores, frutas exalando fragrância,
Doces em formas de dragões e leões, pães moldados em fênixes e companheiros.
Carnes de porco, cordeiro, frango, ganso, peixe, pato e mais,
Vegetais, brotos de bambu, cogumelos e orelhas-de-judas,
Sopas perfumadas, pães assados,
Arroz macio e mingau fresco de grãos,
Sopas com farinha perfumada, apimentadas e saborosas,
Todas as delícias continuamente servidas, doces e tentadoras."
O rei ergueu a taça real e, com suas próprias mãos, ofereceu a Tang Sanzang o lugar de honra. Tang Sanzang disse: "Sou apenas um humilde monge e não bebo álcool." O rei respondeu: "Esta é uma bebida especial, sem álcool. Que tal um gole, mestre?" Tang Sanzang replicou: "O consumo de qualquer tipo de bebida é proibido para um monge." O rei, um pouco desapontado, perguntou: "Se o mestre não bebe, com o que posso brindá-lo em sinal de respeito?" Tang Sanzang sugeriu: "Meus três discípulos podem beber em meu lugar." O rei ficou satisfeito com a solução e passou a taça dourada para Sun Wukong. Sun Wukong aceitou, fez uma reverência aos presentes e bebeu a taça. O rei, vendo que ele bebia com facilidade, ofereceu outra taça. Sun Wukong, sem recusar, bebeu mais uma. O rei sorriu e disse: "Beba uma terceira taça em nome dos Três Tesouros." Sun Wukong mais uma vez aceitou e bebeu. O rei então pediu que servisse mais uma taça, chamada de "Copo das Quatro Estações."
Zhu Bajie, que estava ao lado, viu que o vinho não lhe era oferecido e começou a salivar de desejo. Ao ver o rei insistindo para que Sun Wukong bebesse mais, ele não conseguiu se conter e disse em voz alta: "Majestade, o remédio que o curou foi graças a mim também, pois havia um ingrediente de cavalo nele..." Sun Wukong, temendo que Zhu Bajie revelasse demais, rapidamente entregou a taça a ele. Zhu Bajie pegou a taça e bebeu, mas permaneceu em silêncio. O rei, curioso, perguntou: "O que o monge queria dizer com 'ingrediente de cavalo'? Que tipo de cavalo?" Sun Wukong respondeu: "Meu irmão tem o hábito de falar demais. Ele queria dizer que um dos ingredientes do remédio era ma dou ling." O rei, intrigado, perguntou aos oficiais: "O que é ma dou ling e para que serve?" Um dos médicos da corte respondeu:
"Ma dou ling é amargo, frio e não tóxico.
É eficaz para acalmar a respiração e dissolver o catarro,
Alivia a obstrução e elimina os problemas internos,
Fortalece o corpo e acalma a tosse, trazendo alívio."
O rei, satisfeito, disse: "Foi bem usado, foi bem usado. Monge Zhu, por favor, beba mais uma taça." Zhu Bajie, sem dizer uma palavra, aceitou e bebeu três taças. O rei então ofereceu uma taça a Sha Wujing, que também bebeu três taças, e todos se acomodaram.
Depois de algum tempo, o rei ergueu uma grande taça e a ofereceu a Sun Wukong. Sun Wukong disse: "Majestade, por favor, sente-se. Eu, Sun Wukong, beberei conforme os costumes, sem recusar." O rei respondeu: "Sua bondade é tão grande quanto uma montanha, e minha gratidão é infinita. Por favor, aceite esta taça enquanto eu digo algumas palavras." Sun Wukong disse: "Diga o que tem a dizer, e eu beberei." O rei continuou: "Por muitos anos, fui afligido por uma doença causada por preocupações e medos. Mas graças ao seu remédio milagroso, estou curado." Sun Wukong riu e disse: "Ontem, ao examinar Vossa Majestade, percebi que sua doença era de fato causada por preocupações. Mas sobre o que estava tão preocupado?" O rei respondeu: "Há um ditado antigo que diz: 'Os segredos de família não devem ser divulgados.' No entanto, você é meu benfeitor, e desde que não zombe de mim, posso contar-lhe." Sun Wukong respondeu: "Como eu ousaria zombar? Por favor, fale sem receio." O rei então perguntou: "Monge, você passou por quantos reinos em sua jornada ao leste?" Sun Wukong respondeu: "Passamos por cinco ou seis reinos." O rei perguntou novamente: "E como são chamadas as rainhas nesses reinos?" Sun Wukong respondeu: "As rainhas são geralmente chamadas de 'Consorte Principal', 'Consorte Oriental', 'Consorte Ocidental'." O rei então disse: "Em meu reino, as consortes têm títulos especiais: a Consorte Principal é chamada de 'Palácio da Santidade Dourada', a Consorte Oriental é chamada de 'Palácio da Santidade de Jade', e a Consorte Ocidental é chamada de 'Palácio da Santidade de Prata'. Atualmente, apenas as consortes do Palácio de Jade e do Palácio de Prata estão no palácio." Sun Wukong perguntou: "E por que a Consorte do Palácio da Santidade Dourada não está no palácio?" O rei, com lágrimas nos olhos, respondeu: "Ela desapareceu há três anos."
Sun Wukong perguntou: "Para onde ela foi?" O rei respondeu: "Há três anos, durante o Festival do Barco-Dragão, eu e minhas consortes estávamos no pavilhão do jardim, comendo bolinhos de arroz, bebendo vinho de acônito e assistindo às corridas de barcos-dragão. De repente, um forte vento soprou, e no meio do céu apareceu um demônio que se autodenominava 'Supera Taizu'. Ele disse que vivia na Montanha Qilin, na Caverna Xiezhi, e que estava procurando uma esposa. Ao saber que minha Consorte do Palácio da Santidade Dourada era de beleza incomparável, ele exigiu que eu a entregasse. Se eu não o fizesse imediatamente, ele prometeu devorar primeiro a mim, depois meus ministros e, finalmente, exterminar todos os cidadãos da cidade. Naquela época, preocupado com meu povo e meu reino, fui forçado a entregar a Consorte do Palácio da Santidade Dourada, que foi levada pelo demônio em um instante. Desde então, vivi em constante medo e tristeza. Cada vez que comia, a comida ficava presa no meu estômago; e, atormentado por pensamentos incessantes dia e noite, desenvolvi essa doença que me aflige há três anos. Ontem, ao tomar seu remédio, expulsei tudo o que estava acumulado em meu corpo nos últimos três anos, e agora me sinto saudável e revigorado, como antes. Minha vida hoje foi restaurada graças ao monge sagrado, e a gratidão que sinto é imensa, como o peso de uma montanha!"
Sun Wukong, ao ouvir as palavras do rei, ficou muito contente e, em duas grandes goladas, bebeu o vinho da taça. Ele então sorriu e perguntou ao rei: "Vossa Majestade, vejo que foi afligido por grandes preocupações. Agora que se encontrou comigo, felizmente foi curado. Mas diga-me, deseja trazer de volta a Consorte do Palácio da Santidade Dourada?" O rei, com lágrimas nos olhos, respondeu: "Penso nela dia e noite, sem descanso, mas não há ninguém capaz de derrotar o demônio. Como poderia eu não querer que ela volte?" Sun Wukong respondeu: "Eu, Sun Wukong, posso ir com Vossa Majestade para subjugar esse demônio. O que acha?" O rei, emocionado, caiu de joelhos e disse: "Se puder salvar minha consorte, estou disposto a liderar minhas outras esposas e concubinas para fora da cidade, entregando todo o meu reino ao monge sagrado, para que você se torne o imperador." Zhu Bajie, ao ouvir essas palavras e ver o rei ajoelhado diante de um monge, não pôde conter uma gargalhada: "Este imperador perdeu a compostura! Como pode, por causa de uma esposa, desistir de seu reino e ajoelhar-se diante de um monge?"
Sun Wukong apressou-se a levantar o rei e perguntou: "Majestade, depois que o demônio levou a Consorte do Palácio da Santidade Dourada, ele voltou a aparecer?" O rei respondeu: "Ele levou a consorte no Festival do Barco-Dragão de três anos atrás. No outono daquele ano, ele voltou em outubro para exigir duas donzelas da corte, dizendo que elas serviriam minha consorte. Eu as entreguei. No ano seguinte, em março, ele voltou para buscar mais duas donzelas, e em julho, levou mais duas. Este ano, em fevereiro, ele apareceu novamente e levou outras duas. Não sei quando ele virá novamente." Sun Wukong perguntou: "Diante dessas visitas frequentes, vocês têm medo dele?" O rei respondeu: "Cada vez que ele aparece, sinto medo e temo que ele possa causar algum dano. No ano passado, em abril, mandei construir uma torre de refúgio contra demônios. Sempre que ouço o vento soprar, sei que ele está vindo, e eu e minhas consortes nos escondemos na torre." Sun Wukong disse: "Se Vossa Majestade não se importa, gostaria de visitar essa torre de refúgio." O rei imediatamente segurou Sun Wukong pela mão esquerda e o levou até a torre, seguido pelos oficiais. Zhu Bajie disse: "Irmão, você está quebrando as regras. Há uma mesa cheia de iguarias aqui e você quer sair correndo para ver uma torre? Que desperdício!" O rei, ao ouvir isso, sabendo que Zhu Bajie estava pensando em comida, ordenou que o oficial encarregado preparasse duas mesas vegetarianas e levasse para a torre de refúgio. Somente então Zhu Bajie parou de reclamar e, sorrindo, seguiu com Tang Sanzang e Sha Wujing para a torre.
Os oficiais conduziram o rei e Sun Wukong através do palácio até chegarem ao jardim imperial. Não havia sinais de torres ou pavilhões por lá. Sun Wukong perguntou: "Onde está a torre de refúgio?" Antes que o rei pudesse responder, dois eunucos apareceram carregando uma tábua quadrada de pedra pintada de vermelho. O rei disse: "Aqui está. Abaixo desta tábua, há uma câmara subterrânea de três metros de profundidade, dividida em nove salas. Em cada uma, há grandes jarros cheios de óleo, que alimentam lâmpadas acesas dia e noite. Quando ouço o som do vento, corro para dentro e me escondo, e os eunucos cobrem a entrada com a tábua de pedra." Sun Wukong riu: "Esse demônio realmente não quis machucar Vossa Majestade; se quisesse, como essa câmara subterrânea poderia protegê-lo?"
Enquanto falavam, uma rajada de vento surgiu do sul, levantando poeira por toda parte. Todos os oficiais, apavorados, começaram a murmurar: "Este monge tem uma língua amaldiçoada! Falou do demônio, e o demônio realmente apareceu!" O rei, apavorado, soltou a mão de Sun Wukong e correu para a câmara subterrânea, seguido por Tang Sanzang e os oficiais, que se esconderam imediatamente.
Zhu Bajie e Sha Wujing também quiseram se esconder, mas Sun Wukong segurou ambos pelos braços e disse: "Irmãos, não tenham medo. Vamos ver quem é esse demônio." Zhu Bajie, agitado, respondeu: "Que bobagem é essa? Para quê reconhecê-lo? Os oficiais se esconderam, nosso mestre se escondeu, o rei também, por que deveríamos ir? Que benefício isso nos traria?" O tolo tentava se soltar de todas as formas, mas Sun Wukong o segurou firmemente. Enquanto isso, no céu, uma figura demoníaca começou a aparecer. Veja como ele se parecia:
"Com um corpo de nove pés, feroz e aterrorizante,
Olhos como lanternas douradas, brilhando intensamente.
Orelhas grandes como leques, presas afiadas como pregos.
Cabelos vermelhos cercavam seu rosto, sobrancelhas flamejantes,
Narinas dilatadas, emitindo luz.
Poucos pelos de barba, vermelhos como fios de sangue,
Maçãs do rosto proeminentes, rosto cheio de cicatrizes.
Braços musculosos, mãos azuis como tinta,
Dez garras afiadas segurando uma lança.
Vestido com uma saia de pele de leopardo,
Descalço, cabelo desgrenhado, parecia um fantasma."
Sun Wukong olhou para ele e perguntou: "Sha Wujing, você o reconhece?" Sha Wujing respondeu: "Eu nunca o vi antes, como poderia reconhecê-lo?" Então, Sun Wukong perguntou: "Zhu Bajie, você o conhece?" Zhu Bajie respondeu: "Eu nunca compartilhei chá ou vinho com ele, e ele não é meu vizinho. Como eu poderia conhecê-lo?" Sun Wukong disse: "Ele se parece com o demônio de olhos dourados que guarda os portões sob o comando de Tianqi, do Monte Tai." Zhu Bajie disse: "Não, não é ele." Sun Wukong perguntou: "Como você sabe que não é?" Zhu Bajie respondeu: "Os demônios são seres sombrios, e só aparecem à noite, durante as horas de Shen, You, Xu e Hai (horário noturno). Ainda estamos na hora de Si (período da manhã), então como poderia ser um demônio? Mesmo que fosse um demônio, ele não viajaria nas nuvens. No máximo, poderia criar um pequeno redemoinho, mas como poderia gerar uma tempestade tão forte? Talvez ele seja mesmo o 'Supera Taizu'." Sun Wukong riu: "Você, tolo, pelo menos disse algo com sentido. Se for assim, vocês dois devem ficar aqui e me apoiar enquanto vou até ele perguntar seu nome, para podermos salvar a Consorte do Palácio da Santidade Dourada e trazê-la de volta ao rei." Zhu Bajie respondeu: "Vá se quiser, mas por favor, não mencione nossos nomes." Sun Wukong, sem responder, subiu aos céus em um feixe de luz. Como diz o ditado:
"Para proteger o reino, primeiro se cura o rei,
Para manter o caminho, é preciso eliminar o mal e o ódio."
Se você quiser saber como Sun Wukong se saiu em seu confronto com o demônio, se conseguiu derrotá-lo e salvar a Consorte do Palácio da Santidade Dourada, espere pelo próximo capítulo.
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arteriaemchamas · 2 months ago
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jpo 2
CAPÍTULO 18: EM ZHU ZI GUO, TANG SANZANG DISCUTE SOBRE VIDAS PASSADAS; SUN WUKONG APLICA SUA SABEDORIA ADQUIRIDA.
Obem verdadeiro recolhe todas as conexões; a fama se espalha pelos quatro continentes. A sabedoria e a luz conduzem à outra margem, enquanto o vento suave e as nuvens se formam no horizonte. Todos os Budas se reúnem, habitando para sempre na torre de jade por incontáveis outonos. Despedaçando o sonho efêmero dos humanos, com serenidade, limpam as impurezas mundanas, sem despertar preocupação.
Voltando à história, depois que o mestre e seus discípulos lavaram as imundícies nos becos, seguiram pelo caminho da tranquilidade. O tempo passava rapidamente, e novamente se encontravam no calor do verão. De fato:
As romãs do mar abrem suas esplêndidas flores, as folhas de lótus desabrocham seus verdes pratos. Em ambas as estradas, os salgueiros verdes escondem as andorinhas jovens, os viajantes evitam o calor, abanando-se com leques de seda.
Continuando seu caminho, de repente avistaram uma cidade ao longe. Tang Sanzang segurou as rédeas do cavalo e perguntou: "Discípulos, vejam, que lugar é aquele?" Sun Wukong respondeu: "Mestre, como você não sabe ler? Como conseguiu o decreto do Imperador Tang para sair da corte?" Tang Sanzang disse: "Desde jovem sou monge, e conheço todos os textos e escrituras. Como pode dizer que não sei ler?" Sun Wukong respondeu: "Se sabe ler, então como não reconhece as três grandes palavras escritas na bandeira amarela sobre os muros da cidade, e pergunta que lugar é esse?" Tang Sanzang repreendeu: "Seu macaco atrevido! A bandeira está sendo balançada pelo vento, mesmo que haja palavras, não dá para ver claramente." Sun Wukong disse: "Mas eu vi claramente." Zhu Bajie e Sha Wujing disseram: "Mestre, não dê ouvidos ao nosso irmão. De tão longe, nem mesmo a cidade está nítida, como ele poderia ver alguma inscrição?" Sun Wukong respondeu: "Não são as palavras 'Zhu Zi Guo'?" Tang Sanzang disse: "Zhu Zi Guo deve ser um reino ocidental, precisamos trocar os documentos de passagem." Sun Wukong disse: "Não há necessidade de discutir mais."
Pouco tempo depois, chegaram aos portões da cidade, desmontaram, atravessaram uma ponte e entraram pelas três camadas de portões. Era realmente uma capital imperial magnífica. Apenas observem:
As torres dos portões se erguem altas, com ameias alinhadas em fila. Em torno delas, água corrente flui livremente, enquanto montanhas se enfrentam ao norte e ao sul. Seis ruas e três mercados estão cheios de mercadorias, mil casas e dez mil lares prósperos. É realmente uma cidade imperial, uma capital grandiosa de um reino celestial. Mercadorias de terras distantes chegam, tributos de jade e seda enchem os armazéns. A paisagem se estende até montanhas distantes, os muros do palácio tocam o céu limpo. Três barreiras guardam suas chaves, desfrutando de paz e prosperidade por eras.
Enquanto o mestre e seus discípulos caminhavam pelas grandes ruas e mercados, viam pessoas dignas, bem vestidas e falando claramente, sem ser inferior ao mundo da Dinastia Tang. Mas, de repente, os comerciantes dos dois lados, ao verem Zhu Bajie com sua aparência grotesca, Sha Wujing com seu rosto negro e corpo alto, e Sun Wukong com seu rosto peludo e sobrancelhas protuberantes, largaram seus negócios e correram para olhar. Tang Sanzang apenas dizia: "Não causem problemas, baixem a cabeça e andem." Zhu Bajie obedeceu, enfiando seu focinho de lótus no manto; Sha Wujing não ousava levantar os olhos; apenas Sun Wukong olhava ao redor, seguindo de perto Tang Sanzang. Algumas pessoas mais informadas deram uma olhada e se afastaram, mas os desocupados e as crianças travessas riam e faziam barulho, jogando pedras e tijolos em Zhu Bajie para brincar. Tang Sanzang suava de nervosismo, apenas repetindo: "Não causem problemas." O tolo de Zhu Bajie não ousava levantar a cabeça.
Pouco tempo depois, ao virar uma esquina, avistaram um portal com as palavras "Hui Tong Guan" escritas. Tang Sanzang disse: "Discípulos, vamos entrar nesse escritório." Sun Wukong perguntou: "Entrar para quê?" Tang Sanzang respondeu: "O Hui Tong Guan é o local de encontros e comunicações de todo o mundo. Podemos usá-lo. Vamos descansar lá dentro, enquanto eu vou ver o rei, troco os documentos de passagem e depois saímos da cidade." Zhu Bajie, ao ouvir isso, tirou seu focinho, assustando dezenas de pessoas que os seguiam. Ele disse: "O mestre está certo, vamos nos esconder lá dentro para evitar que essa multidão continue a nos importunar." Assim, entraram no escritório, e a multidão começou a se dispersar.
No entanto, dentro do escritório havia dois altos funcionários, um principal e outro adjunto, que estavam no salão verificando os servos, preparando-se para receber um oficial. De repente, viram Tang Sanzang chegar, ficaram alarmados e perguntaram: "Quem é você? Para onde está indo?" Tang Sanzang juntou as mãos em reverência e respondeu: "Este pobre monge é um enviado da Dinastia Tang do Oriente, a caminho do Oeste para buscar as escrituras. Chegamos ao seu reino e não ousamos passar sem permissão. Temos documentos de passagem que precisam ser validados, e gostaríamos de descansar temporariamente neste alto escritório." Ao ouvir isso, os dois funcionários dispensaram os servos e, ajustando seus chapéus e cintos, desceram do salão para cumprimentar Tang Sanzang. Eles imediatamente ordenaram que preparassem um quarto para hóspedes, providenciando uma refeição simples e limpa. Tang Sanzang agradeceu. Os dois oficiais, então, saíram do salão levando seus servos. Os criados convidaram o mestre a descansar no quarto de hóspedes, e Tang Sanzang entrou. Sun Wukong, insatisfeito, disse: "Esses caras são preguiçosos, por que não deixaram o velho Sun ficar no salão principal?" Tang Sanzang respondeu: "Aqui eles não estão sob a jurisdição da nossa Dinastia Tang, e nosso reino não está aliado a este. Além disso, frequentemente há superiores e viajantes passando, então não seria apropriado nos receber aqui." Sun Wukong respondeu: "Se é assim, eu insisto que nos recebam aqui."
Enquanto falavam, um criado trouxe a refeição, que consistia em uma tigela de arroz branco, uma tigela de farinha branca, dois punhados de vegetais verdes, quatro pedaços de tofu, dois bolinhos de massa, uma tigela de brotos secos e uma tigela de orelhas-de-madeira. Tang Sanzang ordenou que seus discípulos pegassem a refeição e agradecessem ao criado. O criado disse: "No quarto ocidental, há um fogão limpo e madeira disponível, sintam-se à vontade para preparar a comida." Tang Sanzang perguntou: "Deixe-me perguntar: o rei está no palácio?" O criado respondeu: "Nosso venerável rei não tem comparecido às audiências há muito tempo. Hoje, por ser um dia auspicioso, ele está reunido com muitos ministros para discutir a publicação de um edital. Se você precisar trocar os documentos de passagem, vá agora, ainda dá tempo; amanhã já não será possível, e não sabemos quanto tempo terá que esperar." Tang Sanzang disse: "Wukong, vocês preparem a refeição vegetariana aqui, enquanto eu vou rapidamente validar os documentos de passagem e voltarei para comer e continuarmos nossa jornada." Zhu Bajie rapidamente tirou a túnica com os documentos de passagem. Tang Sanzang ajeitou suas vestes e entrou no palácio, instruindo apenas que seus discípulos não saíssem para causar problemas.
Em pouco tempo, Tang Sanzang já havia chegado em frente ao Pavilhão das Cinco Fênix. Não há como descrever a grandiosidade dos salões, a magnificência dos pavilhões e a beleza da arquitetura. Ao chegar do lado de fora da Porta Principal, pediu a um oficial que transmitisse sua mensagem ao rei, informando que desejava trocar os documentos de passagem. O oficial foi até os degraus de jade e comunicou: "Há um monge enviado da Dinastia Tang do Oriente, a caminho do Templo do Trovão no Oeste, em busca de sutras. Ele deseja trocar os documentos de passagem e aguarda instruções." O rei, ao ouvir isso, ficou contente e disse: "Eu estive doente por muito tempo e não tenho subido ao trono. Hoje, ao convocar os médicos, apareceu um monge erudito em nosso reino." Imediatamente, ordenou que o monge fosse trazido até os degraus. Tang Sanzang se prostrou em reverência. O rei, então, ordenou que ele fosse levado ao salão dourado e que se sentasse, instruindo o Ministério dos Banquetes a preparar uma refeição vegetariana. Tang Sanzang agradeceu a graça e apresentou os documentos de passagem.
Depois de examiná-los, o rei ficou extremamente feliz e perguntou: "Mestre, na Dinastia Tang, quantos imperadores reinaram? Quantos ministros sábios serviram? E por que o rei Tang ficou doente e pediu que você viajasse por montanhas e rios para buscar as escrituras?" O venerável mestre, ao ouvir a pergunta, inclinou-se e respondeu: "Quanto à nossa terra:
Durante o governo dos Três Soberanos, o mundo foi pacificado; durante o governo dos Cinco Imperadores, as regras foram estabelecidas. Yao e Shun mantiveram suas posições, enquanto Yu e Tang governaram com benevolência. Na Dinastia Zhou, os príncipes sustentavam o universo. Fortes oprimiam os fracos e se dividiam em estados soberanos. Dezoito estados formaram o reino, mas as fronteiras permaneceram em caos. Mais tarde, os doze estados restantes trouxeram paz ao mundo. Mas, como não havia cavalos e carruagens, eles acabaram se engolindo uns aos outros. Sete potências lutaram por supremacia, e os Seis Estados caíram diante de Qin. O céu criou Lu e Pei, cada um abrigando intenções maliciosas. As montanhas e rios foram herdados pela Dinastia Han, e a lei foi reverenciada. Os Han passaram o poder para os Sima, e os Jin se dividiram em caos. O norte e o sul foram divididos em doze, e assim surgiram as dinastias Song, Qi, Liang e Chen. Os ancestrais sucederam uns aos outros, e o grande Sui ascendeu à verdade. Sem uma política justa, o sofrimento do povo aumentou. Nosso rei, da família Li, estabeleceu a Dinastia Tang. O fundador do império, Gaozu, já faleceu, e agora temos o imperador Taizong no trono. Sob seu governo, os rios estão calmos, e a moral é benevolente. A razão para minha jornada é que, ao norte da cidade de Chang'an, havia um dragão de água que causou uma seca, diminuindo as chuvas necessárias. Ele apareceu em um sonho e pediu ao rei para salvá-lo. O rei prometeu perdoá-lo e convocou seus ministros. Enquanto jogava xadrez no palácio, o ministro sonhou que cortava a cabeça do dragão."
Ao ouvir isso, o rei de Zhu Zi Guo suspirou e perguntou: "Mestre, de onde veio esse ministro?" Tang Sanzang respondeu: "Ele é o primeiro-ministro de nosso rei, seu nome é Wei Zheng. Ele conhece os céus, entende a terra, distingue o yin do yang, e é um grande auxiliar na estabilidade do país. Ele sonhou que decapitava o dragão do Rio Jing, e o dragão denunciou no submundo que o rei havia prometido salvá-lo, mas permitiu que ele fosse morto. Por isso, nosso rei ficou gravemente doente. Wei Zheng escreveu uma carta ao juiz do submundo, Cui Jue, e pediu ao rei que a levasse com ele. Após a morte do rei, três dias depois, ele voltou à vida. Foi graças a Wei Zheng que o juiz Cui Jue corrigiu os registros e acrescentou vinte anos à vida do rei. Agora, o rei está organizando um grande festival aquático e terrestre, e por isso enviou este humilde monge em uma longa jornada para buscar as escrituras sagradas, a fim de redimir o sofrimento e elevar as almas ao céu." O rei de Zhu Zi Guo suspirou novamente e disse: "Realmente, é uma grande nação celestial, com um rei justo e ministros sábios. Veja como eu estou doente há tanto tempo, e nenhum de meus ministros pode me salvar." O mestre, ao ouvir isso, olhou furtivamente e viu que o rei tinha o rosto amarelo, estava magro, fraco e parecia exausto. O mestre estava prestes a perguntar algo quando um oficial do Ministério dos Banquetes anunciou que a refeição estava pronta para Tang Sanzang. O rei ordenou: "Preparem a refeição no Salão Xiang, e sirvam a mesma comida que a minha para o mestre." Tang Sanzang agradeceu a graça e foi com o rei para compartilhar a refeição, e não se fala mais disso.
Enquanto isso, Sun Wukong estava no Hui Tong Guan com Sha Wujing, preparando o chá e as refeições, e organizando os vegetais. Sha Wujing disse: "O chá e o arroz são fáceis de preparar, mas os vegetais são mais difíceis." Sun Wukong perguntou: "Por quê?" Sha Wujing respondeu: "Não temos óleo, sal, molho de soja ou vinagre." Sun Wukong disse: "Tenho algumas moedas comigo, mande Zhu Bajie ir ao mercado comprar." O porco preguiçoso respondeu: "Eu não ouso ir. Minha aparência feia pode causar problemas, e o mestre vai me culpar." Sun Wukong disse: "É uma transação justa, você não está pedindo esmolas nem roubando, que mal pode haver?" Zhu Bajie disse: "Você não viu? Quando mostrei meu rosto no portão, assustei mais de dez pessoas; se eu for ao mercado, quem sabe quantas pessoas vou assustar." Sun Wukong perguntou: "Você só viu a multidão, mas prestou atenção ao que estão vendendo no mercado?" Zhu Bajie respondeu: "O mestre só mandou que eu mantivesse a cabeça baixa e evitasse problemas, então realmente não vi nada." Sun Wukong disse: "Não preciso falar das lojas de vinho, arroz, moinhos e mercadorias variadas; há também ótimas casas de chá, lojas de macarrão, grandes padarias, restaurantes com ótimas sopas, temperos excelentes, bons vegetais, além de deliciosos doces, bolos, pastelaria e muitas outras coisas boas. Que tal eu ir comprar algo para você?" O porco, ao ouvir isso, começou a salivar e engoliu em seco, saltando e dizendo: "Irmão, desta vez eu te incomodo, mas na próxima eu que pago a conta." Sun Wukong sorriu secretamente e disse: "Sha Wujing, prepare bem o arroz enquanto vamos comprar os ingredientes." Sha Wujing, sabendo que era uma brincadeira, respondeu de boa vontade: "Vão, mas comprem bastante para que possamos comer à vontade." O porco pegou uma tigela e saiu com Sun Wukong. Dois oficiais perguntaram: "Onde vai, monge?" Sun Wukong respondeu: "Vamos comprar os ingredientes." Um dos oficiais disse: "Vá por esta rua para o oeste, vire na esquina em direção ao tambor, e na loja de mercadorias da família Zheng, você encontrará óleo, sal, molho de soja, vinagre, gengibre, pimenta e chá, tudo o que precisar."
Os dois, de mãos dadas, seguiram em direção ao oeste da rua. Sun Wukong passou por várias casas de chá e restaurantes, mas não comprou nem comeu nada, mesmo quando parecia conveniente. Zhu Bajie então disse: "Irmão, vamos comprar algo por aqui e acabar logo com isso." Sun Wukong, que estava apenas brincando com ele, respondeu: "Irmão, você é tão impaciente. Vamos caminhar mais um pouco e escolher um lugar maior para comprar comida." Enquanto conversavam, mais pessoas começaram a segui-los, curiosas para vê-los. Logo chegaram perto da torre do tambor, onde havia uma grande multidão de pessoas, tão apertadas que enchiam a rua, obstruindo o caminho. Zhu Bajie, ao ver isso, disse: "Irmão, eu não vou mais. Há muita gente barulhenta ali. Tenho medo que estejam prendendo monges, e se eles pegarem um estranho como eu, o que farei?" Sun Wukong respondeu: "Que bobagem! Monges não estão infringindo nenhuma lei, por que nos prenderiam? Vamos passar por essa multidão e ir até a loja da família Zheng comprar o que precisamos." Zhu Bajie disse: "Esqueça, não quero causar problemas. Se eu me espremer no meio dessa multidão, posso acidentalmente acertar alguém com minhas orelhas, e se eu derrubar e matar alguém, serei responsabilizado!" Sun Wukong disse: "Se é assim, fique aqui junto ao muro, espere enquanto eu vou e volto com a comida para você, inclusive com macarrão vegetariano e bolos assados." O porco, então, entregou a tigela para Sun Wukong, encostou-se no muro com o rosto virado e não se mexeu mais.
Sun Wukong foi até a torre, onde realmente havia uma grande aglomeração. Ele se espremeu pelo meio das pessoas até conseguir chegar perto o suficiente para ver o que estava acontecendo. Descobriu que o que atraía tanta gente era um edital real afixado na parede, que muitas pessoas estavam curiosas para ler. Ele usou seus olhos penetrantes para examinar o edital, que dizia:
"O rei de Zhu Zi Guo, desde que assumiu o trono, tem mantido a paz nos quatro cantos e garantido a segurança do povo. Contudo, recentemente, um infortúnio caiu sobre o reino, e o rei adoeceu gravemente, sem que nenhum remédio tenha conseguido curá-lo. O hospital real já selecionou os melhores tratamentos, mas sem sucesso. Portanto, este edital convida todos os sábios médicos do mundo, de qualquer parte, seja do norte, do leste, ou de terras estrangeiras. Se houver alguém capaz de curar o rei, será bem recompensado, com a promessa de dividir o reino. Este é o motivo deste edital."
Após ler, Sun Wukong ficou bastante animado e disse para si mesmo: "Como dizem os antigos: 'Agir traz fortuna.' Ainda bem que não fiquei sentado à toa no alojamento. Não precisamos mais comprar temperos, vou me passar por médico e brincar um pouco."
O Grande Sábio, então, se curvou, largou a tigela, pegou um punhado de terra e jogou-a para cima, recitando um encantamento e usando uma técnica de invisibilidade. Com um movimento rápido, arrancou o edital da parede, e, usando sua respiração mágica, soprou uma forte rajada de vento que dispersou a multidão. Ele, então, voltou rapidamente ao lugar onde Zhu Bajie estava esperando. Viu que o porco estava encostado no muro, parecendo que estava dormindo. Sun Wukong não o acordou, apenas dobrou o edital e o colocou discretamente no bolso de Zhu Bajie, antes de voltar para o Hui Tong Guan sem dizer nada.
Entretanto, na torre, as pessoas notaram que, quando o vento começou, todas cobriram suas cabeças e fecharam os olhos. Quando o vento passou, perceberam que o edital havia desaparecido, e todos ficaram assustados. O edital havia sido afixado por doze eunucos e doze oficiais que o haviam trazido de manhã cedo, e que agora, ao verem o edital desaparecer, ficaram apavorados e começaram a procurá-lo. De repente, viram um pedaço de papel saindo do bolso de Zhu Bajie. As pessoas se aproximaram e perguntaram: "Você arrancou o edital?" O porco, ao ouvir isso, levantou a cabeça abruptamente, o que assustou tanto os oficiais que alguns tropeçaram e caíram no chão. Ele tentou sair, mas foi agarrado por algumas pessoas corajosas que disseram: "Você arrancou o edital que convocava médicos, agora deve ir ao palácio curar nosso rei. Onde pensa que vai?" Zhu Bajie, confuso e assustado, disse: "Seu filho pode ter arrancado o edital, mas seu neto é quem sabe como curar doenças." Os oficiais disseram: "O que você está escondendo no bolso?" O porco olhou para baixo e viu que realmente havia um pedaço de papel em seu bolso. Ao abri-lo e ver o que era, começou a ranger os dentes e disse: "Aquele macaco maldito vai me matar!" Ele queria rasgar o papel, mas foi rapidamente detido pelas pessoas ao redor, que disseram: "Você está louco? Este é o edital real, ninguém ousa destruí-lo! Já que está no seu bolso, você deve ter habilidades médicas. Venha conosco imediatamente." Zhu Bajie gritou: "Vocês não entendem. Eu não arranquei o edital, foi meu irmão Sun Wukong quem o fez. Ele secretamente colocou no meu bolso e depois me deixou aqui. Se vocês quiserem esclarecer isso, vamos atrás dele juntos." As pessoas disseram: "Que bobagem é essa? Você arrancou o edital, e agora quer que procuremos outra pessoa? Não importa, vamos levá-lo ao rei." Sem se importar se ele estava falando a verdade ou não, as pessoas começaram a empurrar e puxar Zhu Bajie. Mas o porco ficou imóvel, como se estivesse enraizado no chão, e nem mesmo dez pessoas conseguiram movê-lo. Zhu Bajie disse: "Vocês não sabem o que estão fazendo. Continuem puxando, e se eu ficar irritado, vocês vão ver!"
Pouco tempo depois, a confusão atraiu a atenção dos moradores, que se reuniram ao redor. Entre eles, havia dois eunucos idosos que disseram: "Você tem uma aparência estranha e uma voz diferente, de onde você é e por que está causando essa confusão?" Zhu Bajie respondeu: "Somos enviados da Dinastia Tang do Oriente, a caminho do Oeste para buscar as escrituras. Meu mestre é o irmão do imperador Tang, e agora ele está no palácio para trocar os documentos de passagem. Eu e meu irmão viemos aqui comprar temperos, mas como vi que havia muita gente na torre, não me atrevi a ir até lá. Meu irmão me disse para esperar aqui. Ele viu o edital e, com uma rajada de vento, o arrancou e colocou no meu bolso sem que eu percebesse, depois foi embora." Um dos eunucos disse: "Eu vi um monge gordo de rosto branco correndo para o portão do palácio antes, deve ser o seu mestre?" Zhu Bajie respondeu: "Sim, é ele." O eunuco perguntou: "E para onde foi seu irmão?" Zhu Bajie respondeu: "Somos quatro viajantes. Meu mestre foi trocar os documentos de passagem, e os outros três, junto com a bagagem e os cavalos, estão descansando no Hui Tong Guan. Meu irmão me enganou e voltou para o alojamento." O eunuco disse: "Oficiais, não o puxem. Vamos todos ao alojamento, e tudo será esclarecido." Zhu Bajie respondeu: "Vocês dois são realmente sábios." Os oficiais disseram: "Este monge não conhece os costumes, como pode chamar os eunucos de 'vovós'?" Zhu Bajie riu e disse: "Não sejam tolos! Eles são homens que perderam sua masculinidade, se não posso chamá-los de 'vovós', deveria chamá-los de quê?" As pessoas disseram: "Chega de brincadeiras, vamos encontrar seu irmão."
A confusão nas ruas era grande, com pelo menos trezentas a quinhentas pessoas acompanhando Zhu Bajie até a porta do Hui Tong Guan. Zhu Bajie então disse: "Senhores, parem por aqui. Meu irmão mais velho não é como eu, que permito que façam piadas. Ele é um homem sério e vigoroso. Quando o virem, devem saudá-lo com grande respeito, chamando-o de 'Senhor Sun'. Somente assim ele os atenderá; caso contrário, ele mudará de expressão, e então as coisas não sairão como esperado." Todos os eunucos e oficiais disseram: "Se seu irmão tem tais habilidades, curar o rei merece, de fato, metade do reino. Nós, portanto, devemos nos prostrar diante dele."
Os curiosos continuaram a fazer barulho do lado de fora do portão. Zhu Bajie, liderando os eunucos e oficiais, entrou no Hui Tong Guan. Assim que entraram, ouviram Sun Wukong e Sha Wujing na sala de hóspedes, rindo e conversando sobre o episódio de arrancar o edital. Zhu Bajie correu até eles e, sem demora, começou a reclamar: "Você é uma pessoa de verdade? Me enganou para ir comprar macarrão vegetariano e bolos assados para comer, mas tudo isso era uma mentira! E ainda fez um vendaval, arrancou aquele edital real e escondeu em meu bolso, me fazendo passar por um farsante. Que tipo de irmão faz isso?" Sun Wukong riu e respondeu: "Seu tolo, deve ter se perdido e ido a outro lugar. Eu passei pela torre do tambor, comprei os temperos e voltei correndo para te encontrar, mas você não estava lá, então voltei direto para cá. Onde eu arranquei algum edital?" Zhu Bajie retrucou: "Os oficiais que estavam vigiando o edital estão bem aqui!" Antes que pudesse terminar, os eunucos e oficiais se prostraram e disseram: "Senhor Sun, hoje nosso rei foi abençoado; o céu enviou você para nos ajudar. Certamente, com suas grandes habilidades, e aplicando a técnica dos 'três braços quebrados', o rei será curado, e o reino será dividido com você." Ao ouvir isso, Sun Wukong imediatamente mudou de expressão, pegou o edital das mãos de Zhu Bajie e, voltando-se para o grupo, disse: "Vocês são os oficiais que estavam cuidando do edital?" Os eunucos se prostraram e disseram: "Nós somos servos da Câmara Cerimonial, e esses são oficiais da Guarda Imperial." Sun Wukong disse: "Eu realmente arranquei o edital, e foi por isso que enviei meu irmão para chamar vocês. Como o rei está doente, há um ditado que diz: 'Não se vende remédio levianamente, e não se busca tratamento sem necessidade.' Voltem e digam ao rei que ele deve vir pessoalmente me convidar. Só assim eu poderei usar minhas habilidades para curá-lo." Os eunucos, assustados com suas palavras, disseram: "Se você fala com tanta confiança, deve ter grandes habilidades. Parte de nós ficará aqui esperando, enquanto a outra parte irá ao palácio relatar ao rei."
Quatro eunucos e seis oficiais imediatamente foram ao palácio, sem esperar por uma convocação oficial, e relataram ao rei: "Majestade, temos grandes notícias!" O rei, que estava conversando com Tang Sanzang após o almoço, perguntou: "De que se trata?" Os eunucos responderam: "Esta manhã, levamos o edital real e o afixamos sob a torre do tambor. Um monge sagrado, chamado Sun, que veio do Oriente da Dinastia Tang em busca das escrituras, arrancou o edital e está agora no Hui Tong Guan. Ele diz que o rei deve ir pessoalmente convidá-lo, pois ele possui a habilidade de curar qualquer doença com um simples toque. Por isso, viemos informar Vossa Majestade." O rei, ouvindo isso, ficou muito contente e perguntou a Tang Sanzang: "Mestre, quantos discípulos talentosos você tem?" Tang Sanzang, juntando as mãos, respondeu: "Este humilde monge tem três discípulos, todos travessos." O rei perguntou: "Qual deles tem habilidades médicas?" Tang Sanzang respondeu: "Para ser honesto, nenhum deles tem qualquer conhecimento sobre medicina. Eles são apenas camponeses rudes, que carregam fardos, cuidam dos cavalos, atravessam rios e montanhas, e me acompanham em terrenos difíceis. Em situações perigosas, podem subjugar demônios e monstros, mas nenhum deles conhece as propriedades das ervas medicinais." O rei disse: "Mestre, não precisa ser tão modesto. Hoje, o destino nos uniu, e considero isso uma grande bênção. Se seus discípulos não conhecem medicina, por que um deles arrancou meu edital e insistiu que eu fosse pessoalmente convidá-lo? Com certeza ele possui habilidades curativas." E ordenou: "Ministros, estou fraco e cansado, não posso viajar de carruagem. Vocês devem ir em meu nome, junto com todos os oficiais, até o Hui Tong Guan e convidar o Mestre Sun para vir examinar minha condição. Quando o encontrarem, não sejam desrespeitosos, tratem-no com a reverência devida a um santo monge, e sigam os protocolos de um soberano e seus ministros."
Os ministros receberam a ordem e, junto com os eunucos e oficiais que cuidavam do edital, foram ao Hui Tong Guan, onde se ajoelharam em fileiras. Zhu Bajie, assustado, escondeu-se em um dos quartos laterais, enquanto Sha Wujing se encostou discretamente na parede. O Grande Sábio, Sun Wukong, permaneceu sentado calmamente no meio da sala, sem se mover. Zhu Bajie, em silêncio, lamentou: "Esse macaco vai acabar nos matando. Como ele pode deixar todos esses oficiais se prostrarem sem sequer responder com uma saudação, nem mesmo se levantando?" Pouco tempo depois, os oficiais terminaram suas reverências e, divididos em fileiras, disseram: "Santo Monge Sun, nós somos ministros do rei de Zhu Zi Guo. Por ordem do rei, viemos com grande reverência convidar o Santo Monge para ir ao palácio e tratar a enfermidade do rei." Sun Wukong, então, levantou-se e perguntou: "Por que o rei não veio pessoalmente?" Os ministros responderam: "Nosso rei está fraco e sem forças, por isso não pode viajar de carruagem. Ele nos enviou para, em seu nome, convidar o Santo Monge com as devidas reverências." Sun Wukong disse: "Se é assim, então, por favor, conduzam-me até lá." Os ministros, em suas respectivas posições, formaram uma procissão e começaram a se mover. Sun Wukong arrumou suas roupas e levantou-se. Zhu Bajie disse: "Irmão, por favor, não nos envolva nisso." Sun Wukong respondeu: "Eu não vou envolver vocês, só preciso que vocês dois recolham os remédios." Sha Wujing perguntou: "Que remédios?" Sun Wukong respondeu: "Qualquer pessoa que trouxer remédios, receba-os e guarde-os para mim. Vou precisar deles quando voltar." Ambos concordaram com a tarefa.
Sun Wukong e os oficiais chegaram rapidamente ao palácio. Os ministros foram na frente e informaram o rei, que levantou a cortina de pérolas, arregalou os olhos de dragão e, com uma voz majestosa, perguntou: "Quem é o Santo Monge Sun?" Sun Wukong deu um passo à frente e, com uma voz poderosa, respondeu: "Eu sou Sun Wukong." O rei, ao ouvir sua voz severa e ao ver sua aparência estranha, ficou tão assustado que caiu na cama imperial. As damas de companhia e os eunucos correram para ajudá-lo a entrar novamente no palácio, enquanto ele exclamava: "Isso vai me matar de susto!" Os oficiais ficaram zangados com Sun Wukong e disseram: "Como pode um monge ser tão rude e atrevido? Como ousa arrancar o edital?"
Sun Wukong riu e respondeu: "Vocês estão me culpando injustamente. Se vocês continuarem sendo tão lentos, a doença do seu rei não vai melhorar nem em mil anos." Os ministros replicaram: "Quantos anos de vida um homem pode ter? Mesmo se fossem mil anos, e ele ainda não estivesse curado?" Sun Wukong respondeu: "Agora ele é um rei doente. Se morrer, será um fantasma doente, e na próxima vida ainda será uma pessoa doente. Isso não significa que a doença dele nunca será curada, mesmo em mil anos?" Os ministros, irritados, disseram: "Que monge ignorante e desrespeitoso! Como ousa falar tantas bobagens?" Sun Wukong riu e disse: "Não é bobagem. Ouçam-me:
A medicina é uma arte sutil e profunda, requer que o coração esteja em harmonia.
Observar, ouvir, perguntar e tocar são os quatro métodos fundamentais, e sem um deles, o diagnóstico não é completo:
Primeiro, observa-se a vitalidade, cor da pele, gordura, magreza, postura e sono;
Segundo, ouve-se a voz, se é clara ou rouca, e presta-se atenção ao que o paciente diz, se está em seu juízo perfeito ou não;
Terceiro, pergunta-se há quanto tempo a doença persiste, como é a alimentação e as excreções;
Quarto, apalpa-se o pulso para entender os meridianos, se são superficiais ou profundos, internos ou externos.
Se eu não observar, ouvir, perguntar e tocar, você não terá esperança de recuperação nesta vida."
Entre os oficiais presentes, havia um médico da corte que, ao ouvir isso, elogiou Sun Wukong diante dos demais: "Este monge tem razão. Até os imortais, ao diagnosticar uma doença, devem observar, ouvir, perguntar e tocar. Isso demonstra que ele realmente domina a arte médica."
Os ministros aceitaram essas palavras e pediram que um servo fosse relatar ao rei: "O monge deseja usar os métodos de observação, audição, inquirição e palpação para diagnosticar a doença e administrar a medicação." O rei, ainda deitado na cama imperial, disse: "Mandem-no embora! Não quero ver ninguém!" O servo saiu do palácio e disse a Sun Wukong: "O rei ordenou que você vá embora, pois ele não pode ver ninguém." Sun Wukong respondeu: "Se ele não pode ver ninguém, eu posso diagnosticar o pulso através do fio de seda." Os ministros ficaram secretamente animados e disseram: "Diagnosticar através do fio de seda é algo que já ouvimos falar, mas nunca vimos. Vamos relatar isso ao rei novamente." O servo entrou novamente no palácio e disse: "Majestade, o monge Sun não precisa ver Vossa Majestade pessoalmente; ele pode diagnosticar o pulso através do fio de seda." O rei, pensando consigo mesmo, disse: "Estou doente há três anos e nunca tentei isso antes. Convoque-o para entrar." O servo imediatamente transmitiu a ordem: "O rei permitiu que o monge Sun realizasse o diagnóstico através do fio de seda. Traga-o rapidamente para o palácio."
Sun Wukong, então, entrou no salão do trono. Tang Sanzang, ao vê-lo, repreendeu: "Seu macaco atrevido, você está me causando muitos problemas!" Sun Wukong riu e disse: "Querido mestre, eu estou criando uma oportunidade para você, e você diz que estou causando problemas?" Tang Sanzang gritou: "Você está comigo há tantos anos, quando foi que eu vi você curar alguém? Você não conhece as propriedades das ervas, nunca leu livros de medicina, como pode ser tão audacioso a ponto de causar esse desastre?" Sun Wukong riu e respondeu: "Mestre, você realmente não entende. Eu tenho alguns métodos herbais que podem curar doenças graves, e estou confiante de que vou curá-lo. Mesmo que eu acabe matando alguém, o máximo que podem me acusar é de ser um médico incompetente, mas isso não é motivo para se preocupar! Não se preocupe, não se preocupe, sente-se e veja como eu curo." Tang Sanzang respondeu: "Quando você já leu o Suwen, o Nanjing, o Bencao ou o Mai Jue? Como pode falar em diagnóstico através do fio de seda?" Sun Wukong riu e disse: "Eu tenho fios de ouro no meu corpo, mas você nunca viu." Então, ele estendeu a mão para baixo, arrancou três fios de cabelo de sua cauda, torceu-os juntos e gritou: "Transformem-se!" Imediatamente, os fios de cabelo se transformaram em três fios de seda, cada um com dois zhang e quatro chi de comprimento (cerca de 7,2 metros), ajustados aos 24 meridianos. Sun Wukong segurou-os na mão e disse a Tang Sanzang: "Estes são os meus fios de ouro." Um dos eunucos presentes disse: "Por favor, monge, deixe de falar e vá ao palácio realizar o diagnóstico." Sun Wukong se despediu de Tang Sanzang e seguiu o eunuco até o palácio para examinar a doença do rei.
De fato, há segredos no coração que podem curar um reino, e habilidades ocultas que prolongam a vida.
O que Sun Wukong descobrirá sobre a doença do rei e que remédios ele usará? Para saber, acompanhe o próximo capítulo.
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arteriaemchamas · 2 months ago
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jpo 2
CAPÍTULO 17: RESGATE EM TUOLUO, ESTABILIDADE NA MEDITAÇÃO; PURIFICAÇÃO DAS IMPUREZAS, CLAREZA NO CAMINHO
Continuando a história, Tang Sanzang e seus três discípulos deixaram o Pequeno Paraíso Ocidental e seguiram em frente, alegres. Após um mês de viagem, já era primavera, e as flores estavam em plena floração. Ao passarem por algumas áreas de floresta, notaram que tudo estava verde e exuberante, mas uma tempestade repentina trouxe o entardecer. Tang Sanzang puxou as rédeas do cavalo e disse: "Discípulos, o dia está acabando. Por qual caminho devemos seguir para encontrar abrigo?" Sun Wukong riu e respondeu: "Não se preocupe, mestre. Mesmo que não encontremos um lugar para passar a noite, nós três temos nossas habilidades. Podemos pedir a Zhu Bajie para cortar grama, Sha Wujing para derrubar alguns pinheiros, e eu, o velho Sun, posso construir uma cabana de palha. Podemos ficar bem acomodados na estrada, sem pressa." Zhu Bajie interveio: "Irmão, este não é o lugar ideal para acampar. A montanha está cheia de tigres, leopardos, lobos e insetos venenosos. Além disso, há espíritos malignos e demônios por toda parte. Durante o dia já é difícil atravessá-la, como poderíamos passar a noite aqui?"
Sun Wukong retrucou: "Zhu Bajie, você não aprende mesmo. Não é por me gabar, mas enquanto eu tiver este bastão em minhas mãos, mesmo que o céu caia, eu o sustentarei."
Enquanto os discípulos conversavam, de repente avistaram uma vila ao longe. Sun Wukong exclamou: "Ótimo, encontramos um lugar para passar a noite!" Tang Sanzang perguntou: "Onde está?" Sun Wukong apontou: "Ali, entre as árvores. Não é uma casa? Vamos até lá pedir abrigo por uma noite e continuar nossa jornada ao amanhecer." Tang Sanzang, contente, acelerou o cavalo até a entrada da vila, onde desmontou. Ao chegar, viu que o portão estava bem fechado. Tang Sanzang bateu na porta e disse: "Abra a porta, abra a porta." De dentro, saiu um velho homem, apoiado em um cajado, vestindo roupas simples e usando um chapéu preto. Ele abriu a porta e perguntou: "Quem está aí fazendo tanto barulho?" Tang Sanzang juntou as mãos em saudação e disse humildemente: "Caro senhor, sou um monge vindo do Leste, a caminho do Oeste para buscar escrituras. Chegamos a este lugar ao anoitecer e viemos pedir abrigo em sua casa por uma noite. Agradeceríamos muito se pudesse nos acomodar."
O velho respondeu: "Monge, se você está indo para o Oeste, saiba que o caminho é difícil. Este lugar é chamado de Pequeno Paraíso Ocidental, mas para chegar ao Grande Paraíso Ocidental, a jornada é muito longa. E nem se fala nas dificuldades que você enfrentará ao longo do caminho; só este lugar já é difícil de atravessar." Tang Sanzang, preocupado, perguntou: "Por que é tão difícil?" O velho explicou: "A cerca de trinta quilômetros a oeste desta vila, há um desfiladeiro chamado Desfiladeiro dos Caquis Ralos, e a montanha é conhecida como Montanha das Sete Excelências." Tang Sanzang perguntou: "Por que é chamada de Montanha das Sete Excelências?" O velho respondeu: "A montanha se estende por oitocentos quilômetros, e está repleta de caquizeiros. Dizem que os caquizeiros têm sete excelências: primeiro, prolongam a vida; segundo, proporcionam sombra; terceiro, não abrigam ninhos de pássaros; quarto, não são infestados por insetos; quinto, suas folhas de outono são encantadoras; sexto, produzem frutas excelentes; sétimo, seus galhos e folhas são densos e grandes. Por isso, é chamada de Montanha das Sete Excelências. Esta vila é ampla e pouco povoada, e a montanha é tão remota que poucas pessoas passam por aqui. Todos os anos, os caquis maduros caem no chão, enchendo todo o desfiladeiro com suas frutas apodrecidas, que se misturam com a chuva, orvalho, neve e o calor do verão, formando um caminho imundo e malcheiroso. Os aldeões daqui chamam esse lugar de 'Desfiladeiro dos Excrementos'. Quando o vento oeste sopra, o fedor é tão forte que nem mesmo um esgoto aberto pode ser tão ruim. No entanto, agora que é primavera, e o vento sudeste está soprando, você ainda não sente o cheiro."
Tang Sanzang ficou em silêncio, incomodado com as informações. Sun Wukong, impaciente, gritou: "Você, velho, é muito inconveniente! Viemos de longe em busca de abrigo, e você nos assusta com todas essas histórias. Se sua casa é pequena e não tem espaço para nós, podemos simplesmente passar a noite debaixo de uma árvore. Por que falar tanto?" O velho, ao ver o rosto feio de Sun Wukong, hesitou, mas, tomando coragem, gritou de volta: "Você, criatura horrenda, com rosto achatado, testa encovada, nariz achatado, bochechas fundas, olhos peludos e doentes, ousa desafiar um velho como eu?" Sun Wukong riu e disse: "Velho, você tem olhos, mas não vê. Não reconhece este 'macaco doente'? Dizem que a verdadeira beleza está escondida dentro de uma pedra. Se você julga as pessoas pela aparência, está completamente enganado. Embora eu seja feio, tenho algumas habilidades." O velho perguntou: "De onde você é? Qual é o seu nome? Que habilidades você tem?"
Sun Wukong riu e recitou:
"Minha origem é da Grande Ilha do Leste,
Onde desde criança cresci na Montanha das Flores e Frutas.
Fui discípulo do Patriarca Subhuti,
E aprendi todas as artes marciais e habilidades:
Posso agitar os mares e subjugar dragões,
Carregar montanhas e correr mais rápido que o sol;
Sou o primeiro a capturar monstros e demônios,
Capaz de mover estrelas e alterar constelações, temido por deuses e fantasmas.
Roubei o céu e virei a terra, meu nome é grande,
Sou o macaco mágico de infinitas transformações."
Ao ouvir isso, o velho mudou de atitude, passando da raiva para a alegria. Curvando-se respeitosamente, ele disse: "Por favor, entre e descanse em minha humilde casa." Então, os quatro discípulos conduziram o cavalo e carregaram suas bagagens para dentro. O velho os guiou por um caminho cercado de espinheiros, até chegarem a um muro de tijolos coberto de arbustos, que cercava uma casa de três quartos com telhado de cerâmica. O velho os acomodou em cadeiras e lhes ofereceu chá, enquanto pedia para que preparassem o jantar. Pouco tempo depois, a mesa foi posta com vários pratos simples: macarrão, tofu, brotos de taro, rabanetes, mostarda picante, nabo, arroz perfumado e uma sopa de abóbora com vinagre. Os discípulos comeram até se satisfazerem.
Após a refeição, Zhu Bajie puxou Sun Wukong de lado e cochichou: "Irmão, no começo, esse velho não queria nos deixar ficar, mas agora nos ofereceu um banquete. Por quê?" Sun Wukong respondeu: "Isso não é nada. Amanhã, ainda pedirei a ele dez frutas e dez legumes para nos enviar." Zhu Bajie replicou: "Você não tem vergonha? Só porque disse algumas palavras pomposas, conseguiu uma refeição. Amanhã, quando formos embora, por que ele nos daria mais alguma coisa?" Sun Wukong respondeu: "Não se preocupe, eu tenho um plano para isso."
Logo, a noite caiu, e o velho pediu para acender as lâmpadas. Sun Wukong se curvou e perguntou: "Qual é o seu nome, senhor?" O velho respondeu: "Meu sobrenome é Li." Sun Wukong então comentou: "Pelo jeito, esta vila deve ser chamada de Vila Li, certo?" O velho balançou a cabeça e respondeu: "Não, este lugar é chamado de Vila Tuoluo. Há mais de quinhentas famílias vivendo aqui, de muitos sobrenomes diferentes, mas eu sou o único da família Li." Sun Wukong então perguntou: "Sr. Li, o que o motivou a nos oferecer um banquete tão generoso?" O velho se levantou e respondeu: "Eu ouvi você dizer que tem habilidades para capturar demônios, e acontece que há um demônio aqui que tem nos atormentado. Se você puder nos ajudar a capturá-lo, certamente lhe daremos uma grande recompensa." Sun Wukong imediatamente se curvou e disse: "Muito obrigado por sua confiança."
Zhu Bajie, ao lado, murmurou: "Olha só para ele, sempre arrumando encrenca. Basta ouvir falar de capturar demônios, e ele já age como se fosse da família do demônio, se curvando e agradecendo antecipadamente." Sun Wukong respondeu: "Irmão, você não entende. Ao me curvar, eu já estou fechando o acordo. Assim, ele não vai pedir ajuda a mais ninguém." Tang Sanzang, ao ouvir isso, interveio: "Wukong, você sempre quer fazer tudo por conta própria. E se esse demônio tiver grandes poderes e você não conseguir capturá-lo? Isso não faria de nós, monges, mentirosos?" Sun Wukong riu e disse: "Não se preocupe, mestre, deixe-me fazer mais algumas perguntas primeiro."
O velho, curioso, perguntou: "O que mais você quer saber?" Sun Wukong respondeu: "Este lugar parece ser uma região próspera, com muitas pessoas morando aqui. Não é um lugar remoto. Que tipo de demônio ousaria perturbar uma comunidade tão grande?" O velho então explicou: "Para ser honesto, este lugar sempre foi pacífico. No entanto, há três anos, durante o mês de junho, de repente, um vento forte surgiu. Naquele momento, todos estavam ocupados: alguns estavam no campo colhendo trigo, outros plantando arroz nas plantações, e todos ficaram preocupados, achando que era uma mudança repentina no tempo. Mas, quando o vento passou, apareceu um demônio. Ele começou a devorar o gado que as pessoas criavam, como vacas e cavalos, e até porcos e ovelhas. Ele engolia galinhas e gansos inteiros, e até pessoas que ele encontrava, homens e mulheres, eram devoradas vivas. Desde então, ele vem retornando anualmente para causar destruição. Se você, mestre, tiver habilidades para capturar esse demônio e limpar nossa terra, nós certamente o recompensaremos generosamente e não seremos ingratos."
Sun Wukong comentou: "Esse demônio parece difícil de capturar." Zhu Bajie rapidamente concordou: "Sim, é difícil, muito difícil. Somos apenas monges viajantes, que pediram abrigo por uma noite e continuarão sua jornada amanhã. Por que deveríamos nos preocupar em capturar demônios?" O velho, percebendo a hesitação, provocou: "Então vocês são apenas monges charlatões, que vêm aqui com grandes promessas, dizendo que podem mover estrelas e capturar demônios, mas quando o problema real surge, vocês fogem e dizem que é difícil?"
Sun Wukong respondeu: "Velho, capturar demônios não é tão difícil, mas o problema é que as pessoas daqui não estão unidas, o que torna a tarefa mais complicada." O velho, surpreso, perguntou: "Como assim, as pessoas não estão unidas?" Sun Wukong explicou: "Esse demônio tem causado problemas por três anos e já matou muitos seres vivos. Se cada família contribuísse com uma tael de prata, com 500 famílias, vocês teriam 500 taéis. Com esse dinheiro, poderiam contratar um oficial ou alguém com poderes para capturar o demônio. Por que vocês suportaram três anos de sofrimento sem fazer nada?"
O velho respondeu: "Quanto a gastar dinheiro, não é uma questão de avareza. Qual família aqui não gastaria três ou cinco taéis para resolver o problema? Há dois anos, encontramos um monge do sul da montanha e o convidamos para capturar o demônio, mas ele não teve sucesso." Sun Wukong perguntou: "Como ele tentou capturar o demônio?" O velho respondeu:
"O monge vestiu seu manto
E começou a recitar sutras.
Ele queimou incenso no altar
E balançou o sino em suas mãos.
Mas ao invocar os mantras,
Ele perturbou o demônio.
Um vento forte começou a soprar,
E o demônio veio para a aldeia.
O monge lutou bravamente,
Mas foi em vão,
Pois o demônio o derrotou,
E o monge fugiu para as montanhas.
Quando o encontramos,
Seu crânio estava rachado,
Como uma melancia esmagada."
Sun Wukong riu: "Parece que ele sofreu muito." O velho continuou: "Ele perdeu a vida, mas nós fomos os que sofreram mais: tivemos que comprar um caixão para enterrá-lo, e ainda demos algum dinheiro ao seu discípulo. O discípulo, no entanto, ficou insatisfeito e até hoje tenta processar-nos, causando ainda mais problemas."
Sun Wukong perguntou: "Depois disso, vocês pediram a ajuda de mais alguém?" O velho respondeu: "No ano passado, convidamos um taoísta." Sun Wukong perguntou: "E como foi que o taoísta tentou capturá-lo?" O velho explicou:
"O taoísta usava uma coroa dourada,
E vestia uma túnica ritual.
Ele batia em seu talismã,
E usava água encantada.
Ele invocou espíritos e deuses,
Para capturar o demônio.
Mas um vento feroz começou a soprar,
E uma névoa negra cobriu o céu.
Ele lutou bravamente contra o demônio,
Mas ao anoitecer,
O demônio se escondeu nas nuvens.
Com o céu claro, fomos procurar o taoísta,
Mas o encontramos afogado no riacho,
Encharcado como um rato molhado."
Sun Wukong riu novamente: "Parece que ele também teve dificuldades." O velho suspirou: "Ele também perdeu a vida, e mais uma vez, nós tivemos que arcar com os custos e a tristeza."
Sun Wukong respondeu: "Não se preocupe, não se preocupe. Eu mesmo vou capturá-lo para você." O velho respondeu: "Se você realmente conseguir capturá-lo, vou chamar alguns dos anciãos da vila para redigirem um documento. Se você for bem-sucedido, pagaremos a quantia que pedir, sem falta. Mas se algo der errado, não poderá nos culpar, e cada um deve aceitar o destino." Sun Wukong riu e disse: "Parece que você já foi enganado antes. Nós não somos esse tipo de pessoas. Vá chamar os anciãos."
O velho, cheio de alegria, imediatamente ordenou a seus servos que chamassem alguns vizinhos e parentes, como seus primos e cunhados, totalizando oito ou nove anciãos. Todos vieram se encontrar com Tang Sanzang e ouviram sobre a captura do demônio. Todos ficaram satisfeitos com a notícia. Um dos anciãos perguntou: "Quem vai capturar o demônio?" Sun Wukong, juntando as mãos, respondeu: "Eu, o pequeno monge." Os anciãos ficaram alarmados e disseram: "Isso não vai dar certo. O demônio é muito poderoso e enorme. Você é pequeno e frágil; ele poderia te devorar em um instante." Sun Wukong riu e respondeu: "Senhores, vocês subestimam as pessoas. Eu sou pequeno, mas sou forte. Meu corpo é cheio de vitalidade, como se eu tivesse bebido água que afia facas."
Os anciãos, ouvindo isso, não tiveram escolha a não ser aceitar e disseram: "Monge, se você capturar o demônio, como gostaria de ser recompensado?" Sun Wukong respondeu: "Por que falar de recompensas? Como dizem, 'falar de ouro ofusca os olhos, falar de prata é tolice, e falar de dinheiro tem um cheiro ruim.' Somos monges que acumulam virtudes; não precisamos de dinheiro." Os anciãos disseram: "Se é assim, vocês são monges devotos e virtuosos. Mas não seria justo não recompensá-lo de alguma forma. Todos nós vivemos de nossas terras. Se você derrotar o demônio e purificar a área, cada família lhe dará dois acres de boas terras, totalizando mil acres. Vocês podem construir um templo lá e praticar a meditação. Isso seria melhor do que vagar pelo mundo." Sun Wukong riu e disse: "Isso não funcionaria. Se aceitarmos as terras, teremos que cuidar dos cavalos, pagar impostos e trabalhar o dia todo. Isso mataria qualquer um." Os anciãos perguntaram: "Se não quer terras nem dinheiro, como podemos agradecê-lo?" Sun Wukong respondeu: "Somos monges. Um chá e uma refeição já são suficientes como agradecimento." Os anciãos ficaram satisfeitos e disseram: "Isso é fácil de fazer. Mas como pretende capturá-lo?" Sun Wukong respondeu: "Quando ele aparecer, eu o capturarei." Os anciãos disseram: "Mas o demônio é enorme, tocando o céu e a terra; ele vem com o vento e vai com a neblina. Como você pode se aproximar dele?" Sun Wukong riu e disse: "Se estamos falando de demônios que controlam o vento e a neblina, eu os trato como netos. Se estamos falando de tamanho, eu tenho as habilidades para derrotá-lo."
Enquanto conversavam, ouviram o som do vento forte se aproximando. Os oito ou nove anciãos, assustados, disseram: "Este monge tem uma língua amaldiçoada; ele falou do demônio, e o demônio está vindo." O velho Li abriu a porta dos fundos e chamou seus parentes e Tang Sanzang para entrar: "Venham, venham, o demônio está vindo." Isso assustou tanto Zhu Bajie quanto Sha Wujing, que também quiseram entrar. Sun Wukong segurou os dois e disse: "Vocês estão sendo irracionais. Como monges, não deveríamos distinguir entre o que é interno e externo? Fiquem aqui e venham comigo ao pátio para ver que tipo de demônio é esse." Zhu Bajie respondeu: "Irmão, eles já sabem o que estão fazendo. O vento forte significa que o demônio está chegando. Eles estão se escondendo, e nós não temos nenhuma ligação com eles. Não somos parentes, nem amigos. Por que deveríamos nos importar?" Mas Sun Wukong, com sua força, os puxou para o pátio, onde ficaram parados.
O vento ficou ainda mais forte, um vento terrível:
Derrubando árvores e assustando lobos e tigres,
Agitando rios e mares, assustando deuses e fantasmas,
Virando pedras nas montanhas,
Movendo os quatro continentes,
Fazendo com que as pessoas se escondessem em suas casas,
E cobrindo o céu com nuvens escuras.
Zhu Bajie, tremendo de medo, deitou-se no chão, cavando a terra com o focinho e enterrando a cabeça, como se estivesse pregado ao chão. Sha Wujing cobriu o rosto, mal conseguindo abrir os olhos.
Sun Wukong, ouvindo o vento, reconheceu o demônio. De repente, o vento diminuiu, e ele viu duas luzes ao longe. Ele baixou a cabeça e disse: "Irmãos, o vento passou. Levantem-se e vejam." Zhu Bajie, tirando o focinho da terra, sacudiu a poeira e olhou para o céu. Vendo as duas luzes, ele riu e disse: "Isso é engraçado, é engraçado. Parece que esse demônio tem bons modos; deveríamos fazer amizade com ele." Sha Wujing perguntou: "Nesta noite escura, sem ter visto o rosto dele, como você sabe que ele é bom?" Zhu Bajie respondeu: "Como dizem, 'à noite, ande com uma vela; se não tiver uma, pare.' Veja, ele está usando dois lanternas para iluminar o caminho. Ele deve ser um bom sujeito." Sha Wujing disse: "Você está enganado. Essas não são lanternas; são os olhos brilhantes do demônio." Zhu Bajie, assustado, encolheu-se ainda mais e disse: "Oh não, se os olhos são tão grandes, imagine o tamanho da boca!" Sun Wukong disse: "Não se preocupe, irmãos. Vocês dois protejam o mestre. Eu vou até lá para ver que tipo de demônio é esse." Zhu Bajie respondeu: "Irmão, só não entregue a gente."
Sun Wukong, o bom macaco, deu um salto para o céu, brandindo seu bastão de ferro, e gritou em alta voz: "Espere aí, espere aí, estou aqui!" O demônio, ao vê-lo, parou e começou a girar sua longa lança freneticamente. Sun Wukong, segurando seu bastão em posição de ataque, perguntou: "Quem é você, demônio? De onde vem?" O demônio não respondeu, apenas continuou girando sua lança. Sun Wukong perguntou novamente, mas não obteve resposta, apenas mais giros da lança. Sun Wukong riu silenciosamente e pensou: "Parece que você é surdo e mudo. Não corra, veja meu bastão!" O demônio não mostrou medo e continuou girando sua lança para se defender. No meio do céu, os dois lutaram, subindo e descendo, indo e vindo, até que chegou a hora das três da manhã, sem que houvesse um vencedor. Zhu Bajie e Sha Wujing, que estavam observando do pátio da casa de Li, puderam ver tudo claramente. Acontece que o demônio estava apenas se defendendo, sem atacar de fato. Sun Wukong, por sua vez, não tirava o bastão de cima da cabeça do demônio. Zhu Bajie riu e disse: "Sha Wujing, fique aqui de guarda. Vou ajudar o irmão macaco, para que ele não leve todo o crédito e ganhe sozinho o primeiro copo de vinho."
O trapalhão Zhu Bajie então saltou para as nuvens e correu até lá para atacar. O demônio usou sua lança para bloquear o ataque, e as duas lanças se moveram como serpentes voadoras e relâmpagos. Zhu Bajie elogiou: "Esse demônio tem uma boa técnica com a lança! Não é uma lança comum; deve ser uma lança de seda enrolada. E também não é uma lança comum de cavaleiro; deve ser o que chamam de lança de cabo flexível." Sun Wukong respondeu: "Zhu Bajie, pare de falar bobagens. Onde já se viu uma lança de cabo flexível?" Zhu Bajie respondeu: "Veja como ele usa a ponta da lança para bloquear nossos ataques, mas não vemos o cabo; ele deve ter guardado o cabo em algum lugar." Sun Wukong disse: "Pode até ser uma lança de cabo flexível; mas esse demônio ainda não aprendeu a falar, o que significa que ele ainda não se tornou totalmente humano. Sua energia yin ainda é forte. Quando o dia clarear e a energia yang ficar mais forte, ele certamente tentará fugir. Quando isso acontecer, devemos persegui-lo e não deixá-lo escapar." Zhu Bajie concordou: "Isso mesmo, isso mesmo."
Eles continuaram lutando por mais algum tempo, até que o céu começou a clarear no leste. O demônio, temendo a luz do dia, parou de lutar e tentou fugir. Sun Wukong e Zhu Bajie imediatamente começaram a persegui-lo. De repente, um odor fétido os atingiu, vindo da ravina conhecida como "Caminho dos Caquis de Sétima Maravilha". Zhu Bajie disse: "De onde vem esse cheiro horrível? Parece que alguém está limpando uma latrina!" Sun Wukong, tapando o nariz, gritou: "Rápido, persigam o demônio, rápido!" O demônio atravessou a montanha e revelou sua verdadeira forma: uma grande serpente vermelha com escamas. Veja como ela era:
Seus olhos brilhavam como estrelas ao amanhecer,
Seu nariz soltava névoa matinal.
Seus dentes eram como espadas de aço,
Suas garras curvas como ganchos de ouro.
Ela tinha um chifre de carne na cabeça,
Parecia uma coleção de mil pedaços de ágata.
Seu corpo estava coberto de escamas vermelhas,
Parecendo ser feito de milhares de pedaços de carmim.
Quando enrolada no chão, parecia um cobertor de seda;
Quando voava, era confundida com um arco-íris.
Em seu descanso, seu odor fétido subia aos céus;
Em movimento, nuvens vermelhas a envolviam.
Tão grande que bloqueava a visão ao redor;
Tão longa que ocupava toda a montanha.
Zhu Bajie exclamou: "Então é uma cobra tão grande assim! Se quisesse comer humanos, poderia devorar quinhentos de uma vez e ainda não estaria satisfeita." Sun Wukong disse: "A tal lança de cabo flexível são na verdade duas línguas de cobra. Vamos persegui-la até que ela se canse e então a atacaremos por trás." Zhu Bajie saltou à frente e atacou com seu ancinho. A serpente, no entanto, mergulhou em sua caverna, deixando cerca de dois metros de sua cauda do lado de fora. Zhu Bajie largou seu ancinho e agarrou a cauda, gritando: "Peguei, peguei!" Ele puxou com todas as suas forças, mas a serpente não se moveu nem um milímetro. Sun Wukong riu e disse: "Zhu Bajie, deixe-a ir. Tenho um plano; não puxe a cobra pela cauda assim." Zhu Bajie, obedecendo, soltou a cauda, e a serpente rapidamente desapareceu na caverna. Zhu Bajie reclamou: "Se eu não tivesse soltado, metade dela já seria nossa. Agora que ela escapou, como vamos tirá-la de lá? Não vamos conseguir pegá-la!" Sun Wukong respondeu: "Essa criatura é grande e poderosa, mas sua caverna é estreita. Ela certamente não consegue virar lá dentro e só pode sair em linha reta. Deve haver uma saída em algum lugar. Vá para o outro lado e bloqueie a saída, enquanto eu fico aqui na entrada e a atacamos dos dois lados."
Zhu Bajie correu montanha abaixo e, de fato, encontrou outra saída. Ele rapidamente se posicionou ali. Mal havia se estabilizado quando Sun Wukong, do outro lado, enfiou seu bastão na caverna e começou a cutucar a serpente. Sentindo a dor, a criatura correu para a saída onde Zhu Bajie estava. Pegando Zhu Bajie desprevenido, a cauda da serpente o atingiu, derrubando-o no chão. Ele ficou caído, sem conseguir se levantar, de tanta dor. Sun Wukong, ao perceber que a caverna estava vazia, pegou seu bastão e correu para ajudar, gritando para que perseguissem o demônio. Zhu Bajie, ouvindo os gritos, se levantou, envergonhado, e começou a bater com seu ancinho em todas as direções. Sun Wukong riu e disse: "O demônio já fugiu. Por que você ainda está atacando o nada?" Zhu Bajie respondeu: "Eu estava só tentando assustar a cobra, irmão!" Sun Wukong disse: "Pare de brincadeiras, vamos persegui-lo rapidamente."
Sun Wukong e Zhu Bajie continuaram a perseguição, atravessando o desfiladeiro, até encontrarem o monstro enrolado como uma bola, com a cabeça erguida e a boca escancarada, prestes a devorar Zhu Bajie. Zhu Bajie, apavorado, recuou rapidamente. Sun Wukong, ao invés de recuar, avançou para a frente e foi engolido pelo monstro. Zhu Bajie começou a socar o peito e bater os pés, gritando: "Irmão, você está perdido!" Mas lá dentro, Sun Wukong, usando seu bastão de ferro, disse: "Zhu Bajie, não se preocupe, vou fazer com que ele construa uma ponte para você." O monstro então arqueou as costas, fazendo seu corpo parecer um arco-íris que atravessava o céu. Zhu Bajie comentou: "Embora pareça uma ponte, ninguém ousaria atravessá-la." Sun Wukong continuou: "Vou fazer com que ele se transforme em um barco para você ver." Com isso, ele pressionou ainda mais o bastão contra as entranhas do monstro, fazendo-o baixar o ventre e erguer a cabeça, assumindo a forma de um grande barco. Zhu Bajie disse: "Embora pareça um barco, não tem mastro, então não pode navegar com o vento." Sun Wukong replicou: "Saia do caminho e veja como faço com que ele use o vento." Dentro do monstro, Sun Wukong usou toda sua força para empurrar o bastão para fora das costas da criatura, estendendo-o por cinco ou sete metros, como se fosse um mastro de navio. A criatura, em agonia, começou a correr desesperadamente, indo direto para o caminho de volta, descendo a montanha, percorrendo cerca de vinte quilômetros antes de cair no chão, onde finalmente morreu. Zhu Bajie, seguindo logo atrás, chegou e começou a atacar o monstro com seu ancinho. Sun Wukong, tendo perfurado o corpo do monstro com um grande buraco, saiu e disse: "Zhu Bajie, ele já está morto, por que continuar batendo nele?" Zhu Bajie respondeu: "Irmão, você não sabe que eu, o velho Zhu, adoro bater em cobras mortas?" Assim, eles guardaram suas armas, pegaram a cauda do monstro e começaram a arrastá-lo de volta.
Enquanto isso, no vilarejo de Tuoluo, o velho Li e os outros estavam conversando com Tang Sanzang: "Seus dois discípulos não voltaram durante a noite, eles certamente foram derrotados." Tang Sanzang respondeu: "Não se preocupem, vamos sair para verificar." Em pouco tempo, eles viram Sun Wukong e Zhu Bajie arrastando a grande serpente enquanto gritavam alegremente. Todos no vilarejo ficaram muito felizes. Os idosos, jovens, homens e mulheres se ajoelharam e disseram: "Senhores, foi esse monstro que nos causou tanto sofrimento. Agora, graças ao seu poder, o monstro foi derrotado, e nós podemos finalmente viver em paz."
Todos no vilarejo estavam profundamente gratos, oferecendo convites e recompensas. Os discípulos foram persuadidos a ficar por cinco ou sete dias, e só depois de muita insistência foram liberados para continuar sua jornada. Além disso, como eles não queriam aceitar dinheiro ou bens, os aldeões prepararam provisões e frutas secas, decoraram mulas e cavalos com bandeiras coloridas e até acompanharam a partida em uma grande procissão. Havia cerca de quinhentas famílias no vilarejo, e cerca de setecentas a oitocentas pessoas os acompanharam.
A viagem seguiu alegremente até que chegaram à entrada do "Caminho dos Caquis de Sétima Maravilha" na montanha de Qijue. Tang Sanzang, sentindo o fedor nauseante e vendo o caminho obstruído, perguntou: "Wukong, como vamos atravessar isso?" Sun Wukong, tapando o nariz, respondeu: "Isso vai ser difícil." Ao ouvir que até Sun Wukong considerava difícil, Tang Sanzang começou a chorar. O velho Li e os outros se aproximaram e disseram: "Senhor, não se desespere. Nós concordamos em nos reunir aqui e, como seu discípulo nos ajudou a derrotar o monstro e trazer paz ao vilarejo, estamos dispostos a abrir um novo caminho para que vocês possam passar." Sun Wukong riu e respondeu: "Velho, você fala sem pensar. Você disse que essa trilha na montanha tem oitocentos quilômetros de comprimento, e nenhum de vocês é um guerreiro lendário como o Grande Yu, então como vão abrir um novo caminho? Se meu mestre quer passar, nós teremos que fazer o trabalho; vocês não são capazes." Tang Sanzang desceu do cavalo e perguntou: "Wukong, como vamos fazer isso?" Sun Wukong sorriu e respondeu: "Abrir um caminho agora seria difícil, e criar um novo caminho seria ainda mais difícil. Teremos que passar pelo caminho antigo, mas temo que ninguém vai nos fornecer comida." O velho Li disse: "Monge, como pode dizer isso? Não importa quanto tempo demore, nós cuidaremos de vocês; como pode dizer que ninguém fornecerá comida?" Sun Wukong respondeu: "Se é assim, preparem dois cestos de arroz seco e façam alguns bolos cozidos. Deixe o monge de boca larga comer até ficar satisfeito, então ele se transformará em um grande porco e abrirá o caminho antigo, e meu mestre poderá passar montado em seu cavalo, enquanto nós o ajudamos."
Zhu Bajie, ouvindo isso, protestou: "Irmão, todos vocês querem uma passagem limpa, mas por que eu tenho que ser o único a lidar com a sujeira?" Tang Sanzang disse: "Wuneng, se você realmente tem a habilidade de abrir esse caminho e nos guiar pela montanha, essa será sua grande contribuição." Zhu Bajie riu e disse: "Mestre, e todos vocês aqui presentes, não brinquem comigo. Eu, o velho Zhu, tenho trinta e seis transformações diferentes. Se me pedirem para me transformar em algo leve, bonito e voador, não posso fazer isso. Mas se for para me transformar em uma montanha, uma árvore, uma rocha, um monte de terra, um elefante teimoso, um porco selvagem, um búfalo de água, ou um camelo, isso eu posso fazer perfeitamente. Mas quanto maior o meu corpo, maior meu apetite. Preciso estar bem alimentado para poder trabalhar." Todos disseram: "Temos comida, temos comida. Todos nós trouxemos provisões, frutas e bolos cozidos para abrir caminho na montanha e escoltá-los. Vamos tirar tudo e deixar você comer o quanto quiser. Quando estiver transformado e pronto para agir, mandaremos alguém de volta para preparar mais comida e trazê-la." Zhu Bajie, muito feliz, tirou sua túnica preta, largou seu ancinho de nove dentes e disse a todos: "Não riam, assistam o velho Zhu fazer esse trabalho fedorento."
O bom Zhu Bajie recitou um encantamento, agitou o corpo e realmente se transformou em um enorme porco. Ele era verdadeiramente impressionante:
Com o focinho longo e pelos curtos, meio gordo e robusto,
Desde jovem, nas montanhas, comia ervas medicinais.
Seu rosto negro e olhos grandes, como o sol e a lua,
Cabeça arredondada e orelhas grandes como folhas de bananeira.
Ossos fortes e duradouros, semelhantes à imortalidade,
Pele espessa e resistente, comparável ao ferro.
Seu nariz chiava e soltava grunhidos abafados,
Sua garganta emitia sons roucos e ruidosos.
As quatro patas brancas eram imensas como montanhas,
E suas cerdas afiadas cobriam seu corpo comprido.
Nunca antes se viu porco tão grande na Terra,
Hoje, todos testemunham a força do velho Zhu.
Tang Sanzang e os outros o elogiaram,
Admirando a poderosa magia do comandante celestial.
Sun Wukong, vendo que Zhu Bajie havia se transformado tão grandemente, imediatamente ordenou que as pessoas que os acompanhavam empilhassem as provisões em um lugar e instruíssem Zhu Bajie a comer. O teimoso Zhu Bajie, sem distinguir entre comida crua ou cozida, devorou tudo de uma vez e começou a abrir caminho com seu focinho. Sun Wukong ordenou que Sha Monk tirasse os sapatos e segurasse bem as bagagens, enquanto Tang Sanzang se sentava firmemente na sela do cavalo. Ele também tirou os sapatos e instruiu os outros a voltarem: "Se tiverem bondade, tragam comida rapidamente para alimentar meu irmão." Dos setecentos a oitocentos acompanhantes, metade deles com mulas e cavalos, alguns voltaram rapidamente para o vilarejo para preparar a comida; outros trezentos seguiram a pé, observando de longe enquanto eles avançavam pela montanha. Do vilarejo até a montanha, a distância era de mais de trinta quilômetros. Quando voltaram com a comida, já haviam percorrido cerca de cem quilômetros, e o grupo de monges já estava longe. Não querendo abandoná-los, aceleraram com suas mulas e cavalos, atravessando o desfiladeiro durante a noite, e só os alcançaram no dia seguinte, chamando: "Sábios que buscam as escrituras, diminuam o passo! Trazemos comida para vocês!" Tang Sanzang, ao ouvir isso, agradeceu imensamente, dizendo: "Vocês são realmente pessoas de grande fé." Ele então pediu a Zhu Bajie que parasse e comesse mais para ganhar força. O teimoso Zhu Bajie, que já estava faminto após dois dias de trabalho, devorou a grande quantidade de comida que eles trouxeram, sem se importar se era arroz ou macarrão, e depois de se fartar, continuou a abrir o caminho.
Tang Sanzang, Sun Wukong e Sha Monk agradeceram aos aldeões e se despediram deles. Como diz o ditado:
Os moradores de Tuoluo retornaram para casa, enquanto Zhu Bajie abriu o caminho através do desfiladeiro,
Tang Sanzang, com coração sincero, foi protegido pelas divindades, enquanto a magia de Sun Wukong fez os demônios fugirem,
Mil anos de caquis escassos foram purificados, e o desfiladeiro das Sete Maravilhas foi finalmente aberto,
Os desejos mundanos foram cortados, e sem obstáculos, eles continuaram sua jornada ao sagrado Monte Leiyin.
Agora, o caminho está livre, mas ainda não se sabe quantos desafios ainda aguardam, nem que outros monstros eles encontrarão em sua jornada. Mas isso é uma história para a próxima vez.
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arteriaemchamas · 2 months ago
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jpo 2
CAPÍTULO 16: OS DEUSES SOFREM GOLPES MORTAIS, MAITREYA SUBJUGA O DEMÔNIO
Vamos continuar a história com Sun Wukong, que, sem opções restantes, subiu em uma nuvem auspiciosa e voou diretamente para o sul, em direção ao Monte Wudang, na região de Nanzhan Buzhou, para buscar a ajuda do Venerável Exterminador de Demônios, Zhenwu, na esperança de libertar Tang Sanzang, Zhu Bajie, Sha Wujing, e os soldados celestiais da calamidade que enfrentavam. Ele não parou nem por um momento e, em um único dia, já avistava o reino celestial do mestre Zhenwu. Ele desceu suavemente da nuvem e olhou ao redor, admirando o local:
Um lugar majestoso no sudeste, uma montanha sagrada no centro do céu. O pico de Lótus eleva-se imponente, e a Cordilheira de Ziguai é majestosa. As águas de Nove Rios fluem para longe, ligando-se às montanhas de Yizhen. No alto, há uma caverna celestial do grande vazio, e um pátio sagrado de jade e rubi. Os sinos de ouro das 36 mansões ressoam, enquanto milhares de devotos entram para prestar suas oferendas. Shun e Yu ofereciam seus sacrifícios aqui, e inscrições em jade e livros dourados eram lidos. Pássaros azuis voavam entre os pavilhões, e bandeiras vermelhas tremulavam com graça. O nome desta montanha ecoa por todo o universo, e a visão celestial abre os portões do paraíso. Árvores de ameixa florescem em abundância, e ervas imortais cobrem as encostas. Dragões escondem-se nos vales, e tigres repousam nas falésias. A paz permeia o ambiente, enquanto veados domesticados caminham ao lado das pessoas. Garças brancas descansam entre as nuvens junto a antigos ciprestes, e grifos azuis e fênix vermelhas cantam ao sol. O mestre de Jade vive em um verdadeiro reino celestial, e o portão dourado da benevolência governa o mundo.
O mestre supremo do lugar, Zhenwu, era o filho do Rei Jinglu e da Rainha Shansheng, que sonhou em engolir a luz do sol e, após catorze meses de gestação, deu à luz Zhenwu ao meio-dia do primeiro dia do terceiro mês do ano Jiachen, durante o primeiro ano da era Kaihuang. Sobre ele, podemos dizer:
Desde jovem, ele era corajoso e destemido, e quando cresceu, tornou-se espiritual e sábio. Ele não assumiu o trono, dedicando-se inteiramente ao cultivo espiritual. Seus pais não podiam contê-lo, e ele abandonou o palácio real. Ele mergulhou no estudo profundo e na meditação, nas montanhas. Completando sua prática, ele ascendeu aos céus em plena luz do dia. O Imperador de Jade lhe concedeu o título de Zhenwu, o Exterminador de Demônios. Ele responde ao chamado da espiritualidade suprema, com a união da tartaruga e da serpente. Ele é reverenciado por todas as criaturas, e seu poder é inigualável. Ele vê tanto o oculto quanto o manifesto, e nada escapa à sua visão. Ele corta os demônios do início ao fim dos tempos, subjugando todas as forças malignas.
Sun Wukong, enquanto admirava a paisagem celestial, logo chegou ao primeiro, segundo e terceiro portões celestiais. Quando finalmente chegou ao Palácio Taihe, viu uma luz auspiciosa e uma aura sagrada, cercada por quinhentos oficiais espirituais. Esses oficiais vieram à frente e perguntaram: "Quem é você?" Sun Wukong respondeu: "Eu sou Sun Wukong, o Grande Sábio Igual aos Céus, e venho aqui para ver o mestre Zhenwu." Ao ouvirem isso, os oficiais imediatamente relataram ao mestre, que desceu do palácio para encontrar Sun Wukong. Sun Wukong fez uma reverência e disse: "Vim aqui pedir ajuda." Zhenwu perguntou: "O que aconteceu?" Sun Wukong explicou: "Enquanto protegia Tang Sanzang em sua jornada para o oeste, nos deparamos com muitos perigos. Em Xiniu Hezhou, encontramos uma montanha chamada Pequeno Paraíso Ocidental, onde havia um templo conhecido como Pequeno Templo do Trovão. Um demônio se disfarçou de Buda e meu mestre, ao ver os arhat, kinnaras, monges e santos em fila, acreditou que fosse o verdadeiro Buda e se prostrou para venerá-los, mas foi capturado e amarrado. Eu, por não ter ficado alerta, fui preso dentro de uma tigela de ouro, sem nenhuma fenda ou brecha, selada como uma pinça. Felizmente, Jiedi, o mensageiro celestial, informou ao Imperador de Jade, que enviou as 28 constelações para me resgatar, mas não conseguiram abrir a tigela. Finalmente, o Dragão Dourado conseguiu enfiar seu chifre na tigela e me libertar. Eu quebrei a tigela e acordei o demônio. Durante a batalha, o demônio lançou uma bolsa mágica sobre mim, capturando-me, juntamente com as 28 constelações e os cinco guardiões celestiais. Fui amarrado novamente, mas consegui escapar durante a noite e libertei meu mestre e os deuses. No entanto, quando fui procurar as bagagens sagradas, despertei o demônio, e uma nova batalha começou. O demônio lançou sua bolsa mágica mais uma vez, e eu, reconhecendo o perigo, fugi. Todos os outros foram capturados novamente. Não tenho mais recursos, então vim pedir sua ajuda, mestre Zhenwu."
Zhenwu respondeu: "Eu, no passado, comandei as forças celestiais no norte, subjugando os demônios sob o comando do Imperador de Jade. Mais tarde, recebi a ordem do Mestre Primordial e, com a ajuda de deuses e criaturas, subjuguei os demônios do nordeste. Agora, vivo em paz no Monte Wudang, e a terra está tranquila e segura. Mas vejo que os demônios estão causando problemas no sul de Nanzhan Buzhou e no norte de Julu Zhou. Como você veio me pedir ajuda, não posso recusar. Embora eu não tenha recebido ordens diretas do céu, e isso me impeça de mobilizar exércitos celestiais, darei a você o auxílio de duas de minhas divindades: a Tartaruga e a Serpente, juntamente com cinco dragões poderosos. Eles irão com você para capturar o demônio e salvar seu mestre."
Sun Wukong agradeceu ao mestre Zhenwu e, acompanhado pela Tartaruga, pela Serpente e pelos cinco dragões, partiu de volta para o território de Xiniu Hezhou. Em pouco tempo, chegaram ao Pequeno Templo do Trovão e, descendo das nuvens, foram diretamente para o portão da montanha para desafiar o demônio.
Dentro do templo, o Grande Rei Sobrancelha Amarela estava reunido com seus seguidores no salão principal, e disse: "Já faz dois dias que Sun Wukong não apareceu. Será que ele foi buscar reforços?" Mal havia terminado de falar, um pequeno demônio entrou apressado pela porta da frente e relatou: "Sun Wukong está lá fora com alguns dragões, uma tartaruga e uma serpente, chamando-o para lutar!" O demônio exclamou: "Como esse macaco conseguiu recrutar dragões, tartarugas e serpentes? De onde vêm essas criaturas?" Ele imediatamente vestiu sua armadura e saiu correndo pelos portões da montanha, gritando: "Quem são vocês, dragões e serpentes, que ousam invadir meu domínio celestial?"
Os cinco dragões e os dois guerreiros, a Tartaruga e a Serpente, eram impressionantes, com um espírito formidável. Eles gritaram em resposta: "Seu demônio insolente! Somos os cinco dragões e os dois generais da Tartaruga e da Serpente, servos do Venerável Exterminador de Demônios do Palácio Taihe no Monte Wudang. Fomos convocados pelo Grande Sábio Sun Wukong para capturá-lo. Renda-se imediatamente, liberte Tang Sanzang e os deuses, e pouparemos sua vida. Caso contrário, destruiremos todos os monstros desta montanha e reduziremos seus palácios a cinzas." O demônio, enfurecido ao ouvir essas palavras, gritou: "Suas criaturas, o que podem fazer com seu poder insignificante? Preparem-se para minha maça!"
Os cinco dragões invocaram nuvens e chuvas, enquanto a Tartaruga e a Serpente levantaram areia e poeira, e todos brandiram suas armas para atacar o demônio. Sun Wukong também entrou na batalha com seu bastão de ferro. Assim começou uma feroz luta:
O demônio feroz empunha sua arma, enquanto Sun Wukong busca reforços. O demônio domina o palácio, disfarçando-se de Buda; Sun Wukong viaja a um reino distante para buscar dragões. A Tartaruga e a Serpente controlam os elementos da água e do fogo, enquanto o demônio empunha sua lâmina afiada. Os cinco dragões, sob ordens celestiais, avançam pelo oeste, enquanto Sun Wukong se prepara para recuperar seu mestre. Espadas e lanças brilham como relâmpagos, e as armas cintilam como arco-íris. A maça do demônio é poderosa e resistente, enquanto o bastão de Sun Wukong responde à sua vontade. O som dos golpes ressoa como fogos de artifício, e o tilintar das armas soa como ouro sendo golpeado. Água e fogo se unem para combater o demônio, enquanto armas cercam o espírito maligno. Os gritos de guerra assustam lobos e tigres, e o clamor sacode os deuses e espíritos. A batalha se intensifica, sem um vencedor claro, e o demônio recorre a seus tesouros mágicos.
Sun Wukong liderou os cinco dragões e os dois guerreiros, a Tartaruga e a Serpente, em uma batalha contra o demônio durante meia hora. Nesse momento, o demônio tirou sua bolsa mágica, o que assustou Sun Wukong, que gritou: "Cuidado, todos!" Os dragões, a Tartaruga e a Serpente, sem saber do perigo, pararam de lutar e se aproximaram. O demônio então lançou a bolsa com um movimento rápido, e Sun Wukong, vendo o perigo, não teve tempo para se preocupar com os outros e fugiu para o céu em um salto. O demônio, por sua vez, capturou os cinco dragões, a Tartaruga e a Serpente na bolsa e retornou vitorioso ao templo, onde os amarrou e os trancou na caverna subterrânea.
Sun Wukong desceu das nuvens e pousou, exausto e abatido, no topo de uma montanha, lamentando: "Esse monstro é realmente poderoso." Sem perceber, ele fechou os olhos e caiu em um leve sono. De repente, ouviu alguém chamá-lo: "Grande Sábio, não adormeça! Rápido, vá buscar ajuda, pois a vida de seu mestre está por um fio!" Sun Wukong acordou com um sobressalto e viu que era o Deus Supervisor do Sol. Sun Wukong, irritado, gritou: "Você, Deus menor, onde esteve todo esse tempo se alimentando de sangue, sem aparecer para cumprir seus deveres? E agora vem me perturbar! Estique sua bengala para que eu a quebre em dois para aliviar minha frustração!" O Deus Supervisor, apavorado, fez uma reverência e disse: "Grande Sábio, você é um imortal alegre, por que deveria se sentir tão frustrado? Nós, deuses, já havíamos recebido ordens da Bodhisattva Guanyin para proteger Tang Sanzang em segredo, junto com os deuses locais, e não ousamos nos afastar dele por um momento sequer. É por isso que não viemos visitá-lo regularmente. Como pode me culpar por isso?"
Sun Wukong perguntou: "Se vocês estão protegendo, como é que meu mestre, meus irmãos, os deuses estelares e os guardiões celestiais foram capturados pelo demônio e agora estão sofrendo?" O Deus Supervisor respondeu: "Seu mestre e seus irmãos estão pendurados sob a varanda do salão principal, enquanto os deuses estelares estão presos na caverna subterrânea. Nos últimos dois dias, não ouvimos notícias do Grande Sábio, e só agora soubemos que o demônio capturou os dragões, a Tartaruga e a Serpente, e os trancou na caverna subterrânea. Foi então que percebi que o Grande Sábio havia pedido ajuda a eles, e vim procurá-lo. Por favor, não descanse, vá rapidamente buscar mais reforços."
Ao ouvir isso, Sun Wukong não pôde evitar derramar lágrimas de vergonha e tristeza, dizendo: "Agora me sinto envergonhado de retornar ao Palácio Celestial e de enfrentar o Mestre do Mar; temo perguntar à Bodhisattva e me preocupo em ver o semblante do Buda. Os que foram capturados agora são os dragões, a Tartaruga e a Serpente, servos do Mestre Zhenwu. Não sei a quem mais recorrer para pedir ajuda. O que devo fazer?" O Deus Supervisor sorriu e disse: "Grande Sábio, acalme-se. Lembrei-me de um exército poderoso que certamente pode subjugar o demônio. Quando o Grande Sábio foi ao Monte Wudang, isso ainda estava na região de Nanzhan Buzhou. Esse exército está localizado no Monte Xuanyi, na cidade de Pizhou, atualmente conhecida como Sizhou. Lá reside o Mestre do Reino, o Bodhisattva Wang, que possui grandes poderes espirituais. Ele tem um discípulo chamado Príncipe Zhang, e quatro generais divinos que, no passado, subjugaram a Senhora dos Mares. Se você for pessoalmente pedir ajuda, ele certamente virá em seu auxílio e poderá capturar o demônio e salvar seu mestre." Sun Wukong ficou contente ao ouvir isso e disse: "Vá proteger meu mestre, não deixe que ele seja ferido. Eu vou imediatamente pedir ajuda."
Sun Wukong saltou para sua nuvem e voou rapidamente para longe do território do demônio, dirigindo-se diretamente para o Monte Xuanyi. Em pouco tempo, ele chegou ao local. Observando ao redor, ele viu que era realmente um lugar magnífico:
Ao sul, perto do rio Yangtze; ao norte, junto ao rio Huai; a leste, conectado ao mar; a oeste, adjacente ao Monte Fengfu. No topo da montanha havia torres imponentes, e nos vales, nascentes de água jorravam. Rochas imponentes e pinheiros majestosos decoravam a paisagem. Frutas frescas e flores desabrochando em abundância eram vistas por toda parte. As pessoas iam e vinham como formigas, e os barcos navegavam em fileiras como gansos voltando para casa. No topo, havia o Templo Ruiyan, o Palácio Dongyue, o Templo Wuxian, e o Templo Gushan, com sinos ressoando e incenso subindo ao céu. Também havia a Fonte de Cristal, o Vale das Cinco Torres, o Terraço dos Oito Imortais, e o Jardim das Flores de Damasco, com o brilho das montanhas e as cores das árvores refletindo na cidade de Pizhou. As nuvens brancas pairavam, e os pássaros cantavam suavemente. Comparado aos Montes Tai, Song, Heng e Hua, este lugar parecia um verdadeiro cenário celestial.
Sun Wukong, encantado com a beleza do lugar, atravessou o rio Huai e entrou na cidade de Pizhou, parando diante do portão do Templo Daxing. Ele viu um salão imponente, com corredores longos e decorados, e uma alta torre dourada erguendo-se no céu. Realmente era:
Erguendo-se para tocar as nuvens, alcançando o céu, olhando para cima, as urnas douradas brilhavam no espaço. Luz irradiando por todo o universo, sem sombra projetada nas paredes e cortinas. O vento fazia soar os sinos, trazendo a música celestial; o sol refletia nos dragões de gelo, criando uma imagem divina. Pássaros sagrados pousavam ocasionalmente para conversar, e ao longe, o rio Huai parecia infinito.
Sun Wukong, enquanto observava e caminhava, chegou ao segundo portão. O Bodhisattva Wang, já ciente de sua chegada, saiu com o Príncipe Zhang para recebê-lo. Depois das saudações, Sun Wukong explicou: "Estou protegendo Tang Sanzang em sua jornada para o oeste em busca das escrituras, mas no caminho encontramos um lugar chamado Pequeno Templo do Trovão, onde um demônio chamado Huangmei se disfarçou de Buda. Meu mestre, enganado, se prostrou diante dele e foi capturado. Eu também fui preso por uma tigela dourada, mas fui libertado graças aos deuses celestiais. Quebrei a tigela e lutei contra o demônio, mas ele lançou uma bolsa mágica que capturou os deuses, meu mestre, meus irmãos e a mim. Eu fui ao Monte Wudang para pedir ajuda ao Mestre Zhenwu, que enviou cinco dragões, a Tartaruga e a Serpente para capturar o demônio, mas eles também foram capturados pela bolsa mágica. Sem ter a quem recorrer, vim pedir ao Bodhisattva que mostre sua grande misericórdia, use seus poderes que subjugaram a Senhora dos Mares, e venha comigo para salvar meu mestre. Uma vez que tivermos as escrituras, elas serão transmitidas para a China, espalhando a sabedoria do Buda e promovendo o Dharma."
O Bodhisattva Wang respondeu: "O que você me contou hoje é verdadeiramente para o florescimento da fé budista, e eu deveria ir pessoalmente. No entanto, estamos no início do verão, e o rio Huai está em sua cheia. Acabei de subjugar o Grande Sábio Aquático, que se fortalece na presença da água. Se eu sair agora, temo que ele possa causar problemas novamente, e não haverá ninguém para contê-lo. Portanto, pedirei a meu discípulo que, junto com os quatro generais, vá ajudá-lo a subjugar o demônio e resgatar seu mestre."
Sun Wukong agradeceu, e junto com os quatro generais e o Príncipe Zhang, subiu nas nuvens e voltou ao Pequeno Paraíso Ocidental, indo direto ao Pequeno Templo do Trovão. O Príncipe Zhang empunhava uma lança branca, enquanto os quatro generais manejavam espadas de aço afiadas. Eles avançaram, gritando insultos ao demônio. Um pequeno demônio correu para informar o rei demônio, que imediatamente liderou seus seguidores, saindo com alvoroço e gritando: "Macaco, quem você trouxe desta vez?" Antes que Sun Wukong pudesse responder, o Príncipe Zhang ordenou que os quatro generais avançassem, e gritou: "Maldito demônio! Você tem coragem de não nos reconhecer?"
O rei demônio perguntou: "Quem é esse jovem general que ousa me desafiar?" O Príncipe Zhang respondeu: "Eu sou o discípulo do Mestre Wang, o Bodhisattva de Daxing, e lidero os quatro grandes generais sob suas ordens para capturá-lo." O rei demônio riu e disse: "Você, criança, que habilidades tem para ousar vir até aqui?" O Príncipe Zhang respondeu: "Se quer conhecer minhas habilidades, ouça bem:
Meu ancestral era rei do Reino de Sha, nas terras ocidentais, Desde jovem, sofri com doenças e desgraças, meu destino foi afetado por uma estrela maligna. Buscando a imortalidade, encontrei meu mestre e abandonei os remédios mundanos. Com uma pequena dose de elixir, curei minhas doenças e abandonei o trono para praticar o Dao. Alcancei a imortalidade, vivendo eternamente jovem. Participei da Assembléia do Dragão, voei aos templos budistas. Capturei monstros das águas, subjuguei dragões e tigres, protegendo as montanhas. Erigi torres budistas para guiar o povo, e minha sabedoria iluminou o mundo. Minha lança branca pode prender demônios, minha túnica monástica subjugou monstros. Agora, resido pacificamente em Pizhou, onde meu nome é famoso como o Pequeno Zhang!"
Ouvindo isso, o rei demônio riu levemente e disse: "Príncipe, você abandonou seu reino para seguir o Mestre Wang e aprender a arte da imortalidade. Tudo o que conseguiu foi capturar monstros no rio Huai, e agora, por que você daria ouvidos às mentiras de Sun Wukong, cruzando montanhas e rios para encontrar sua morte? Vamos ver se você realmente é imortal!"
O Príncipe Zhang, enraivecido por essas palavras, girou sua lança e atacou de frente; os quatro generais avançaram juntos, enquanto Sun Wukong balançava seu bastão de ferro e se juntava à luta. Mas o rei demônio, sem temor, brandia sua curta e resistente maça de dentes de lobo, bloqueando e contra-atacando habilmente. A batalha foi intensa:
O Príncipe Zhang brandia sua lança branca, Enquanto os quatro generais empunhavam suas afiadas espadas. Sun Wukong com seu bastão dourado, Juntos, eles cercaram o rei demônio.
O rei demônio possuía grande poder espiritual, Sem medo, bloqueava e contra-atacava com destreza. Sua maça de dentes de lobo era um tesouro budista, Inabalável contra espadas e lanças. O vento rugia furiosamente, E a atmosfera se tornava sombria e opressiva.
De um lado, havia quem usasse suas habilidades para lutar, Do outro, aqueles dedicados à busca do Dharma. A luta continuava feroz, com ataques e recuos, Nuvens de névoa escureciam o céu, A raiva e o ódio alimentavam a batalha, Mas nenhum conseguia a vitória.
Depois de muito tempo, sem que houvesse um vencedor, o demônio tirou novamente sua bolsa mágica. Sun Wukong gritou: "Cuidado, todos!" Mas o Príncipe Zhang e os outros não sabiam do perigo iminente. Com um movimento rápido, o demônio lançou a bolsa e capturou os quatro generais e o Príncipe Zhang, enquanto Sun Wukong, prevendo o perigo, fugiu antes de ser capturado. O rei demônio, vitorioso, retornou ao templo, onde amarrou seus prisioneiros e os trancou na caverna subterrânea.
Sun Wukong, em sua nuvem, subiu aos céus e observou o demônio recuando com seu exército e fechando as portas do templo. Ele desceu até uma encosta na montanha ocidental, triste e lamentando:
"Mestre, Desde que aceitei os ensinamentos, adentrei o mosteiro, Agradecido à Bodhisattva por salvar minha vida. Eu protegi você em sua jornada ao Oeste, em busca do Dao, Auxiliando na busca pelo Templo do Trovão. Eu pensei que o caminho seria tranquilo, Mas como poderia prever esses monstros implacáveis? Todos os meus esforços e planos falharam, E minhas súplicas no leste e no oeste foram em vão."
Enquanto Sun Wukong estava imerso em sua tristeza, de repente viu uma nuvem colorida descendo do sudoeste, trazendo uma chuva torrencial que encharcou a montanha. Uma voz chamou: "Wukong, você me reconhece?" Sun Wukong rapidamente correu para ver, e quem estava lá era:
Uma pessoa de orelhas grandes e rosto largo, Com ombros largos e uma barriga cheia, de constituição robusta. Com um sorriso caloroso que irradiava alegria, E olhos brilhantes que refletiam bondade. Suas mangas largas balançavam com facilidade, E seus sapatos de palha eram simples, mas ele exalava vigor. Ele era o mais exaltado na Terra da Suprema Felicidade, O venerável MaitreSun Wukong, ao ver Maitreya, imediatamente se prostrou e disse: "Grande Buda do Leste, para onde vai? Seu discípulo não conseguiu evitá-lo, mil desculpas, mil desculpas." Maitreya respondeu: "Eu vim aqui especialmente para lidar com o demônio do Pequeno Templo do Trovão." Sun Wukong, cheio de gratidão, perguntou: "Agradeço profundamente por sua grande benevolência. Posso perguntar, de onde veio esse demônio, e que tipo de criatura é ele? E o que é essa bolsa mágica que ele usa? Por favor, poderia me esclarecer?"
Maitreya explicou: "Ele é um servo meu, um jovem de sobrancelhas amarelas que costumava bater o sino em minha presença. No terceiro dia do terceiro mês, eu fui participar de uma reunião do Yuan Shi Tian Zun e deixei o jovem para cuidar do palácio. Ele, entretanto, roubou alguns dos meus tesouros e, ao se disfarçar de Buda, se transformou em um demônio. Essa bolsa mágica que ele usa é meu 'Saco de Sementes Humanas', um artefato pós-celestial, e a maça de dentes de lobo que ele usa é, na verdade, o martelo que ele utilizava para bater o sino." Ao ouvir isso, Sun Wukong exclamou: "Então, aquele monge sorridente deixou o jovem fugir, permitindo que ele se passasse por Buda e causasse problemas para mim. Não é de admirar que haja uma certa falta de disciplina em sua casa." Maitreya riu e disse: "Sim, foi minha negligência que permitiu isso, mas também é parte do destino que você e seus discípulos precisassem passar por essa provação. Agora estou aqui para levá-lo de volta."
Sun Wukong perguntou: "Esse demônio tem grandes poderes, e você não tem nenhuma arma. Como pretende capturá-lo?" Maitreya sorriu e respondeu: "Eu já preparei uma cabana de palha no sopé desta montanha, onde cultivo algumas frutas. Você deve desafiá-lo para uma batalha, e durante a luta, finge que está perdendo e o atrai para minha plantação de melões. Enquanto isso, transforme-se em um grande melão maduro. Quando ele vier, certamente pegará o melão para comer, e assim que ele o devorar, você estará dentro dele. Dentro do estômago dele, você poderá fazer o que quiser. Nesse momento, tomarei sua bolsa mágica e o capturarei de volta." Sun Wukong, entusiasmado com o plano, perguntou: "O plano é excelente, mas como você vai reconhecer o melão em que eu me transformei? E como podemos garantir que ele me seguirá até lá?"
Maitreya riu e disse: "Eu sou o grande mestre que governa este mundo, com uma visão espiritual que pode ver tudo. Não importa em que você se transforme, eu saberei. Mas o único problema é garantir que o demônio o siga. Para isso, vou lhe ensinar uma técnica." Sun Wukong, curioso, perguntou: "Ele certamente tentará me capturar com sua bolsa mágica. Como posso fazê-lo me seguir? Que técnica é essa?" Maitreya riu novamente e disse: "Estenda sua mão." Sun Wukong estendeu sua mão esquerda, e Maitreya, com o dedo indicador direito, molhou-o com um pouco de saliva divina e escreveu o caractere "禁" (que significa "proibição") na palma de Sun Wukong, instruindo-o a fechar o punho. Maitreya explicou: "Quando você encontrar o demônio, abra a mão na frente dele, e ele o seguirá."
Sun Wukong, satisfeito, agradeceu pela instrução. Com uma mão segurando firmemente o bastão de ferro, ele foi diretamente para fora dos portões do templo e gritou em voz alta: "Demônio, seu avô Sun está de volta! Saia e enfrente-me se tiver coragem!" Os pequenos demônios correram para informar o rei demônio, que perguntou: "Ele trouxe mais reforços desta vez?" Os pequenos demônios responderam: "Não, ele está sozinho." O rei demônio riu e disse: "Esse macaco está sem recursos, sem ninguém para recorrer. Ele definitivamente veio aqui para encontrar a morte." Ele então se preparou, pegou suas armas e saiu, dizendo: "Sun Wukong, desta vez você não escapará!" Sun Wukong, furioso, gritou: "Seu demônio miserável, quem disse que eu não escaparei?" O rei demônio respondeu: "Vejo que você está sem opções, sem ninguém para ajudar, e veio sozinho. Se eu te capturar agora, não haverá mais deuses para te salvar, por isso digo que você não escapará."
Sun Wukong respondeu: "Você, demônio tolo, pare de falar besteiras e receba meu golpe!" O rei demônio, ao ver que Sun Wukong estava empunhando o bastão com apenas uma mão, riu e disse: "Esse macaco está tentando algo novo, usando uma só mão para segurar o bastão. Que tolice!" Sun Wukong respondeu: "Seu tolo, você não aguentaria se eu usasse as duas mãos. Se você não usar sua bolsa mágica, mesmo que me enfrente com mais três ou cinco demônios, você não poderá derrotar o velho Sun!" O rei demônio, ouvindo isso, disse: "Muito bem, desta vez não usarei minha bolsa mágica. Vamos lutar de verdade e ver quem vence!" Ele então levantou sua maça de dentes de lobo e avançou para a luta.
Sun Wukong abriu sua mão, revelando o caractere "禁" e, em seguida, empunhou o bastão com ambas as mãos. O demônio, sob a influência da magia, não pensou em usar a bolsa mágica e se concentrou apenas em lutar com sua maça. Sun Wukong fingiu uma retirada e começou a fugir em direção ao sopé da montanha oeste, com o demônio o seguindo de perto.
Quando Sun Wukong avistou o campo de melões, ele rolou e se transformou em um grande melão maduro, suculento e doce. O demônio parou, olhando ao redor, sem saber para onde Sun Wukong havia ido. Ele se aproximou da cabana e gritou: "Quem cultiva esses melões?" Maitreya, disfarçado como um velho agricultor, saiu da cabana e respondeu: "Grande rei, esses melões foram plantados por mim." O demônio perguntou: "Há algum melão maduro?" Maitreya respondeu: "Sim, há um que está bem maduro." O demônio ordenou: "Pegue um para mim, estou com sede." Maitreya imediatamente pegou o melão em que Sun Wukong havia se transformado e o entregou ao demônio. O demônio, sem suspeitar de nada, pegou o melão, abriu a boca e deu uma grande mordida. Sun Wukong aproveitou a oportunidade para deslizar rapidamente pela garganta do demônio e, uma vez dentro de seu estômago, começou a causar o maior caos: arranhando o intestino, revirando as entranhas, causando uma dor excruciante. O demônio rolava pelo campo de melões, contorcendo-se de dor, como se estivesse em uma eira. Ele gritava: "Estou acabado, estou acabado! Alguém, por favor, me ajude!"
Maitreya, agora em sua forma verdadeira, rindo e sorrindo, disse: "Criatura maligna, você me reconhece?" O demônio, ao levantar a cabeça e ver Maitreya, ficou aterrorizado. Ele imediatamente caiu de joelhos, segurando a barriga com as mãos, e começou a bater a cabeça no chão, implorando: "Senhor, por favor, poupe minha vida, poupe minha vida, nunca mais farei isso novamente!" Maitreya se aproximou, pegou a bolsa mágica do demônio e tomou a maça de dentes de lobo. Ele então disse: "Sun Wukong, em consideração a mim, poupe a vida dele."ya, o Buda Sorridente.
Sun Wukong, ainda cheio de rancor e raiva, começou a socar e chutar dentro do estômago do demônio, causando-lhe uma dor insuportável. O demônio caiu ao chão, incapaz de suportar a agonia. Maitreya, vendo a situação, disse: "Wukong, ele já aprendeu a lição. Perdoe-o, por favor." Sun Wukong então gritou: "Abra bem a boca para que o velho Sun possa sair!" Embora o demônio estivesse com dores terríveis no estômago, ele ainda não havia perdido toda a esperança. Como diz o ditado: "Enquanto o coração não se quebra, a morte não chega; quando a flor murcha e as folhas caem, a raiz também morre." Ao ouvir Sun Wukong pedir para abrir a boca, o demônio, suportando a dor, abriu bem a boca. Sun Wukong então saltou para fora e voltou à sua forma original, já segurando o bastão, pronto para atacar novamente. No entanto, Maitreya rapidamente capturou o demônio na bolsa mágica e a pendurou em seu cinto. Com o martelo de sino em mãos, ele repreendeu: "Criatura maligna! Você roubou o sino de ouro, onde ele está?" O demônio, em desespero dentro da bolsa, respondeu: "O sino de ouro foi quebrado por Sun Wukong." Maitreya disse: "Se o sino foi quebrado, onde estão os pedaços de ouro?" O demônio respondeu: "Os pedaços de ouro estão empilhados no salão, sob o trono de lótus."
Maitreya, ainda segurando a bolsa mágica e o martelo, riu e disse: "Wukong, vamos procurar o ouro e recuperá-lo." Sun Wukong, impressionado com o poder de Maitreya, não ousou hesitar e guiou Maitreya até a montanha, retornando ao templo. Ao chegarem, encontraram os portões fechados. Maitreya, com um toque do martelo, abriu os portões. Ao entrarem, perceberam que os pequenos demônios, ao saberem que o grande demônio havia sido capturado, estavam se preparando para fugir. Sun Wukong, ao ver isso, atacou cada demônio que encontrou, matando centenas deles. Quando os demônios morreram, todos retornaram à sua forma original: eram espíritos da montanha, monstros da floresta, bestas selvagens e pássaros demoníacos. Maitreya reuniu os pedaços de ouro, soprou um pouco de ar celestial e recitou um encantamento, restaurando o sino de ouro à sua forma original. Ele então se despediu de Sun Wukong e, montado em sua nuvem auspiciosa, retornou ao Paraíso da Suprema Felicidade.
Depois disso, Sun Wukong finalmente libertou Tang Sanzang, Zhu Bajie e Sha Wujing. Zhu Bajie, que estava faminto após dias pendurado, não perdeu tempo em agradecer a Sun Wukong. Em vez disso, foi diretamente para a cozinha procurar comida. Lá, ele encontrou o almoço que o demônio havia preparado, mas não teve tempo de comer antes de ser interrompido por Sun Wukong. Zhu Bajie rapidamente comeu metade de uma panela de comida e trouxe duas tigelas para que seu mestre e irmãos também pudessem comer. Só depois de estarem alimentados é que Zhu Bajie agradeceu a Sun Wukong. Tang Sanzang perguntou sobre a origem do demônio, e Sun Wukong explicou toda a história, desde a ida ao Monte Wudang para pedir ajuda a Zhenwu, até a intervenção final de Maitreya. Tang Sanzang, ouvindo a história, expressou sua profunda gratidão e fez reverências aos céus, dizendo: "Discípulo, onde estão os deuses e santos que foram capturados?"
Sun Wukong respondeu: "Ontem, o Deus Supervisor do Sol me disse que todos estavam presos na caverna subterrânea." Ele então chamou: "Zhu Bajie, venha comigo para libertá-los."
Zhu Bajie, agora fortalecido pela comida, pegou sua ferramenta de escavação e, junto com Sun Wukong, foram até a parte de trás do templo, onde abriram a caverna subterrânea e libertaram todos os prisioneiros, trazendo-os para fora do palácio. Tang Sanzang vestiu sua túnica de monge, fez reverências e agradeceu a cada um deles. Sun Wukong então escoltou os cinco dragões e os dois generais de volta ao Monte Wudang, o Príncipe Zhang e os quatro generais de volta à cidade de Pizhou, e, por fim, as 28 constelações de volta ao Palácio Celestial, liberando os guardiões e protetores de volta aos seus domínios.
Os discípulos passaram o resto do dia descansando, alimentaram o cavalo branco e arrumaram suas bagagens. Na manhã seguinte, ao partirem, incendiaram o templo, reduzindo os palácios, tronos e torres a cinzas. E assim, finalmente:
Sem mais preocupações ou amarras, seguiram em frente, Desfazendo as desgraças e os obstáculos, continuaram sua jornada.
Mas quando finalmente chegarão ao Grande Templo do Trovão? Isso só saberemos no próximo capítulo.
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arteriaemchamas · 2 months ago
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jornada para o oeste
CAPÍTULO 15: OS DEMÔNIOS CRIAM UM PEQUENO TEMPLO DE RAIOS FALSOS, E OS QUATRO DISCÍPULOS SOFREM GRANDES APUROS
Essa história serve como um lembrete para praticar o bem e evitar o mal. Cada pensamento e ação são observados pelos deuses, e nossas escolhas determinam nosso destino. Não importa quão esperto ou tolo alguém possa ser, o remédio para uma mente sem sabedoria é o cultivo da virtude enquanto se está vivo. Não desperdice seu tempo; encontre sua verdadeira essência e liberte-se das limitações terrenas. Busque a imortalidade com determinação, clareza e compaixão. Aquele que pratica o bem será recompensado, enquanto os justos alcançarão o paraíso.
Voltando à história, Tang Sanzang, com uma única mente devota, prosseguiu sua jornada. Não foi apenas protegido pelos deuses, mas até os espíritos das árvores vieram guiá-lo, proporcionando-lhe uma noite de descanso seguro, longe de espinhos e trepadeiras. Os quatro discípulos continuaram avançando para o oeste, e depois de algum tempo, já era o fim do inverno, com os primeiros sinais da primavera:
A natureza floresce em harmonia, e a Ursa Maior aponta para a primavera. Brotos verdes cobrem o chão, e os olhos dos salgueiros se enchem de verde nas margens. Pomares em montes brilham com flores de pessegueiro como sedas vermelhas, e as águas dos riachos refletem um brilho esverdeado sob o nevoeiro. A chuva e o vento trazem emoções infinitas. O sol faz as flores desabrocharem, enquanto as andorinhas carregam musgo e flores com leveza. As montanhas parecem saídas de uma pintura de Wang Wei, e o canto dos pássaros ressoa em todas as direções. Embora a natureza esteja em seu esplendor, poucos estão para apreciá-la, mas as borboletas dançam e as abelhas cantam com alegria.
Os discípulos também aproveitaram para apreciar a beleza ao redor enquanto seguiam devagar, caminhando ao lado de seus cavalos. Enquanto seguiam, avistaram uma montanha alta que parecia tocar o céu à distância. Tang Sanzang apontou com seu chicote e disse: "Wukong, essa montanha é tão alta que parece se conectar ao céu, atingindo os céus azuis." Sun Wukong respondeu: "Há um antigo poema que diz: 'Somente o céu está acima, nenhuma montanha se iguala a ele.' Isso indica que a montanha é extremamente alta, mas não se conecta literalmente ao céu." Zhu Bajie interveio: "Se não toca o céu, por que dizem que o Monte Kunlun é o pilar do céu?" Sun Wukong explicou: "Você não sabe. Desde os tempos antigos, acredita-se que o 'céu não preenche completamente o noroeste'. O Monte Kunlun está situado na direção noroeste, a posição do Qian, por isso é conhecido como o pilar do céu." Sha Wujing riu e disse: "Grande irmão, guarde essas boas palavras para si mesmo. Se ele as ouvir, vai espalhá-las por aí. Vamos continuar caminhando; quando chegarmos ao topo da montanha, saberemos sua verdadeira altura."
Zhu Bajie então começou a brincar com Sha Wujing, enquanto o mestre cavalgava à frente com grande rapidez. Em pouco tempo, chegaram ao sopé da montanha e começaram a subir, um passo de cada vez. A montanha era assim:
O vento soprava suavemente entre as árvores, e a água corria nos vales profundos. Nem corvos ou pardais conseguiam voar sobre ela, e até mesmo os imortais a achavam desafiadora. Mil penhascos e dez mil desfiladeiros, bilhões de curvas e centenas de baías. A poeira rodopiava sem que ninguém chegasse ali, e as pedras estranhas pareciam incontáveis. Em alguns lugares, as nuvens se moviam como água, e em outros, as árvores estavam cheias de canto de pássaros. Veados pastavam em ervas sagradas, macacos colhiam pêssegos. Raposas e texugos saltavam sobre os penhascos, enquanto javalis corriam pelas cristas das montanhas. De repente, o rugido de um tigre encheu o ar, assustando qualquer um que ouvisse, e leopardos manchados e lobos cinzentos bloqueavam o caminho.
Ao ver isso, Tang Sanzang ficou apavorado. Mas Sun Wukong, com seus grandes poderes, brandiu seu bastão de ouro e, com um rugido, assustou os lobos, tigres, leopardos e abriu caminho para seu mestre, guiando-o montanha acima. Depois de atravessarem a crista da montanha e descerem para uma área plana, de repente viram uma luz auspiciosa, com névoas coloridas ao redor. Havia um complexo de pavilhões e palácios, com o som suave de sinos e gongos flutuando no ar. Tang Sanzang perguntou: "Discípulos, que lugar será esse?" Sun Wukong olhou para cima, usando a mão para fazer sombra, e observou atentamente. A visão que ele viu era magnífica:
Pavilhões preciosos e tronos adornados, com cúpulas sagradas. O vale era repleto de sons naturais, e o ambiente era perfumado com incenso celestial. Pinheiros verdes cobertos de chuva escondiam os altos pavilhões, e bambus verdes com nuvens protegiam os salões de meditação. A luz das nuvens sugeria um palácio celestial, e as cores brilhantes se estendiam até o fim da terra. Cercas vermelhas e portas de jade, vigas esculpidas e colunas pintadas. Discussões sobre sutras enchem o ar com fragrância, enquanto conversas sobre escrituras ecoam sob a luz da lua. Pássaros cantam nas árvores vermelhas, e garças bebem água perto das fontes de pedra. Jardins floridos cercam o paraíso, e três portões abertos revelam a luz de Shravasti. Torres imponentes recebem os visitantes, e o som dos sinos ressoa suavemente. As janelas abertas deixam entrar o vento suave, e as cortinas levantadas revelam a fumaça nebulosa. Aqui, os monges vivem sem desejos mundanos, e a paz reina neste verdadeiro paraíso, longe do mundo mortal.
Depois de observar tudo isso, Sun Wukong voltou-se para Tang Sanzang e disse: "Mestre, esse lugar parece ser um templo, mas dentro dessa névoa auspiciosa há também uma aura sinistra. Embora se pareça com o Templo do Grande Trovão (Leiyin), o caminho parece um pouco diferente. Acho que não devemos entrar de forma imprudente, pois podemos acabar caindo em uma armadilha." Tang Sanzang respondeu: "Se parece com o Templo do Grande Trovão, poderia ser o Monte Ling? Não deixe que sua desconfiança atrapalhe nossa jornada e nossa devoção." Sun Wukong respondeu: "Não, não é. Já percorri o caminho para o Monte Ling várias vezes, e este não é o caminho." Zhu Bajie acrescentou: "Mesmo que não seja, certamente há pessoas boas vivendo aqui." Sha Wujing comentou: "Não precisamos nos preocupar tanto. Esta estrada nos leva diretamente à entrada; ao chegarmos lá, tudo ficará claro." Sun Wukong concordou: "Wujing tem razão."
O mestre Tang Sanzang, ansioso, chicoteou o cavalo e galopou até o portão da montanha. Ao chegar, viu as grandes palavras "Templo do Trovão" (雷音寺) escritas, e, em pânico, caiu do cavalo e se prostrou no chão, gritando: "Maldito macaco! Você está me enganando, isso realmente é o Templo do Trovão!" Sun Wukong, rindo, disse: "Mestre, não se irrite. Olhe novamente. O portão da montanha tem quatro palavras, como você leu apenas três e ainda me culpa?" Tremendo, Tang Sanzang se levantou e olhou de novo, e realmente havia quatro palavras: "Templo do Pequeno Trovão" (小雷音寺). Tang Sanzang então disse: "Mesmo sendo o Templo do Pequeno Trovão, deve haver um Buda dentro. As escrituras falam de três mil Budas, e todos não estão em um único lugar: por exemplo, Guanyin está no Mar do Sul, Puxian em Emei, Wenshu em Wutai. Não sei qual Buda reside aqui. Há um antigo ditado: 'Onde há um Buda, há escrituras, sem limites nem fronteiras.' Devemos entrar."
Sun Wukong, cauteloso, respondeu: "Não devemos entrar, este lugar é mais perigoso do que parece. Se houver problemas, não me culpe." Tang Sanzang disse: "Mesmo que não haja um Buda, deve haver uma estátua de Buda. Meu desejo é sempre venerar um Buda quando encontro um. Como posso culpá-lo por isso?"
Tang Sanzang então ordenou que Zhu Bajie trouxesse sua túnica de monge, trocou seu chapéu e, ajustando suas vestes, deu um passo à frente. De repente, ouviu uma voz de dentro do portão da montanha chamando: "Tang Sanzang, você veio do Leste para ver o Buda, por que está sendo tão lento?" Ao ouvir isso, Tang Sanzang imediatamente se ajoelhou e se curvou; Zhu Bajie e Sha Wujing também se prostraram. Apenas Sun Wukong, que segurava o cavalo e cuidava da bagagem, ficou para trás sem se curvar. Quando chegaram ao segundo portão, viram o Grande Salão do Buda. Fora do salão, sob uma plataforma preciosa, estavam dispostos quinhentos arhat, três mil kinnaras, quatro deuses guardiões, oito bodhisattvas, freiras, devotos laicos, e inúmeros santos monges e taoístas. O lugar estava realmente repleto de flores perfumadas e uma atmosfera auspiciosa. Tang Sanzang, Zhu Bajie e Sha Wujing, tomados pela reverência, se curvaram passo a passo até o centro da plataforma sagrada. Sun Wukong, no entanto, não se curvou.
De repente, ouviram uma voz severa vinda do trono de lótus, gritando: "Sun Wukong, por que você não se curva ao ver o Buda?" Percebendo a farsa, Sun Wukong abandonou o cavalo e a bagagem, pegou seu bastão de ouro e gritou: "Vocês, demônios audaciosos, como se atrevem a usar o nome do Buda para corromper sua pureza? Não fujam!" Com as duas mãos, ele girou o bastão e avançou para atacar. De repente, um som metálico ecoou do céu, e uma grande tigela de ouro desceu, prendendo Sun Wukong da cabeça aos pés dentro dela. Zhu Bajie e Sha Wujing, apavorados, brandiram suas armas, mas foram rapidamente cercados e capturados pelos arhat, kinnara e santos monges falsos. Tang Sanzang também foi amarrado e preso. Todos foram amarrados com cordas e amarrados com firmeza.
Na verdade, o "Buda" no trono de lótus era o rei dos demônios, e todos os arhat e demais figuras eram pequenos demônios disfarçados. Após capturarem os três discípulos, o rei dos demônios se revelou em sua forma verdadeira. Tang Sanzang e os outros foram levados para os fundos e aprisionados. Sun Wukong, preso dentro da tigela dourada, foi colocado em uma plataforma preciosa, onde permaneceria por três dias e noites, até que seu corpo se dissolvesse em sangue e pus. Somente após isso, a gaiola de ferro seria usada para cozinhar os outros três.
Assim diz o ditado: O macaco de olhos astutos reconhece a falsidade e a verdade, a iluminação vê além da aparência e adora o verdadeiro Buda. A mulher cega, sem saber, participa da adoração, a mãe estúpida conversa com o falso sem perceber. Os demônios nascem fortes e enganam por natureza, os chefes demônios nutrem o mal e enganam deuses e homens. De fato, o Tao é pequeno e os demônios são grandes, errar o caminho é um desperdício de vida.
Os demônios, então, guardaram Tang Sanzang e seus discípulos nos fundos, amarraram o cavalo e esconderam as vestes e o chapéu de monge de Tang Sanzang junto com a bagagem. O lugar estava protegido com força.
Dentro da tigela dourada, Sun Wukong estava em um completo breu, suando copiosamente, tentando escapar batendo de um lado para o outro, mas sem sucesso. Desesperado, ele brandiu seu bastão de ferro repetidamente, mas não conseguiu mover a tigela nem um pouco. Sem mais opções, Sun Wukong tentou aumentar seu tamanho, alongando-se até mil pés de altura; no entanto, a tigela dourada se expandiu junto com ele, sem deixar nenhuma fresta ou luz entrar. Então, ele encolheu até o tamanho de uma semente de mostarda, mas a tigela também encolheu proporcionalmente, sem abrir nenhuma saída.
Sun Wukong, frustrado, pegou seu bastão de ferro e, com um sopro de seu poder celestial, o transformou em uma haste para levantar a tigela. Ele então arrancou dois pelos longos de sua nuca, os transformou em brocas de cinco pontas, e começou a perfurar a tigela. Ele perfurou inúmeras vezes, fazendo sons de arranhão, mas sem sucesso. Desesperado, Sun Wukong recitou um encantamento: "Om, tranquilidade ao mundo, Qian Yuan Heng Li Zhen," convocando os cinco kinnaras, os seis Dings e os seis Jias, e os dezoito guardiões celestiais. Todos apareceram fora da tigela dourada e disseram: "Grande Sábio, estamos aqui protegendo seu mestre, evitando que os demônios o machuquem. Por que nos convocou?" Sun Wukong respondeu: "Meu mestre não me ouviu, e agora está em grande perigo. Como vocês podem rapidamente remover essa tigela e me libertar? Aqui dentro é escuro e sufocante, estou quase morrendo de calor!"
Os deuses tentaram levantar a tigela, mas mesmo com todos os seus esforços, ela não se moveu nem um milímetro. O líder dos kinnaras disse: "Grande Sábio, essa tigela é um tesouro muito poderoso, moldado como uma única peça de cima a baixo. Nossa força é insuficiente para movê-la." Sun Wukong respondeu: "Eu tentei de tudo aqui dentro, usei todos os meus poderes divinos, mas nada funcionou."
Jiedi (o mensageiro celestial) ouviu as palavras de Sun Wukong e imediatamente ordenou que os Seis Deuses Ding protegessem Tang Sanzang, enquanto os Seis Deuses Jia vigiassem a tigela de ouro. Os guardiões celestiais foram posicionados ao redor para observar tudo atentamente. Então, Jiedi elevou-se em uma nuvem auspiciosa e, em pouco tempo, entrou pelos portões do Céu do Sul. Sem esperar por uma convocação formal, ele correu diretamente para o Palácio Celestial, onde se prostrou diante do Imperador de Jade e relatou: "Senhor, eu sou Jiedi, o mensageiro dos cinco quadrantes. Atualmente, o Grande Sábio, Sun Wukong, está escoltando Tang Sanzang em sua jornada para obter as escrituras, mas encontrou uma montanha chamada Pequeno Templo do Trovão. Tang Sanzang, ao confundir esse lugar com o Monte Ling, entrou para venerar, mas descobriu que se tratava de uma armadilha criada por demônios, que agora prenderam ele e seus discípulos. Sun Wukong foi aprisionado dentro de uma tigela de ouro, sem saída, e está à beira da morte. Eu vim aqui para informar Vossa Majestade."
O Imperador de Jade imediatamente emitiu um decreto: "Envie as 28 constelações celestes para resgatar e subjugar os demônios rapidamente."
As constelações não perderam tempo, acompanhando Jiedi, e saíram pelos portões celestiais, chegando ao portão da montanha na hora do segundo turno da noite. Todos os demônios, grandes e pequenos, estavam adormecidos, pois o velho demônio os havia recompensado após capturarem Tang Sanzang. As constelações, silenciosas, chegaram à tigela de ouro onde Sun Wukong estava preso e disseram: "Grande Sábio, fomos enviados pelo Imperador de Jade, somos as 28 constelações celestes, aqui para resgatá-lo."
Sun Wukong, feliz ao ouvir isso, disse: "Quebrem essa tigela com suas armas, e eu poderei sair!" As constelações responderam: "Não podemos bater. Este objeto é um tesouro feito de ouro sólido; se o golpearmos, ele ressoará e alertará os demônios, tornando mais difícil o resgate. Vamos usar nossas armas para tentar cortar um caminho para você. Se vir um pequeno raio de luz, escape por ele." Sun Wukong respondeu: "Entendido."
Então, as constelações começaram a trabalhar: aqueles com lanças usaram-nas, aqueles com espadas, adagas e machados fizeram o mesmo. Alguns empurravam, outros levantavam, todos tentando de alguma forma abrir um caminho. Eles trabalharam até o terceiro turno da noite, mas a tigela não se moveu, permanecendo como uma peça sólida de metal. Dentro da tigela, Sun Wukong olhou de um lado para o outro, rastejando e rolando, mas não conseguiu ver nenhum sinal de luz.
Kang Jinlong (o Dragão Dourado), uma das constelações, disse: "Grande Sábio, não fique tão impaciente. Este tesouro certamente tem a capacidade de se transformar. Dentro da tigela, tente encontrar a costura onde as partes se juntam e a toque com sua mão. Vou encolher-me ao tamanho de uma agulha e introduzir meu chifre por essa junção. Quando o fizer, você deve se transformar e escapar pelo ponto fraco."
Sun Wukong seguiu as instruções e começou a procurar a costura dentro da tigela. Kang Jinlong então se transformou em um pequeno dragão e encolheu seu chifre até o tamanho de uma ponta de agulha, que ele inseriu na costura da tigela. Com grande esforço, ele usou toda a sua força para perfurar a tigela de dentro para fora. Quando finalmente conseguiu, ele murmurou um encantamento, fazendo seu chifre crescer até a espessura de uma tigela.
No entanto, a costura da tigela não era como metal fundido, mas parecia carne viva, apertando-se em torno do chifre de Kang Jinlong, sem deixar espaço para escapar. Sun Wukong, sentindo o chifre, disse: "Isso não está funcionando. Não há espaço livre, nem para cima nem para baixo. Não há outra escolha; você terá que suportar um pouco de dor e me ajudar a sair."
Sun Wukong então transformou seu bastão de ouro em uma broca de aço e fez um pequeno orifício no chifre de Kang Jinlong. Ele então diminuiu seu corpo até o tamanho de uma semente de mostarda e se espremeu no pequeno buraco, gritando: "Puxe o chifre para fora, puxe-o para fora!"
Kang Jinlong, com grande esforço, conseguiu puxar seu chifre para fora, mas usou tanta força que caiu exausto no chão.
Sun Wukong emergiu do orifício, retornando à sua forma original, e, com seu bastão de ferro em mãos, desferiu um golpe poderoso na tigela de ouro, que ressoou como o colapso de uma montanha de cobre ou a abertura de uma mina de ouro. A tigela, que era um artefato sagrado budista, quebrou-se em milhares de pedaços de ouro.
As 28 constelações ficaram assustadas com o impacto, e Jiedi ficou com os cabelos em pé. Todos os demônios, grandes e pequenos, acordaram de seus sonhos. O velho rei demônio, ainda meio adormecido, levantou-se rapidamente, vestiu suas roupas, e tocou o tambor para reunir todos os demônios, cada um empunhando suas armas. Naquele momento, o dia começava a clarear. Eles correram para a plataforma preciosa, onde encontraram Sun Wukong e as constelações cercando os pedaços quebrados da tigela de ouro, deixando-os atônitos. O rei demônio então ordenou: "Fechem os portões da frente rapidamente e não deixem ninguém escapar!"
Ao ouvir isso, Sun Wukong imediatamente pegou as constelações e voou para o céu. O rei demônio, cheio de ódio, recolheu os pedaços de ouro e, reunindo seus soldados demoníacos, alinhou-se do lado de fora do portão da montanha. Desesperado e cheio de rancor, o rei demônio vestiu sua armadura, pegou sua curta e flexível maça de dentes de lobo, e saiu para desafiar Sun Wukong, gritando: "Sun Wukong! Um verdadeiro homem não foge! Venha e lute comigo em uma batalha de três rodadas!"
Sun Wukong, incapaz de resistir ao desafio, liderou as constelações e desceu das nuvens para ver como era o demônio. E ele era assim:
Com cabelos despenteados, usava uma faixa de ouro simples; seus olhos brilhavam, e suas sobrancelhas eram amarelas e espessas. Seu nariz era grande e suas narinas abertas, e sua boca larga revelava dentes afiados. Ele usava uma armadura entrelaçada com correntes e uma faixa de seda com borlas. Calçava um par de sapatos pretos e empunhava uma maça de dentes de lobo. Sua forma era semelhante à de uma fera, mas não completamente; ele parecia humano, mas não exatamente.
Sun Wukong, segurando seu bastão de ferro, gritou: "Que tipo de monstro você é, ousando se disfarçar de Buda, invadindo esta montanha e fingindo ser o Templo do Pequeno Trovão?" O rei demônio respondeu: "Esse macaco não sabe meu nome, por isso veio ofender esta montanha sagrada. Este lugar é chamado de Pequeno Paraíso Ocidental. Eu obtive resultados em minha prática espiritual, e o céu me concedeu este palácio precioso. Meu nome é Velho Buda Sobrancelha Amarela, mas as pessoas aqui não me conhecem e me chamam de Grande Rei Sobrancelha Amarela ou Velho Sobrancelha Amarela. Sabendo que você estava vindo para o oeste, com algum poder nas mãos, preparei esta armadilha para atrair seu mestre. Quero apostar uma batalha com você. Se me vencer, pouparei a vida de vocês e permitirei que alcancem a verdadeira iluminação; mas se não puder, mato todos vocês, e eu mesmo irei buscar as escrituras, espalhando o verdadeiro caminho na China."
Sun Wukong riu e disse: "Demônio, não precisa se gabar. Se quer apostar, venha logo e receba o golpe do meu bastão." O rei demônio, alegre, pegou sua maça de dentes de lobo para enfrentar Sun Wukong. E assim começou uma batalha feroz:
Dois bastões, diferentes, mas ambos poderosos: um era uma arma suave e curta dos monges, o outro, duro como o mar escondido. Ambos podiam se transformar conforme a vontade, e agora se enfrentavam para mostrar sua força. A maça de dentes de lobo, curta e flexível, adornada com cores vibrantes; o bastão dourado de Sun Wukong, duro como uma serpente dragão. Ambos podiam ser grossos ou finos, curtos ou longos, conforme desejado. O macaco e o demônio lutavam, sem misericórdia, cada golpe refletindo sua raiva e ódio. Nuvens e névoa cobriam o sol e as montanhas, enquanto os golpes iam e vinham, esquecendo-se da vida e da morte por causa de Tang Sanzang.
Eles lutaram por cinquenta rounds sem que houvesse um vencedor. Enquanto isso, no portão da montanha, os tambores rufavam e as bandeiras dos demônios tremulavam. De um lado, as 28 constelações celestiais e os cinco guardiões celestiais, todos armados, cercaram o rei demônio, assustando os demônios menores que estavam no portão, fazendo com que suas mãos tremessem e eles não conseguissem mais bater os tambores.
Mas o velho rei demônio não temia. Com uma mão, manejava a maça de dentes de lobo para se defender das armas das constelações; com a outra, retirou de sua cintura um pedaço de tecido velho e branco. Ele o lançou ao ar com um som rápido, e, num instante, capturou Sun Wukong, as 28 constelações e os cinco guardiões celestiais, enrolando-os todos no tecido e carregando-os sobre o ombro enquanto voltava para trás. Os pequenos demônios, exultantes com a vitória, retornaram triunfantes. O velho demônio ordenou que trouxessem 30 ou 50 cordas de cânhamo para amarrar o tecido. Um por um, os prisioneiros foram amarrados, todos estavam com os músculos fracos e a pele enrugada. Eles foram carregados para os fundos e jogados ao chão, sem discriminação. O rei demônio então ordenou que preparassem um banquete, e beberam e festejaram do amanhecer até o anoitecer, antes de se retirarem para dormir.
Enquanto isso, Sun Wukong e os deuses estavam amarrados até a meia-noite, quando de repente ouviram alguém chorando. Ao escutar atentamente, Sun Wukong percebeu que era Tang Sanzang, lamentando:
"Me arrependo de não ter te ouvido na época, e agora sofremos esse desastre. Preso dentro da tigela de ouro, você foi ferido, e quem saberá das minhas amarras de cânhamo? Quatro pessoas se encontram num destino amargo, e todo nosso esforço agora parece em vão. Como podemos superar essas dificuldades e continuar a jornada para o oeste?"
Ouvindo isso, Sun Wukong sentiu compaixão e pensou: "Embora meu mestre não tenha me escutado antes, ele ainda pensa em mim durante o infortúnio. Aproveitarei esta noite silenciosa, enquanto os demônios dormem, para libertar todos e escapar."
O grande sábio usou uma técnica de evasão, encolhendo seu corpo para se soltar das cordas. Ele se aproximou de Tang Sanzang e sussurrou: "Mestre." Tang Sanzang reconheceu a voz e perguntou: "Como você chegou aqui?" Sun Wukong calmamente explicou tudo o que havia acontecido. Tang Sanzang, feliz, disse: "Discípulo, por favor, me salve. A partir de agora, confiarei em você para lidar com tudo."
Sun Wukong então libertou seu mestre, seguido por Zhu Bajie e Sha Wujing. Ele também libertou as 28 constelações e os cinco guardiões celestiais. Ele trouxe o cavalo e os instruiu a sair rapidamente. Assim que saíram, perceberam que as bagagens não estavam por perto, então voltaram para procurar. Kang Jinlong (o Dragão Dourado) disse: "Você dá mais valor às coisas do que às pessoas. Já salvou seu mestre, por que ainda está procurando as bagagens?" Sun Wukong respondeu: "As pessoas são importantes, mas as relíquias são ainda mais. Dentro das bagagens estão os documentos de passagem, a túnica bordada e a tigela de ouro, todos tesouros sagrados do budismo. Como posso deixá-los para trás?" Zhu Bajie sugeriu: "Irmão, vá procurar. Nós iremos para a estrada e o esperaremos lá."
As constelações, junto com Tang Sanzang, usaram uma técnica mágica e, com a ajuda de uma rajada de vento, escaparam dos muros da montanha e se reuniram na estrada principal, esperando no sopé da colina.
Por volta do terceiro turno da noite, Sun Wukong, movendo-se silenciosamente, entrou novamente na montanha. Ele percebeu que as portas estavam bem fechadas. Subiu em uma torre alta e viu que todas as janelas estavam trancadas. Hesitante em descer, temendo que as janelas rangissem e acordassem os demônios, ele murmurou um encantamento e se transformou em um pequeno morcego, também conhecido como "rato celestial". Ele era assim:
Com cabeça pontuda, parecia um rato, e seus olhos brilhavam da mesma maneira. Tinha asas para sair ao anoitecer e se escondia durante o dia sem luz. Habitava buracos nos telhados e caçava mosquitos para se alimentar. Amava a luz clara da lua e sabia quando voar melhor.
Ele entrou sorrateiramente por uma abertura no telhado, passando pelas portas e janelas, e chegou ao centro do edifício. Ali, viu uma luz suave emanando debaixo de uma janela no terceiro andar, mas não era luz de vela, vaga-lume, névoa ou relâmpago. Ele voou e pulou até a janela e viu que a luz vinha das bagagens. Os demônios haviam tirado a túnica de Tang Sanzang e a jogado desordenadamente dentro da bagagem. A túnica era um tesouro sagrado, adornada com pérolas e joias raras, por isso emitia uma luz brilhante. Ao ver a túnica, Sun Wukong ficou feliz, voltou à sua forma original, pegou a bagagem e, sem se preocupar com as cordas, colocou-a sobre os ombros e começou a descer.
Infelizmente, ao descer, ele perdeu o equilíbrio e caiu no chão, fazendo um grande estrondo. E assim aconteceu: o velho demônio, que estava dormindo no andar de baixo, foi acordado pelo barulho. Ele pulou da cama, gritando: "Alguém está aqui! Alguém está aqui!" Os demônios, grandes e pequenos, acordaram, acenderam as luzes e começaram a gritar, correndo de um lado para o outro para investigar. Um deles relatou: "Tang Sanzang fugiu." Outro relatou: "Sun Wukong e os outros também fugiram." O velho demônio, em pânico, ordenou: "Fechem bem todos os portões!"
Ouvindo isso, Sun Wukong, temendo cair em outra armadilha, largou a bagagem e, com um salto mortal, escapou pela janela, fugindo rapidamente.
O demônio procurou por Tang Sanzang e os outros em todos os lugares, mas não conseguiu encontrá-los. Quando percebeu que o céu estava começando a clarear, ele pegou sua arma e liderou seus seguidores para persegui-los. Quando chegaram ao sopé da montanha, avistaram as 28 constelações celestes, os cinco guardiões celestiais e os demais deuses, todos envoltos em nuvens e névoa, esperando na encosta. O rei demônio gritou: "Para onde pensam que vão? Eu estou aqui!" Jiao Mu Jiao (a constelação do Dragão de Madeira) rapidamente alertou: "Irmãos, o monstro está vindo!" As outras constelações, como Kang Jinlong (o Dragão Dourado), Di Tu Fu (o Morcego de Terra), Fang Ri Tu (o Coelho do Sol), Xin Yue Hu (a Raposa da Lua), Wei Huo Hu (o Tigre de Fogo), Ji Shui Bao (o Leopardo de Água), e muitas outras, juntamente com os guardiões celestiais e os deuses protetores, assim como Zhu Bajie e Sha Wujing (mas sem Tang Sanzang, que estava separado com o cavalo branco), empunharam suas armas e avançaram juntos.
Ao ver a formação, o rei demônio riu friamente e assobiou, convocando quatro ou cinco mil demônios grandes e pequenos, todos fortes e ferozes, que se juntaram na encosta oeste da montanha. Uma grande batalha começou:
Os demônios malignos tentavam sobrepujar a verdadeira natureza, enquanto a verdadeira natureza, suave e pacífica, lutava para resistir aos demônios. Centenas de estratégias eram empregadas, mas escapar do sofrimento parecia impossível; mil métodos eram usados, mas não conseguiam alcançar a harmonia. Os céus enviaram suas tropas para apoiar, e os santos ajudaram na batalha. A proteção divina estava presente, mas a luta era implacável, com os demônios armando suas redes e armadilhas. De um lado, as bandeiras tremulavam e os gritos ecoavam; do outro, tambores rufavam e gongos soavam. As lâminas das lanças e espadas brilhavam sob a luz fria, e o ar estava impregnado de intenção assassina. Os soldados demoníacos eram ferozes e corajosos, e as tropas divinas lutavam com dificuldade. Nuvens de desespero cobriam o sol e a lua, e névoas escuras envolviam montanhas e rios. A luta era difícil e prolongada, tudo por causa da devoção de Tang Sanzang a Buda Amitabha.
O rei demônio, ainda mais corajoso, liderou seus seguidores para atacar.
No meio da batalha, sem um vencedor claro, Sun Wukong gritou: "O velho Sun está aqui!" Zhu Bajie se aproximou e perguntou: "E as bagagens?" Sun Wukong respondeu: "Minha vida estava em perigo; como poderia me preocupar com bagagens?" Sha Wujing, segurando seu bastão, disse: "Não há tempo para conversa, vamos derrotar o demônio primeiro." As constelações celestes, os guardiões e os deuses estavam cercados pelos demônios, e o velho rei demônio atacava os três. Sun Wukong, Zhu Bajie e Sha Wujing largaram suas armas e enfrentaram o inimigo com força total. O céu escureceu, e a batalha parecia interminável. Eles lutaram até que o Sol se pôs no oeste e a Lua apareceu no leste. O rei demônio, percebendo que o dia estava terminando, assobiou novamente, alertando seus demônios para ficarem atentos, e então tirou seu tesouro.
Sun Wukong percebeu que o demônio estava abrindo sua bolsa mágica e gritou: "Isso não é bom! Vamos fugir!" Sem se preocupar com Zhu Bajie, Sha Wujing ou os deuses, Sun Wukong deu um salto mortal e fugiu para os céus. Os outros, sem entender o que estava acontecendo, foram pegos pela bolsa mágica e, mais uma vez, capturados. O rei demônio recuou com seus soldados e voltou para o templo. Ele ordenou que trouxessem as cordas e amarrou todos novamente. Tang Sanzang, Zhu Bajie e Sha Wujing foram pendurados, e o cavalo branco foi amarrado atrás deles. Os deuses também foram amarrados e jogados em uma caverna subterrânea, que foi trancada e selada. Os demônios seguiram as ordens e se recolheram, encerrando o episódio.
Enquanto isso, Sun Wukong, seguro nas nuvens, percebeu que os demônios haviam recuado sem levantar bandeiras, e logo entendeu que todos os outros haviam sido capturados novamente. Ele desceu suavemente e pousou no topo da montanha leste, rangendo os dentes de raiva contra o monstro, enquanto lágrimas escorriam de seus olhos ao pensar em Tang Sanzang. Olhando para o céu, ele lamentou em voz alta: "Mestre, que destino cruel você deve ter para enfrentar tantos demônios em cada passo desta jornada? Como poderemos escapar de tais sofrimentos?"
Depois de lamentar por um longo tempo, Sun Wukong acalmou-se e começou a pensar, perguntando a si mesmo: "Que tipo de bolsa mágica é essa que o demônio tem, capaz de capturar tantos seres celestiais e guerreiros? Eu poderia pedir ajuda aos céus, mas temo que o Imperador de Jade possa se zangar comigo. Lembro-me de que há um poderoso deus no norte, conhecido como Zhenwu, o Venerável Exterminador de Demônios. Ele atualmente reside no Monte Wudang, na região de Nanzhan Buzhou. Vou até ele pedir ajuda para resgatar meu mestre."
Como diz o ditado: "Quando o caminho celestial não está completo, o macaco e o cavalo se dispersam, E quando o coração não tem um mestre, os cinco elementos ficam sem força."
O que acontecerá a seguir? Saberemos no próximo capítulo.
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arteriaemchamas · 2 months ago
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jornada para o oeste 2
CAPÍTULO 15: OS DEMÔNIOS CRIAM UM PEQUENO TEMPLO DE RAIOS FALSOS, E OS QUATRO DISCÍPULOS SOFREM GRANDES APUROS
Essa história serve como um lembrete para praticar o bem e evitar o mal. Cada pensamento e ação são observados pelos deuses, e nossas escolhas determinam nosso destino. Não importa quão esperto ou tolo alguém possa ser, o remédio para uma mente sem sabedoria é o cultivo da virtude enquanto se está vivo. Não desperdice seu tempo; encontre sua verdadeira essência e liberte-se das limitações terrenas. Busque a imortalidade com determinação, clareza e compaixão. Aquele que pratica o bem será recompensado, enquanto os justos alcançarão o paraíso.
Voltando à história, Tang Sanzang, com uma única mente devota, prosseguiu sua jornada. Não foi apenas protegido pelos deuses, mas até os espíritos das árvores vieram guiá-lo, proporcionando-lhe uma noite de descanso seguro, longe de espinhos e trepadeiras. Os quatro discípulos continuaram avançando para o oeste, e depois de algum tempo, já era o fim do inverno, com os primeiros sinais da primavera:
A natureza floresce em harmonia, e a Ursa Maior aponta para a primavera. Brotos verdes cobrem o chão, e os olhos dos salgueiros se enchem de verde nas margens. Pomares em montes brilham com flores de pessegueiro como sedas vermelhas, e as águas dos riachos refletem um brilho esverdeado sob o nevoeiro. A chuva e o vento trazem emoções infinitas. O sol faz as flores desabrocharem, enquanto as andorinhas carregam musgo e flores com leveza. As montanhas parecem saídas de uma pintura de Wang Wei, e o canto dos pássaros ressoa em todas as direções. Embora a natureza esteja em seu esplendor, poucos estão para apreciá-la, mas as borboletas dançam e as abelhas cantam com alegria.
Os discípulos também aproveitaram para apreciar a beleza ao redor enquanto seguiam devagar, caminhando ao lado de seus cavalos. Enquanto seguiam, avistaram uma montanha alta que parecia tocar o céu à distância. Tang Sanzang apontou com seu chicote e disse: "Wukong, essa montanha é tão alta que parece se conectar ao céu, atingindo os céus azuis." Sun Wukong respondeu: "Há um antigo poema que diz: 'Somente o céu está acima, nenhuma montanha se iguala a ele.' Isso indica que a montanha é extremamente alta, mas não se conecta literalmente ao céu." Zhu Bajie interveio: "Se não toca o céu, por que dizem que o Monte Kunlun é o pilar do céu?" Sun Wukong explicou: "Você não sabe. Desde os tempos antigos, acredita-se que o 'céu não preenche completamente o noroeste'. O Monte Kunlun está situado na direção noroeste, a posição do Qian, por isso é conhecido como o pilar do céu." Sha Wujing riu e disse: "Grande irmão, guarde essas boas palavras para si mesmo. Se ele as ouvir, vai espalhá-las por aí. Vamos continuar caminhando; quando chegarmos ao topo da montanha, saberemos sua verdadeira altura."
Zhu Bajie então começou a brincar com Sha Wujing, enquanto o mestre cavalgava à frente com grande rapidez. Em pouco tempo, chegaram ao sopé da montanha e começaram a subir, um passo de cada vez. A montanha era assim:
O vento soprava suavemente entre as árvores, e a água corria nos vales profundos. Nem corvos ou pardais conseguiam voar sobre ela, e até mesmo os imortais a achavam desafiadora. Mil penhascos e dez mil desfiladeiros, bilhões de curvas e centenas de baías. A poeira rodopiava sem que ninguém chegasse ali, e as pedras estranhas pareciam incontáveis. Em alguns lugares, as nuvens se moviam como água, e em outros, as árvores estavam cheias de canto de pássaros. Veados pastavam em ervas sagradas, macacos colhiam pêssegos. Raposas e texugos saltavam sobre os penhascos, enquanto javalis corriam pelas cristas das montanhas. De repente, o rugido de um tigre encheu o ar, assustando qualquer um que ouvisse, e leopardos manchados e lobos cinzentos bloqueavam o caminho.
Ao ver isso, Tang Sanzang ficou apavorado. Mas Sun Wukong, com seus grandes poderes, brandiu seu bastão de ouro e, com um rugido, assustou os lobos, tigres, leopardos e abriu caminho para seu mestre, guiando-o montanha acima. Depois de atravessarem a crista da montanha e descerem para uma área plana, de repente viram uma luz auspiciosa, com névoas coloridas ao redor. Havia um complexo de pavilhões e palácios, com o som suave de sinos e gongos flutuando no ar. Tang Sanzang perguntou: "Discípulos, que lugar será esse?" Sun Wukong olhou para cima, usando a mão para fazer sombra, e observou atentamente. A visão que ele viu era magnífica:
Pavilhões preciosos e tronos adornados, com cúpulas sagradas. O vale era repleto de sons naturais, e o ambiente era perfumado com incenso celestial. Pinheiros verdes cobertos de chuva escondiam os altos pavilhões, e bambus verdes com nuvens protegiam os salões de meditação. A luz das nuvens sugeria um palácio celestial, e as cores brilhantes se estendiam até o fim da terra. Cercas vermelhas e portas de jade, vigas esculpidas e colunas pintadas. Discussões sobre sutras enchem o ar com fragrância, enquanto conversas sobre escrituras ecoam sob a luz da lua. Pássaros cantam nas árvores vermelhas, e garças bebem água perto das fontes de pedra. Jardins floridos cercam o paraíso, e três portões abertos revelam a luz de Shravasti. Torres imponentes recebem os visitantes, e o som dos sinos ressoa suavemente. As janelas abertas deixam entrar o vento suave, e as cortinas levantadas revelam a fumaça nebulosa. Aqui, os monges vivem sem desejos mundanos, e a paz reina neste verdadeiro paraíso, longe do mundo mortal.
Depois de observar tudo isso, Sun Wukong voltou-se para Tang Sanzang e disse: "Mestre, esse lugar parece ser um templo, mas dentro dessa névoa auspiciosa há também uma aura sinistra. Embora se pareça com o Templo do Grande Trovão (Leiyin), o caminho parece um pouco diferente. Acho que não devemos entrar de forma imprudente, pois podemos acabar caindo em uma armadilha." Tang Sanzang respondeu: "Se parece com o Templo do Grande Trovão, poderia ser o Monte Ling? Não deixe que sua desconfiança atrapalhe nossa jornada e nossa devoção." Sun Wukong respondeu: "Não, não é. Já percorri o caminho para o Monte Ling várias vezes, e este não é o caminho." Zhu Bajie acrescentou: "Mesmo que não seja, certamente há pessoas boas vivendo aqui." Sha Wujing comentou: "Não precisamos nos preocupar tanto. Esta estrada nos leva diretamente à entrada; ao chegarmos lá, tudo ficará claro." Sun Wukong concordou: "Wujing tem razão."
O mestre Tang Sanzang, ansioso, chicoteou o cavalo e galopou até o portão da montanha. Ao chegar, viu as grandes palavras "Templo do Trovão" (雷音寺) escritas, e, em pânico, caiu do cavalo e se prostrou no chão, gritando: "Maldito macaco! Você está me enganando, isso realmente é o Templo do Trovão!" Sun Wukong, rindo, disse: "Mestre, não se irrite. Olhe novamente. O portão da montanha tem quatro palavras, como você leu apenas três e ainda me culpa?" Tremendo, Tang Sanzang se levantou e olhou de novo, e realmente havia quatro palavras: "Templo do Pequeno Trovão" (小雷音寺). Tang Sanzang então disse: "Mesmo sendo o Templo do Pequeno Trovão, deve haver um Buda dentro. As escrituras falam de três mil Budas, e todos não estão em um único lugar: por exemplo, Guanyin está no Mar do Sul, Puxian em Emei, Wenshu em Wutai. Não sei qual Buda reside aqui. Há um antigo ditado: 'Onde há um Buda, há escrituras, sem limites nem fronteiras.' Devemos entrar."
Sun Wukong, cauteloso, respondeu: "Não devemos entrar, este lugar é mais perigoso do que parece. Se houver problemas, não me culpe." Tang Sanzang disse: "Mesmo que não haja um Buda, deve haver uma estátua de Buda. Meu desejo é sempre venerar um Buda quando encontro um. Como posso culpá-lo por isso?"
Tang Sanzang então ordenou que Zhu Bajie trouxesse sua túnica de monge, trocou seu chapéu e, ajustando suas vestes, deu um passo à frente. De repente, ouviu uma voz de dentro do portão da montanha chamando: "Tang Sanzang, você veio do Leste para ver o Buda, por que está sendo tão lento?" Ao ouvir isso, Tang Sanzang imediatamente se ajoelhou e se curvou; Zhu Bajie e Sha Wujing também se prostraram. Apenas Sun Wukong, que segurava o cavalo e cuidava da bagagem, ficou para trás sem se curvar. Quando chegaram ao segundo portão, viram o Grande Salão do Buda. Fora do salão, sob uma plataforma preciosa, estavam dispostos quinhentos arhat, três mil kinnaras, quatro deuses guardiões, oito bodhisattvas, freiras, devotos laicos, e inúmeros santos monges e taoístas. O lugar estava realmente repleto de flores perfumadas e uma atmosfera auspiciosa. Tang Sanzang, Zhu Bajie e Sha Wujing, tomados pela reverência, se curvaram passo a passo até o centro da plataforma sagrada. Sun Wukong, no entanto, não se curvou.
De repente, ouviram uma voz severa vinda do trono de lótus, gritando: "Sun Wukong, por que você não se curva ao ver o Buda?" Percebendo a farsa, Sun Wukong abandonou o cavalo e a bagagem, pegou seu bastão de ouro e gritou: "Vocês, demônios audaciosos, como se atrevem a usar o nome do Buda para corromper sua pureza? Não fujam!" Com as duas mãos, ele girou o bastão e avançou para atacar. De repente, um som metálico ecoou do céu, e uma grande tigela de ouro desceu, prendendo Sun Wukong da cabeça aos pés dentro dela. Zhu Bajie e Sha Wujing, apavorados, brandiram suas armas, mas foram rapidamente cercados e capturados pelos arhat, kinnara e santos monges falsos. Tang Sanzang também foi amarrado e preso. Todos foram amarrados com cordas e amarrados com firmeza.
Na verdade, o "Buda" no trono de lótus era o rei dos demônios, e todos os arhat e demais figuras eram pequenos demônios disfarçados. Após capturarem os três discípulos, o rei dos demônios se revelou em sua forma verdadeira. Tang Sanzang e os outros foram levados para os fundos e aprisionados. Sun Wukong, preso dentro da tigela dourada, foi colocado em uma plataforma preciosa, onde permaneceria por três dias e noites, até que seu corpo se dissolvesse em sangue e pus. Somente após isso, a gaiola de ferro seria usada para cozinhar os outros três.
Assim diz o ditado: O macaco de olhos astutos reconhece a falsidade e a verdade, a iluminação vê além da aparência e adora o verdadeiro Buda. A mulher cega, sem saber, participa da adoração, a mãe estúpida conversa com o falso sem perceber. Os demônios nascem fortes e enganam por natureza, os chefes demônios nutrem o mal e enganam deuses e homens. De fato, o Tao é pequeno e os demônios são grandes, errar o caminho é um desperdício de vida.
Os demônios, então, guardaram Tang Sanzang e seus discípulos nos fundos, amarraram o cavalo e esconderam as vestes e o chapéu de monge de Tang Sanzang junto com a bagagem. O lugar estava protegido com força.
Dentro da tigela dourada, Sun Wukong estava em um completo breu, suando copiosamente, tentando escapar batendo de um lado para o outro, mas sem sucesso. Desesperado, ele brandiu seu bastão de ferro repetidamente, mas não conseguiu mover a tigela nem um pouco. Sem mais opções, Sun Wukong tentou aumentar seu tamanho, alongando-se até mil pés de altura; no entanto, a tigela dourada se expandiu junto com ele, sem deixar nenhuma fresta ou luz entrar. Então, ele encolheu até o tamanho de uma semente de mostarda, mas a tigela também encolheu proporcionalmente, sem abrir nenhuma saída.
Sun Wukong, frustrado, pegou seu bastão de ferro e, com um sopro de seu poder celestial, o transformou em uma haste para levantar a tigela. Ele então arrancou dois pelos longos de sua nuca, os transformou em brocas de cinco pontas, e começou a perfurar a tigela. Ele perfurou inúmeras vezes, fazendo sons de arranhão, mas sem sucesso. Desesperado, Sun Wukong recitou um encantamento: "Om, tranquilidade ao mundo, Qian Yuan Heng Li Zhen," convocando os cinco kinnaras, os seis Dings e os seis Jias, e os dezoito guardiões celestiais. Todos apareceram fora da tigela dourada e disseram: "Grande Sábio, estamos aqui protegendo seu mestre, evitando que os demônios o machuquem. Por que nos convocou?" Sun Wukong respondeu: "Meu mestre não me ouviu, e agora está em grande perigo. Como vocês podem rapidamente remover essa tigela e me libertar? Aqui dentro é escuro e sufocante, estou quase morrendo de calor!"
Os deuses tentaram levantar a tigela, mas mesmo com todos os seus esforços, ela não se moveu nem um milímetro. O líder dos kinnaras disse: "Grande Sábio, essa tigela é um tesouro muito poderoso, moldado como uma única peça de cima a baixo. Nossa força é insuficiente para movê-la." Sun Wukong respondeu: "Eu tentei de tudo aqui dentro, usei todos os meus poderes divinos, mas nada funcionou."
Jiedi (o mensageiro celestial) ouviu as palavras de Sun Wukong e imediatamente ordenou que os Seis Deuses Ding protegessem Tang Sanzang, enquanto os Seis Deuses Jia vigiassem a tigela de ouro. Os guardiões celestiais foram posicionados ao redor para observar tudo atentamente. Então, Jiedi elevou-se em uma nuvem auspiciosa e, em pouco tempo, entrou pelos portões do Céu do Sul. Sem esperar por uma convocação formal, ele correu diretamente para o Palácio Celestial, onde se prostrou diante do Imperador de Jade e relatou: "Senhor, eu sou Jiedi, o mensageiro dos cinco quadrantes. Atualmente, o Grande Sábio, Sun Wukong, está escoltando Tang Sanzang em sua jornada para obter as escrituras, mas encontrou uma montanha chamada Pequeno Templo do Trovão. Tang Sanzang, ao confundir esse lugar com o Monte Ling, entrou para venerar, mas descobriu que se tratava de uma armadilha criada por demônios, que agora prenderam ele e seus discípulos. Sun Wukong foi aprisionado dentro de uma tigela de ouro, sem saída, e está à beira da morte. Eu vim aqui para informar Vossa Majestade."
O Imperador de Jade imediatamente emitiu um decreto: "Envie as 28 constelações celestes para resgatar e subjugar os demônios rapidamente."
As constelações não perderam tempo, acompanhando Jiedi, e saíram pelos portões celestiais, chegando ao portão da montanha na hora do segundo turno da noite. Todos os demônios, grandes e pequenos, estavam adormecidos, pois o velho demônio os havia recompensado após capturarem Tang Sanzang. As constelações, silenciosas, chegaram à tigela de ouro onde Sun Wukong estava preso e disseram: "Grande Sábio, fomos enviados pelo Imperador de Jade, somos as 28 constelações celestes, aqui para resgatá-lo."
Sun Wukong, feliz ao ouvir isso, disse: "Quebrem essa tigela com suas armas, e eu poderei sair!" As constelações responderam: "Não podemos bater. Este objeto é um tesouro feito de ouro sólido; se o golpearmos, ele ressoará e alertará os demônios, tornando mais difícil o resgate. Vamos usar nossas armas para tentar cortar um caminho para você. Se vir um pequeno raio de luz, escape por ele." Sun Wukong respondeu: "Entendido."
Então, as constelações começaram a trabalhar: aqueles com lanças usaram-nas, aqueles com espadas, adagas e machados fizeram o mesmo. Alguns empurravam, outros levantavam, todos tentando de alguma forma abrir um caminho. Eles trabalharam até o terceiro turno da noite, mas a tigela não se moveu, permanecendo como uma peça sólida de metal. Dentro da tigela, Sun Wukong olhou de um lado para o outro, rastejando e rolando, mas não conseguiu ver nenhum sinal de luz.
Kang Jinlong (o Dragão Dourado), uma das constelações, disse: "Grande Sábio, não fique tão impaciente. Este tesouro certamente tem a capacidade de se transformar. Dentro da tigela, tente encontrar a costura onde as partes se juntam e a toque com sua mão. Vou encolher-me ao tamanho de uma agulha e introduzir meu chifre por essa junção. Quando o fizer, você deve se transformar e escapar pelo ponto fraco."
Sun Wukong seguiu as instruções e começou a procurar a costura dentro da tigela. Kang Jinlong então se transformou em um pequeno dragão e encolheu seu chifre até o tamanho de uma ponta de agulha, que ele inseriu na costura da tigela. Com grande esforço, ele usou toda a sua força para perfurar a tigela de dentro para fora. Quando finalmente conseguiu, ele murmurou um encantamento, fazendo seu chifre crescer até a espessura de uma tigela.
No entanto, a costura da tigela não era como metal fundido, mas parecia carne viva, apertando-se em torno do chifre de Kang Jinlong, sem deixar espaço para escapar. Sun Wukong, sentindo o chifre, disse: "Isso não está funcionando. Não há espaço livre, nem para cima nem para baixo. Não há outra escolha; você terá que suportar um pouco de dor e me ajudar a sair."
Sun Wukong então transformou seu bastão de ouro em uma broca de aço e fez um pequeno orifício no chifre de Kang Jinlong. Ele então diminuiu seu corpo até o tamanho de uma semente de mostarda e se espremeu no pequeno buraco, gritando: "Puxe o chifre para fora, puxe-o para fora!"
Kang Jinlong, com grande esforço, conseguiu puxar seu chifre para fora, mas usou tanta força que caiu exausto no chão.
Sun Wukong emergiu do orifício, retornando à sua forma original, e, com seu bastão de ferro em mãos, desferiu um golpe poderoso na tigela de ouro, que ressoou como o colapso de uma montanha de cobre ou a abertura de uma mina de ouro. A tigela, que era um artefato sagrado budista, quebrou-se em milhares de pedaços de ouro.
As 28 constelações ficaram assustadas com o impacto, e Jiedi ficou com os cabelos em pé. Todos os demônios, grandes e pequenos, acordaram de seus sonhos. O velho rei demônio, ainda meio adormecido, levantou-se rapidamente, vestiu suas roupas, e tocou o tambor para reunir todos os demônios, cada um empunhando suas armas. Naquele momento, o dia começava a clarear. Eles correram para a plataforma preciosa, onde encontraram Sun Wukong e as constelações cercando os pedaços quebrados da tigela de ouro, deixando-os atônitos. O rei demônio então ordenou: "Fechem os portões da frente rapidamente e não deixem ninguém escapar!"
Ao ouvir isso, Sun Wukong imediatamente pegou as constelações e voou para o céu. O rei demônio, cheio de ódio, recolheu os pedaços de ouro e, reunindo seus soldados demoníacos, alinhou-se do lado de fora do portão da montanha. Desesperado e cheio de rancor, o rei demônio vestiu sua armadura, pegou sua curta e flexível maça de dentes de lobo, e saiu para desafiar Sun Wukong, gritando: "Sun Wukong! Um verdadeiro homem não foge! Venha e lute comigo em uma batalha de três rodadas!"
Sun Wukong, incapaz de resistir ao desafio, liderou as constelações e desceu das nuvens para ver como era o demônio. E ele era assim:
Com cabelos despenteados, usava uma faixa de ouro simples; seus olhos brilhavam, e suas sobrancelhas eram amarelas e espessas. Seu nariz era grande e suas narinas abertas, e sua boca larga revelava dentes afiados. Ele usava uma armadura entrelaçada com correntes e uma faixa de seda com borlas. Calçava um par de sapatos pretos e empunhava uma maça de dentes de lobo. Sua forma era semelhante à de uma fera, mas não completamente; ele parecia humano, mas não exatamente.
Sun Wukong, segurando seu bastão de ferro, gritou: "Que tipo de monstro você é, ousando se disfarçar de Buda, invadindo esta montanha e fingindo ser o Templo do Pequeno Trovão?" O rei demônio respondeu: "Esse macaco não sabe meu nome, por isso veio ofender esta montanha sagrada. Este lugar é chamado de Pequeno Paraíso Ocidental. Eu obtive resultados em minha prática espiritual, e o céu me concedeu este palácio precioso. Meu nome é Velho Buda Sobrancelha Amarela, mas as pessoas aqui não me conhecem e me chamam de Grande Rei Sobrancelha Amarela ou Velho Sobrancelha Amarela. Sabendo que você estava vindo para o oeste, com algum poder nas mãos, preparei esta armadilha para atrair seu mestre. Quero apostar uma batalha com você. Se me vencer, pouparei a vida de vocês e permitirei que alcancem a verdadeira iluminação; mas se não puder, mato todos vocês, e eu mesmo irei buscar as escrituras, espalhando o verdadeiro caminho na China."
Sun Wukong riu e disse: "Demônio, não precisa se gabar. Se quer apostar, venha logo e receba o golpe do meu bastão." O rei demônio, alegre, pegou sua maça de dentes de lobo para enfrentar Sun Wukong. E assim começou uma batalha feroz:
Dois bastões, diferentes, mas ambos poderosos: um era uma arma suave e curta dos monges, o outro, duro como o mar escondido. Ambos podiam se transformar conforme a vontade, e agora se enfrentavam para mostrar sua força. A maça de dentes de lobo, curta e flexível, adornada com cores vibrantes; o bastão dourado de Sun Wukong, duro como uma serpente dragão. Ambos podiam ser grossos ou finos, curtos ou longos, conforme desejado. O macaco e o demônio lutavam, sem misericórdia, cada golpe refletindo sua raiva e ódio. Nuvens e névoa cobriam o sol e as montanhas, enquanto os golpes iam e vinham, esquecendo-se da vida e da morte por causa de Tang Sanzang.
Eles lutaram por cinquenta rounds sem que houvesse um vencedor. Enquanto isso, no portão da montanha, os tambores rufavam e as bandeiras dos demônios tremulavam. De um lado, as 28 constelações celestiais e os cinco guardiões celestiais, todos armados, cercaram o rei demônio, assustando os demônios menores que estavam no portão, fazendo com que suas mãos tremessem e eles não conseguissem mais bater os tambores.
Mas o velho rei demônio não temia. Com uma mão, manejava a maça de dentes de lobo para se defender das armas das constelações; com a outra, retirou de sua cintura um pedaço de tecido velho e branco. Ele o lançou ao ar com um som rápido, e, num instante, capturou Sun Wukong, as 28 constelações e os cinco guardiões celestiais, enrolando-os todos no tecido e carregando-os sobre o ombro enquanto voltava para trás. Os pequenos demônios, exultantes com a vitória, retornaram triunfantes. O velho demônio ordenou que trouxessem 30 ou 50 cordas de cânhamo para amarrar o tecido. Um por um, os prisioneiros foram amarrados, todos estavam com os músculos fracos e a pele enrugada. Eles foram carregados para os fundos e jogados ao chão, sem discriminação. O rei demônio então ordenou que preparassem um banquete, e beberam e festejaram do amanhecer até o anoitecer, antes de se retirarem para dormir.
Enquanto isso, Sun Wukong e os deuses estavam amarrados até a meia-noite, quando de repente ouviram alguém chorando. Ao escutar atentamente, Sun Wukong percebeu que era Tang Sanzang, lamentando:
"Me arrependo de não ter te ouvido na época, e agora sofremos esse desastre. Preso dentro da tigela de ouro, você foi ferido, e quem saberá das minhas amarras de cânhamo? Quatro pessoas se encontram num destino amargo, e todo nosso esforço agora parece em vão. Como podemos superar essas dificuldades e continuar a jornada para o oeste?"
Ouvindo isso, Sun Wukong sentiu compaixão e pensou: "Embora meu mestre não tenha me escutado antes, ele ainda pensa em mim durante o infortúnio. Aproveitarei esta noite silenciosa, enquanto os demônios dormem, para libertar todos e escapar."
O grande sábio usou uma técnica de evasão, encolhendo seu corpo para se soltar das cordas. Ele se aproximou de Tang Sanzang e sussurrou: "Mestre." Tang Sanzang reconheceu a voz e perguntou: "Como você chegou aqui?" Sun Wukong calmamente explicou tudo o que havia acontecido. Tang Sanzang, feliz, disse: "Discípulo, por favor, me salve. A partir de agora, confiarei em você para lidar com tudo."
Sun Wukong então libertou seu mestre, seguido por Zhu Bajie e Sha Wujing. Ele também libertou as 28 constelações e os cinco guardiões celestiais. Ele trouxe o cavalo e os instruiu a sair rapidamente. Assim que saíram, perceberam que as bagagens não estavam por perto, então voltaram para procurar. Kang Jinlong (o Dragão Dourado) disse: "Você dá mais valor às coisas do que às pessoas. Já salvou seu mestre, por que ainda está procurando as bagagens?" Sun Wukong respondeu: "As pessoas são importantes, mas as relíquias são ainda mais. Dentro das bagagens estão os documentos de passagem, a túnica bordada e a tigela de ouro, todos tesouros sagrados do budismo. Como posso deixá-los para trás?" Zhu Bajie sugeriu: "Irmão, vá procurar. Nós iremos para a estrada e o esperaremos lá."
As constelações, junto com Tang Sanzang, usaram uma técnica mágica e, com a ajuda de uma rajada de vento, escaparam dos muros da montanha e se reuniram na estrada principal, esperando no sopé da colina.
Por volta do terceiro turno da noite, Sun Wukong, movendo-se silenciosamente, entrou novamente na montanha. Ele percebeu que as portas estavam bem fechadas. Subiu em uma torre alta e viu que todas as janelas estavam trancadas. Hesitante em descer, temendo que as janelas rangissem e acordassem os demônios, ele murmurou um encantamento e se transformou em um pequeno morcego, também conhecido como "rato celestial". Ele era assim:
Com cabeça pontuda, parecia um rato, e seus olhos brilhavam da mesma maneira. Tinha asas para sair ao anoitecer e se escondia durante o dia sem luz. Habitava buracos nos telhados e caçava mosquitos para se alimentar. Amava a luz clara da lua e sabia quando voar melhor.
Ele entrou sorrateiramente por uma abertura no telhado, passando pelas portas e janelas, e chegou ao centro do edifício. Ali, viu uma luz suave emanando debaixo de uma janela no terceiro andar, mas não era luz de vela, vaga-lume, névoa ou relâmpago. Ele voou e pulou até a janela e viu que a luz vinha das bagagens. Os demônios haviam tirado a túnica de Tang Sanzang e a jogado desordenadamente dentro da bagagem. A túnica era um tesouro sagrado, adornada com pérolas e joias raras, por isso emitia uma luz brilhante. Ao ver a túnica, Sun Wukong ficou feliz, voltou à sua forma original, pegou a bagagem e, sem se preocupar com as cordas, colocou-a sobre os ombros e começou a descer.
Infelizmente, ao descer, ele perdeu o equilíbrio e caiu no chão, fazendo um grande estrondo. E assim aconteceu: o velho demônio, que estava dormindo no andar de baixo, foi acordado pelo barulho. Ele pulou da cama, gritando: "Alguém está aqui! Alguém está aqui!" Os demônios, grandes e pequenos, acordaram, acenderam as luzes e começaram a gritar, correndo de um lado para o outro para investigar. Um deles relatou: "Tang Sanzang fugiu." Outro relatou: "Sun Wukong e os outros também fugiram." O velho demônio, em pânico, ordenou: "Fechem bem todos os portões!"
Ouvindo isso, Sun Wukong, temendo cair em outra armadilha, largou a bagagem e, com um salto mortal, escapou pela janela, fugindo rapidamente.
O demônio procurou por Tang Sanzang e os outros em todos os lugares, mas não conseguiu encontrá-los. Quando percebeu que o céu estava começando a clarear, ele pegou sua arma e liderou seus seguidores para persegui-los. Quando chegaram ao sopé da montanha, avistaram as 28 constelações celestes, os cinco guardiões celestiais e os demais deuses, todos envoltos em nuvens e névoa, esperando na encosta. O rei demônio gritou: "Para onde pensam que vão? Eu estou aqui!" Jiao Mu Jiao (a constelação do Dragão de Madeira) rapidamente alertou: "Irmãos, o monstro está vindo!" As outras constelações, como Kang Jinlong (o Dragão Dourado), Di Tu Fu (o Morcego de Terra), Fang Ri Tu (o Coelho do Sol), Xin Yue Hu (a Raposa da Lua), Wei Huo Hu (o Tigre de Fogo), Ji Shui Bao (o Leopardo de Água), e muitas outras, juntamente com os guardiões celestiais e os deuses protetores, assim como Zhu Bajie e Sha Wujing (mas sem Tang Sanzang, que estava separado com o cavalo branco), empunharam suas armas e avançaram juntos.
Ao ver a formação, o rei demônio riu friamente e assobiou, convocando quatro ou cinco mil demônios grandes e pequenos, todos fortes e ferozes, que se juntaram na encosta oeste da montanha. Uma grande batalha começou:
Os demônios malignos tentavam sobrepujar a verdadeira natureza, enquanto a verdadeira natureza, suave e pacífica, lutava para resistir aos demônios. Centenas de estratégias eram empregadas, mas escapar do sofrimento parecia impossível; mil métodos eram usados, mas não conseguiam alcançar a harmonia. Os céus enviaram suas tropas para apoiar, e os santos ajudaram na batalha. A proteção divina estava presente, mas a luta era implacável, com os demônios armando suas redes e armadilhas. De um lado, as bandeiras tremulavam e os gritos ecoavam; do outro, tambores rufavam e gongos soavam. As lâminas das lanças e espadas brilhavam sob a luz fria, e o ar estava impregnado de intenção assassina. Os soldados demoníacos eram ferozes e corajosos, e as tropas divinas lutavam com dificuldade. Nuvens de desespero cobriam o sol e a lua, e névoas escuras envolviam montanhas e rios. A luta era difícil e prolongada, tudo por causa da devoção de Tang Sanzang a Buda Amitabha.
O rei demônio, ainda mais corajoso, liderou seus seguidores para atacar.
No meio da batalha, sem um vencedor claro, Sun Wukong gritou: "O velho Sun está aqui!" Zhu Bajie se aproximou e perguntou: "E as bagagens?" Sun Wukong respondeu: "Minha vida estava em perigo; como poderia me preocupar com bagagens?" Sha Wujing, segurando seu bastão, disse: "Não há tempo para conversa, vamos derrotar o demônio primeiro." As constelações celestes, os guardiões e os deuses estavam cercados pelos demônios, e o velho rei demônio atacava os três. Sun Wukong, Zhu Bajie e Sha Wujing largaram suas armas e enfrentaram o inimigo com força total. O céu escureceu, e a batalha parecia interminável. Eles lutaram até que o Sol se pôs no oeste e a Lua apareceu no leste. O rei demônio, percebendo que o dia estava terminando, assobiou novamente, alertando seus demônios para ficarem atentos, e então tirou seu tesouro.
Sun Wukong percebeu que o demônio estava abrindo sua bolsa mágica e gritou: "Isso não é bom! Vamos fugir!" Sem se preocupar com Zhu Bajie, Sha Wujing ou os deuses, Sun Wukong deu um salto mortal e fugiu para os céus. Os outros, sem entender o que estava acontecendo, foram pegos pela bolsa mágica e, mais uma vez, capturados. O rei demônio recuou com seus soldados e voltou para o templo. Ele ordenou que trouxessem as cordas e amarrou todos novamente. Tang Sanzang, Zhu Bajie e Sha Wujing foram pendurados, e o cavalo branco foi amarrado atrás deles. Os deuses também foram amarrados e jogados em uma caverna subterrânea, que foi trancada e selada. Os demônios seguiram as ordens e se recolheram, encerrando o episódio.
Enquanto isso, Sun Wukong, seguro nas nuvens, percebeu que os demônios haviam recuado sem levantar bandeiras, e logo entendeu que todos os outros haviam sido capturados novamente. Ele desceu suavemente e pousou no topo da montanha leste, rangendo os dentes de raiva contra o monstro, enquanto lágrimas escorriam de seus olhos ao pensar em Tang Sanzang. Olhando para o céu, ele lamentou em voz alta: "Mestre, que destino cruel você deve ter para enfrentar tantos demônios em cada passo desta jornada? Como poderemos escapar de tais sofrimentos?"
Depois de lamentar por um longo tempo, Sun Wukong acalmou-se e começou a pensar, perguntando a si mesmo: "Que tipo de bolsa mágica é essa que o demônio tem, capaz de capturar tantos seres celestiais e guerreiros? Eu poderia pedir ajuda aos céus, mas temo que o Imperador de Jade possa se zangar comigo. Lembro-me de que há um poderoso deus no norte, conhecido como Zhenwu, o Venerável Exterminador de Demônios. Ele atualmente reside no Monte Wudang, na região de Nanzhan Buzhou. Vou até ele pedir ajuda para resgatar meu mestre."
Como diz o ditado: "Quando o caminho celestial não está completo, o macaco e o cavalo se dispersam, E quando o coração não tem um mestre, os cinco elementos ficam sem força."
O que acontecerá a seguir? Saberemos no próximo capítulo.
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arteriaemchamas · 2 months ago
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Jornada para o Oeste 63
CAPÍTULO 12: PURIFICANDO A ALMA, SOMENTE VARREDORES DE TORRES; SUBJUGANDO DEMÔNIOS E RETORNANDO AO MESTRE, É A PRÁTICA DO CULTIVO
No caminho espiritual, a prática nunca deve ser esquecida;
Em cada momento, é preciso alcançar a plenitude.
Cinco anos, dez mil, oitocentos e setenta e duas voltas.
Não deixe que a água espiritual seque,
Nem permita que o fogo de preocupação se intensifique.
Quando a água e o fogo se harmonizam, não há dano;
Os cinco elementos se conectam como um gancho.
A união do yin e yang eleva-se aos céus,
Montando uma grua para alcançar o paraíso,
Cavalgando sobre um dragão para chegar à ilha imortal.
Esta poesia, intitulada "Linjiang Xian", descreve a jornada do monge Tang Sanzang e seus três discípulos. Eles atravessaram as chamas da Montanha Flamejante e recuperaram a calma interior. Com o leque de puro yin em mãos, extinguiram o fogo furioso e continuaram sua jornada para o oeste, agora relaxados e tranquilos. Em poucos dias, cobriram a distância de oitocentos li. Caminhavam em paz, em direção ao oeste, durante o final do outono e o início do inverno, observando a paisagem:
Flores de crisântemo murcham e caem, enquanto novos botões de ameixa começam a florescer.
As aldeias colhem grãos, e em toda parte o aroma da comida é sentido.
As folhas caem das florestas distantes, revelando as montanhas,
Os riachos congelados e os vales sombrios estão mais claros.
O ar está denso e calmo, as criaturas em hibernação.
O yin e o yang estão em equilíbrio, o imperador da lua governa.
A água está em sua máxima força, enquanto o sol brilha suavemente.
O ar da terra desce, enquanto o ar do céu sobe.
O arco-íris desaparece sem deixar vestígios, os lagos começam a congelar.
As vinhas penduradas nos penhascos perdem suas flores,
O pinheiro e o bambu, tingidos pelo frio, parecem ainda mais verdes.
Os quatro viajantes seguiram por um longo tempo até que se aproximaram de uma cidade. Tang Sanzang puxou as rédeas do cavalo e disse aos seus discípulos: "Wukong, veja aquelas torres imponentes à frente. Que lugar é aquele?" Sun Wukong levantou os olhos e observou uma grande cidade. Verdadeiramente, era uma cidade magnífica:
Formada como um dragão, fortificada como uma tigre, cercada por muralhas douradas.
Dezenas de portões adornados com cúpulas luxuosas,
Torres e pavilhões se elevando nas nuvens, envoltos em névoa.
Ponte de jade e pedras preciosas, com feras esculpidas,
Palácios dourados onde sábios se reúnem.
Uma verdadeira capital divina, um paraíso celestial.
Protegida por milênios, a obra de um império eterno.
Bárbaros e estrangeiros se curvam ao poder do imperador,
Os mares e montanhas se reúnem para homenagear o santo.
As escadas imperiais estão limpas, as ruas reais são pacíficas.
As tavernas estão cheias de músicas e risos,
Nas torres de flores, o clima é de alegria.
Fora do palácio de Wei Yang, árvores eternas florescem,
E as fênixes cantam ao nascer do sol.
Sun Wukong comentou: "Mestre, aquela cidade é a morada de um rei." Zhu Bajie riu: "Toda cidade grande tem um governo ou sede administrativa. Como você pode saber que é a morada de um rei?" Sun Wukong respondeu: "Você não entende, a morada de um rei é diferente dos outros lugares. Veja quantos portões há em todas as direções, e a cidade se estende por muitos li, com torres elevadas e coberta por nuvens. Se não fosse a capital de um reino, como poderia ser tão magnífica?" Sha Wujing perguntou: "Irmão, embora você reconheça que é a morada de um rei, sabe o nome desta cidade?" Sun Wukong respondeu: "Como não há placa ou identificação, como podemos saber? Teremos que entrar na cidade e perguntar."
O Mestre Tang conduziu o cavalo até a entrada da cidade. Eles atravessaram uma ponte e, ao entrarem, viram que a cidade estava cheia de vida, com seis ruas principais e três mercados, onde os comerciantes faziam negócios prósperos. A cidade era vibrante, com pessoas vestidas em trajes elegantes e exibindo uma aparência nobre. Enquanto caminhavam, de repente, viram um grupo de monges, cada um carregando algemas e grilhões, mendigando de porta em porta. Seus trajes estavam em farrapos, em uma condição deplorável. Tang Sanzang suspirou e disse: "Quando um coelho morre, a raposa lamenta; é natural sentir compaixão por aqueles que são semelhantes a nós." Então, ele ordenou: "Wukong, vá até eles e pergunte por que estão sofrendo assim."
Sun Wukong obedeceu e chamou: "Ei, monges! De qual templo vocês são? Por que estão acorrentados dessa maneira?" Os monges se ajoelharam e responderam: "Senhor, somos monges injustamente acusados do Templo da Luz Dourada." Sun Wukong perguntou: "Onde fica o Templo da Luz Dourada?" Os monges responderam: "Vire naquela esquina e você o encontrará." Sun Wukong os conduziu até Tang Sanzang e perguntou: "Qual é a causa de sua injustiça? Conte-nos tudo." Os monges responderam: "Senhor, não sabemos de onde vocês vêm, mas seus rostos nos parecem familiares. Não ousamos falar aqui em público. Por favor, venham até uma colina deserta, onde poderemos explicar nosso sofrimento."
Tang Sanzang concordou: "Vamos até o templo deles e investiguemos a situação com mais detalhes."
Quando chegaram ao portão do templo, viram uma inscrição com sete caracteres dourados que dizia: "Templo da Luz Dourada, construído por decreto imperial para proteger o reino." Os discípulos e o mestre entraram e começaram a observar o local:
Os antigos santuários estavam frios, com lâmpadas apagadas,
Os corredores vazios varridos pelo vento.
Uma torre que se erguia até as nuvens,
Alguns pinheiros aqui e ali, cultivando a serenidade.
Flores murchas caíam sem visitantes,
Teias de aranha se espalhavam sob os beirais.
O tambor estava mudo, o sino pendurado em vão,
As pinturas nas paredes cobertas de poeira e sem cor.
O púlpito estava vazio, sem monges para ensinar,
Os salões de meditação estavam silenciosos, habitados apenas por pássaros.
Tão desolador e digno de lamento,
Tão solitário, que a tristeza parecia sem fim.
Embora houvesse incensários diante das estátuas de Buda,
As cinzas estavam frias e as flores murchas, com tudo em ruínas.
Tang Sanzang, com o coração pesado, não conseguiu conter as lágrimas ao ver a condição do templo. Os monges, ainda acorrentados, abriram o salão principal e pediram ao mestre que entrasse para orar. Tang Sanzang entrou no salão, ofereceu incenso e recitou suas orações, batendo os dentes três vezes. Depois, ele foi para os fundos do templo, onde viu que mais seis ou sete jovens monges estavam acorrentados às colunas do pátio, o que o deixou ainda mais comovido.
Ao chegarem à sala do abade, os monges se ajoelharam e perguntaram: "Senhores, cada um de vocês parece diferente dos outros. Seriam vocês os veneráveis monges que vieram do Grande Tang, no Oriente?" Sun Wukong riu e perguntou: "Como vocês, monges, podem prever o futuro? Sim, somos nós. Como vocês nos reconheceram?" Os monges responderam: "Senhor, não temos o poder de prever o futuro. Mas, em nossa miséria e sofrimento, não temos como expressar nossa dor. Clamamos aos céus e à terra todos os dias, e parece que nossas súplicas finalmente chegaram aos ouvidos dos deuses. Na noite passada, todos nós tivemos o mesmo sonho: um monge sagrado do Grande Tang viria nos salvar e nos livrar deste sofrimento. Hoje, ao verem a aparência incomum de vocês, soubemos que eram os enviados do céu para nos resgatar."
Tang Sanzang, ao ouvir isso, ficou muito contente e perguntou: "Que lugar é este? Qual é a causa de sua injustiça?" Os monges, ajoelhando-se, responderam: "Senhor, esta cidade é chamada de Jisai, uma importante nação do ocidente. No passado, recebíamos tributos das quatro direções: ao sul, do reino de Yuetuo; ao norte, do reino de Gaochang; ao leste, do reino de Xiliang; e ao oeste, do reino de Benbo. Anualmente, eles enviavam tributos de jade, pérolas, concubinas e cavalos valiosos. Nossa nação não precisou empregar armas nem travar guerras, e ainda assim, todos se curvavam diante de nosso poder."
Tang Sanzang comentou: "Se eles se curvavam diante de sua nação, deve ser porque o rei governava com sabedoria, e seus ministros eram virtuosos." Os monges responderam: "Senhor, nem os ministros eram virtuosos, nem o rei era sábio. Nossa nação não foi abençoada com bons governantes. Este Templo da Luz Dourada sempre foi envolto em nuvens auspiciosas e emanava uma luz radiante: à noite, emitia um brilho que era visto a milhares de li; durante o dia, exalava uma energia luminosa que era admirada por todas as nações. Por isso, nossa cidade era considerada uma capital divina, e as nações vizinhas nos enviavam tributos."
Eles continuaram: "No entanto, três anos atrás, na primeira noite do mês de Mengqiu, durante a meia-noite, uma chuva de sangue caiu sobre a cidade. Quando o dia amanheceu, o medo e a tristeza tomaram conta de todos. Os ministros informaram o rei, mas ninguém sabia o motivo da ira celestial. O rei então convocou taoístas para realizar rituais e monges para recitar sutras, na esperança de aplacar os céus e a terra. Mas, surpreendentemente, a chuva de sangue manchou a torre dourada do templo, e desde então, as nações estrangeiras pararam de enviar tributos. Nosso rei, furioso, desejava declarar guerra, mas os ministros o aconselharam que os monges do templo haviam roubado os tesouros da torre, e por isso as nuvens auspiciosas desapareceram e os tributos cessaram. O rei, ignorante, acreditou nos ministros corruptos e ordenou que nós, monges, fôssemos capturados e torturados para confessar o roubo. Havia três gerações de monges no templo: as duas primeiras não suportaram a tortura e morreram; agora, nossa geração também foi capturada, e estamos sendo acusados e punidos injustamente. Senhor, como poderíamos ser tão desonestos a ponto de roubar os tesouros da torre? Imploramos que o senhor, com sua grande compaixão e poder, nos salve desta injustiça."
Tang Sanzang, ouvindo isso, balançou a cabeça e suspirou: "Este é um caso complexo e difícil de esclarecer. Por um lado, o governo está em desordem; por outro, vocês sofrem uma calamidade. Se a chuva de sangue caiu e manchou a torre, por que vocês não relataram isso ao rei na época, para evitar esse sofrimento?" Os monges responderam: "Senhor, somos apenas mortais, como poderíamos entender os desígnios celestiais? Além disso, as gerações anteriores não conseguiram esclarecer a situação, como poderíamos lidar com isso agora?"
Tang Sanzang então perguntou a Sun Wukong: "Wukong, que horas são agora?" Sun Wukong respondeu: "Estamos por volta do final da tarde." Tang Sanzang disse: "Quero me encontrar com o rei para trocar os documentos de viagem, mas esta questão dos monges injustiçados precisa ser resolvida antes. Quando saí de Chang'an, fiz um voto no Templo do Portal da Lei: ao viajar para o oeste, onde quer que encontrasse um templo, acenderia incenso e faria orações, e onde quer que encontrasse uma torre, a varreria. Hoje, cheguei aqui e encontrei monges sofrendo injustamente por causa da torre. Wukong, prepare uma nova vassoura para mim. Após o banho, subirei à torre para varrê-la, examinar a mancha e a causa do desaparecimento da luz sagrada. Somente depois disso poderei encontrar o rei e ajudá-los a resolver esse problema."
Ao ouvirem isso, os monges acorrentados correram para a cozinha, pegaram uma faca de cozinha e entregaram a Zhu Bajie, dizendo: "Senhor, use esta faca para abrir as correntes que prendem os pequenos monges à coluna, para que possam preparar uma refeição e um banho para o senhor." Zhu Bajie riu e disse: "Abrir correntes é fácil! Não preciso de faca ou machado, basta chamar nosso velho mestre de rosto peludo, que é especialista em abrir fechaduras." Sun Wukong, de fato, aproximou-se e usou um feitiço para abrir as correntes com um simples toque, fazendo com que todas as trancas caíssem. Os pequenos monges correram para a cozinha, limparam os potes e panelas e prepararam chá e uma refeição. Após o jantar, à medida que o céu escurecia, os monges acorrentados trouxeram duas vassouras novas, para a alegria de Tang Sanzang.
Enquanto falavam, um pequeno monge acendeu uma lamparina e convidou o mestre para tomar banho. Sob o céu estrelado e o brilho da lua, o toque dos tambores no alto da torre ecoava. Era uma noite tranquila, e a cena era assim:
Um vento frio soprava por todas as paredes,
Enquanto milhares de luzes brilhavam nas casas.
Nas seis ruas, as portas e janelas estavam fechadas,
Nos três mercados, os portões estavam trancados.
Os pescadores retornavam às suas cabanas,
Os lavradores guardavam seus arados.
Os lenhadores descansavam suas machadinhas,
Enquanto os estudantes recitavam seus livros.
Após o banho, Tang Sanzang vestiu uma túnica de mangas curtas, amarrou o cinto e calçou um par de sapatos macios. Com uma nova vassoura na mão, disse aos monges: "Vocês podem descansar, eu vou varrer a torre agora." Sun Wukong sugeriu: "Como a torre foi manchada pela chuva de sangue, e está sem luz há muito tempo, pode haver criaturas malignas lá dentro. Além disso, está frio e ventoso à noite, e ir sozinho pode ser perigoso. Permita que eu o acompanhe." Tang Sanzang concordou: "Muito bem, muito bem." Os dois, cada um com uma vassoura, foram primeiro ao salão principal, onde acenderam as lâmpadas de cristal e queimaram incenso. Tang Sanzang orou diante do Buda: "Eu, Chen Xuanzang, enviado pelo Grande Tang do Oriente, estou viajando ao Monte Sagrado para encontrar o Buda e buscar as escrituras. Hoje, cheguei ao Templo da Luz Dourada em Jisai, onde os monges me informaram que a torre foi manchada, e o rei, suspeitando de roubo, os acusou injustamente. Não há como esclarecer essa situação. Eu, discípulo devoto, varrerei a torre com sinceridade, e espero que a sabedoria do Buda revele a causa da mancha e da perda de luz, para que possamos livrar esses monges de sua injustiça."
Após a oração, ele e Sun Wukong abriram a porta da torre e começaram a varrê-la de baixo para cima. A torre era verdadeiramente impressionante:
Elevando-se para o céu, imponente e magnífica,
Era chamada de Torre de Cristal de Cinco Cores, com seu pico de relíquias douradas.
Os degraus em espiral pareciam atravessar cavernas,
As portas abertas como se libertassem aves enjauladas.
Os reflexos dos frascos sagrados brilhavam sob a lua,
O som dos sinos dourados ecoava pelo vento do mar.
Sob os beirais abertos, estrelas brilhavam,
No topo, as nuvens pairavam.
Os beirais decorados formavam esculturas habilidosas de fênix,
No topo, dragões esculpidos pareciam emergir das nuvens.
De longe, podia-se ver a mil li de distância,
Subindo, parecia estar nas alturas celestiais.
Lâmpadas de cristal adornavam cada porta, cobertas de poeira e sem luz,
Corrimãos de jade branco alinhavam os beirais, infestados de insetos.
Dentro da torre, diante das estátuas de Buda, o incenso havia se extinguido,
Fora das janelas, as faces dos deuses estavam cobertas de teias de aranha.
O incensário estava cheio de excrementos de ratos,
E as lâmpadas estavam vazias, sem óleo para queimarem.
Devido ao desaparecimento do tesouro no centro,
Os monges sofreram injustamente, suas vidas esvaindo-se em vão.
Tang Sanzang, com determinação, varreu a torre,
E logo o templo recuperou sua antiga glória.
ang Sanzang usou a vassoura para limpar um andar, depois subiu para o próximo. Assim, ele continuou limpando até chegar ao sétimo andar, quando já era por volta da meia-noite. O mestre começou a sentir-se cansado, e Sun Wukong disse: "Se está cansado, sente-se um pouco. Deixe que eu continue a varrer." Tang Sanzang perguntou: "Quantos andares tem essa torre?" Sun Wukong respondeu: "Acredito que tenha treze andares." O mestre, exausto, disse: "Precisamos limpar tudo, para cumprir meu voto." Ele então limpou mais três andares, mas suas pernas e costas doíam, então ele se sentou no décimo andar e disse: "Wukong, você pode limpar os três andares restantes para mim?" Sun Wukong, renovado em espírito, subiu ao décimo primeiro andar e logo ao décimo segundo. Enquanto limpava, ele ouviu vozes vindo do topo da torre. Sun Wukong exclamou: "Que estranho! Já passa da meia-noite, como pode haver alguém no topo da torre? Com certeza deve ser alguma criatura maligna. Deixe-me ver."
O Rei Macaco, leve como uma pluma, carregando a vassoura, ergueu sua roupa e subiu pela porta da frente, flutuando nas nuvens para observar. Ele viu que no coração do décimo terceiro andar estavam sentados dois demônios, com uma bandeja de comida, uma tigela e uma jarra de vinho à sua frente, jogando dados e bebendo alegremente. Sun Wukong usou seu poder divino, jogou a vassoura de lado, sacou seu bastão dourado, bloqueou a porta da torre e gritou: "Então, vocês são os ladrões que roubaram os tesouros da torre!" Os dois demônios, em pânico, se levantaram rapidamente, derrubando a jarra e a tigela. Sun Wukong levantou o bastão e disse: "Se eu os matar agora, não haverá ninguém para confessar os crimes. Vou apenas pressioná-los com o bastão." Os demônios ficaram encurralados contra a parede, sem chance de escapar, implorando: "Piedade, piedade! Não foi nossa culpa, o verdadeiro ladrão dos tesouros está em outro lugar." Sun Wukong usou uma técnica de captura, agarrou um dos demônios e o levou para o décimo andar da torre, onde disse: "Mestre, capturei o ladrão dos tesouros!" Tang Sanzang, que estava cochilando, ao ouvir isso, acordou assustado e feliz, perguntando: "Onde você o encontrou?" Sun Wukong trouxe o demônio à sua frente, forçando-o a se ajoelhar, e disse: "Eles estavam no topo da torre, jogando e bebendo. Foi quando ouvi o barulho, subi e os capturei. Eu os trouxe vivos para que possamos interrogá-los e descobrir onde estão os tesouros roubados."
O demônio, tremendo de medo, implorou por sua vida e confessou: "Nós dois somos enviados do Dragão Rei de Wansheng, do Lago da Onda Azul, para patrulhar a torre. Meu nome é Benbo'erba e o dele é Babao'erben; ele é um monstro peixe e eu sou um demônio peixe negro. Nosso mestre, o Velho Dragão Wansheng, tem uma filha chamada Princesa Wansheng, que é incrivelmente bela. Ela se casou com um poderoso príncipe consorte de nove cabeças. Há dois anos, o Dragão Rei veio aqui, demonstrou seu grande poder, fez chover sangue e manchou a torre, roubando o relicário de Buda que estava dentro. A princesa também foi ao Palácio Celestial, em frente ao Salão Lingxiao, e roubou a Grama Espiritual de Nove Folhas da Rainha Mãe, que está sendo cultivada no fundo do lago, emitindo uma luz dourada e brilhante dia e noite. Recentemente, ouvimos dizer que Sun Wukong está viajando para o oeste em busca das escrituras e que ele possui grandes poderes. Por isso, fomos enviados para patrulhar e vigiar, preparando-nos para quando ele chegasse."
Sun Wukong, ao ouvir isso, riu friamente e disse: "Esses malditos demônios são tão desrespeitosos! Agora entendo por que o Rei Demônio Boi foi convidado para aquela festa; ele está aliado a essa quadrilha de malfeitores que só fazem o mal."
Enquanto Sun Wukong falava, Zhu Bajie e dois ou três pequenos monges subiam a torre, carregando lanternas, e disseram: "Mestre, depois de limpar a torre, por que você não foi dormir? Sobre o que estão conversando?" Sun Wukong respondeu: "Mano, você chegou na hora certa. Os tesouros da torre foram roubados pelo Velho Dragão Wansheng. Esses dois pequenos demônios estavam patrulhando a torre, vigiando-nos. Eu os capturei." Zhu Bajie perguntou: "Como se chamam? Que tipo de demônios são?" Sun Wukong respondeu: "Eles acabaram de confessar. Um se chama Benbo'erba, e o outro, Babao'erben; um é um monstro peixe, e o outro é um demônio peixe negro." Zhu Bajie, sacando sua pá de ferro, disse: "Já que são demônios e já confessaram, por que não matá-los agora?" Sun Wukong respondeu: "Você não entende. Precisamos mantê-los vivos para apresentar ao imperador como prova e para nos ajudar a rastrear os tesouros roubados." O tolo realmente guardou sua pá, agarrou um demônio em cada mão, e os trouxe para baixo da torre. Os demônios imploravam por suas vidas, mas Zhu Bajie disse: "Vamos transformar vocês em sopa de peixe para alimentar os monges injustiçados!"
Os pequenos monges, felizes, segurando as lanternas, guiaram o mestre para fora da torre. Um deles correu à frente para informar os outros monges: "Boa notícia, boa notícia! Finalmente, a justiça será feita! Os demônios que roubaram os tesouros foram capturados pelos mestres!" Sun Wukong ordenou: "Tragam correntes de ferro e prendam esses demônios pelos ossos das clavículas. Vigiem-nos bem. Vamos dormir agora e resolveremos isso amanhã." Os monges guardaram os demônios com rigor, enquanto Tang Sanzang e seus discípulos foram descansar.
Ao amanhecer, Tang Sanzang disse: "Eu e Wukong iremos ao palácio para trocar as cartas de salvo-conduto." O mestre vestiu sua túnica de brocado, colocou o chapéu de pilu e ajustou suas vestes antes de seguir em frente. Sun Wukong também ajustou sua saia de pele de tigre, arrumou a túnica de linho e pegou as cartas de salvo-conduto para acompanhá-lo. Zhu Bajie perguntou: "Por que não levar esses dois demônios?" Sun Wukong respondeu: "Primeiro vamos apresentar nosso caso ao rei, e então ele enviará oficiais para buscá-los." Assim, eles caminharam até o portão do palácio. Lá, ficaram impressionados com a majestade do lugar, com dragões dourados e fênixes vermelhas decorando as construções. Ao chegarem ao Portão Leste, Tang Sanzang fez uma reverência ao oficial da entrada e disse: "Por favor, informe ao rei que um humilde monge, enviado do leste da Terra de Tang para buscar as escrituras no oeste, deseja encontrar-se com Sua Majestade para trocar as cartas de salvo-conduto." O oficial, de fato, informou o rei, que, ao ouvir a mensagem, imediatamente ordenou que fossem trazidos à sua presença.
Tang Sanzang e Sun Wukong foram então levados ao palácio. Os ministros civis e militares, ao verem Sun Wukong, ficaram alarmados, alguns dizendo que ele era um monge com rosto de macaco, outros que ele tinha a boca de um deus do trovão. Todos ficaram apreensivos e evitavam encará-lo por muito tempo. Tang Sanzang, no entanto, fez uma reverência respeitosa ao rei, enquanto Sun Wukong, de pé ao lado, permanecia firme e sem se curvar. Tang Sanzang apresentou-se ao rei, dizendo: "Sou um monge do leste da Terra de Tang, enviado ao Templo do Grande Trovão no oeste, na Índia, para buscar as escrituras sagradas. Passei por este reino e, com as cartas de salvo-conduto em mãos, solicito permissão para continuar minha jornada." O rei, feliz com a notícia, ordenou que o monge Tang fosse conduzido ao trono dourado e lhe ofereceu um assento em um banquinho bordado. Tang Sanzang subiu ao trono, entregou as cartas de salvo-conduto e, após agradecer, sentou-se.
O rei examinou as cartas e, feliz, comentou: "Seu imperador é realmente sábio, escolhendo um monge tão piedoso para enfrentar uma jornada tão longa em busca das escrituras. Mas, em contraste, os monges do meu reino se dedicam apenas a atos malignos, colocando o país em perigo." Tang Sanzang, juntando as mãos em respeito, perguntou: "Por que Sua Majestade diz que eles colocam o país em perigo?" O rei respondeu: "Este reino, sendo um dos principais do oeste, sempre foi honrado com tributos de várias nações, devido à presença da Torre de Ouro no Templo da Luz Dourada. No entanto, três anos atrás, os monges desse templo roubaram o tesouro sagrado da torre, e desde então a luz divina desapareceu. Por conta disso, as nações estrangeiras pararam de enviar tributos, causando grande aflição ao meu coração." Tang Sanzang, sorrindo, respondeu: "Majestade, 'um pequeno erro pode levar a grandes desastres'. Ontem à noite, quando entrei na cidade, vi vários monges acorrentados e perguntei sobre seus crimes. Disseram-me que eram do Templo da Luz Dourada e estavam injustamente presos. Após uma investigação mais profunda no templo, descobri que os monges não são os culpados. Na verdade, capturei os verdadeiros ladrões que roubaram o tesouro sagrado da torre."
O rei, radiante, perguntou: "Onde estão os ladrões?" Tang Sanzang respondeu: "Eles estão atualmente presos no Templo da Luz Dourada, sob a guarda de meu discípulo." O rei imediatamente ordenou que seus oficiais fossem ao templo buscar os ladrões para que ele pudesse julgá-los pessoalmente. Tang Sanzang, no entanto, acrescentou: "Embora os oficiais possam ser eficientes, ainda será necessário que meu discípulo os acompanhe para garantir que a missão seja cumprida." O rei perguntou: "Onde está seu discípulo?" Tang Sanzang apontou e disse: "Está ali, ao lado da escadaria de jade." Ao ver Sun Wukong, o rei ficou surpreso: "Se o monge é tão digno e distinto, como pode seu discípulo ter uma aparência tão assustadora?" Sun Wukong, ouvindo isso, respondeu em voz alta: "Majestade, 'não se pode julgar um livro pela capa, assim como não se pode medir a profundidade do mar com um balde'. Se a aparência fosse o critério principal, como se poderia capturar os ladrões?" O rei, percebendo a sabedoria nas palavras de Sun Wukong, disse alegremente: "O que importa aqui não é a aparência, mas sim a habilidade de recuperar o tesouro roubado."
O rei então ordenou que os oficiais preparassem uma carruagem para Sun Wukong e providenciassem uma escolta para acompanhá-lo ao Templo da Luz Dourada. Sun Wukong, com grande cerimônia, foi carregado na carruagem, acompanhado pelos oficiais e escoltado por soldados, que abriram caminho até o templo. O alvoroço despertou a curiosidade de todos na cidade, e muitos vieram ver o venerável monge e os ladrões capturados.
Zhu Bajie e Sha Wujing, ao ouvir o barulho, pensaram que se tratava dos oficiais enviados pelo rei e correram para recebê-los, apenas para descobrir que era Sun Wukong sentado na carruagem. Zhu Bajie, rindo, disse: "Irmão, finalmente você conquistou seu lugar de direito!" Sun Wukong desceu da carruagem e respondeu: "Do que você está falando?" Zhu Bajie brincou: "Você está sendo carregado em uma carruagem, com um guarda-sol amarelo, como se fosse um rei macaco de verdade! É por isso que digo que você finalmente alcançou seu verdadeiro destino." Sun Wukong, sorrindo, disse: "Não brinque assim." Ele então desceu os dois demônios, prontos para levá-los ao rei. Sha Wujing perguntou: "Irmão, você vai nos deixar aqui?" Sun Wukong respondeu: "Você fica aqui para guardar as bagagens e os cavalos." Os monges acorrentados disseram: "Deixem-nos cuidar disso enquanto vocês recebem as bênçãos do rei." Sun Wukong disse: "Muito bem, depois que informarmos o rei, voltaremos para libertá-los." Zhu Bajie agarrou um dos demônios, enquanto Sha Wujing segurou o outro, e Sun Wukong, mais uma vez, subiu na carruagem. Assim, eles seguiram em direção ao palácio, levando os dois demônios para serem apresentados ao rei.
Em pouco tempo, chegaram às escadas de mármore branco e disseram ao rei: "Os demônios capturados já foram trazidos." O rei desceu do trono e, junto com Tang Sanzang e os oficiais civis e militares, observou os prisioneiros. Um dos monstros tinha grandes mandíbulas negras, dentes afiados e uma aparência feroz; o outro tinha pele escorregadia, uma grande barriga, boca larga e longos bigodes. Embora pudessem andar, eram claramente seres que haviam assumido formas humanas. O rei perguntou: "Quem são vocês, de onde vêm, e que tipo de demônios são? Há quanto tempo invadem meu reino e quando roubaram meus tesouros? Quantos são ao todo e como se chamam? Contem tudo honestamente."
Os dois demônios, ajoelhados, com sangue escorrendo pelo pescoço, sem demonstrar dor, confessaram: "Há três anos, no primeiro dia do sétimo mês, o Rei Dragão das Dez Mil Santidades liderou muitos de seus parentes para se estabelecerem ao sudeste deste reino, a cerca de cem li de distância, em um lugar chamado Lago das Ondas Verdes, na Montanha das Rochas Caóticas. Ele tem uma filha muito bela, que se casou com um príncipe chamado 'Nove Cabeças', que é extremamente poderoso. Sabendo dos tesouros preciosos em sua torre, eles se uniram ao Rei Dragão para roubar os itens sagrados. Primeiro, causaram uma chuva de sangue e, depois, roubaram a relíquia de Buda da torre. Agora, a luz desses tesouros ilumina o palácio submarino deles, tornando a noite clara como o dia. A princesa, usando de sua habilidade, também roubou a Erva da Imortalidade de Nove Folhas da Rainha Mãe Celestial e a mantém em um lago, onde nutre os tesouros roubados. Nós não somos os principais responsáveis; somos apenas servos enviados pelo Rei Dragão para patrulhar a torre. Esta noite fomos capturados, e o que dissemos é a verdade."
O rei perguntou: "Se já confessaram, por que não dizem seus próprios nomes?" Um dos demônios respondeu: "Eu me chamo 'Benbo'erba' e ele se chama 'Babo'erben'. Eu sou um demônio peixe, e ele é um demônio peixe-negro." O rei ordenou que os prisioneiros fossem bem guardados e, em seguida, decretou: "Liberem os monges do Templo da Luz Dourada de suas correntes imediatamente. Preparem um banquete na Sala do Qilin para agradecer ao monge sagrado por capturar os demônios e discutirmos como capturar o líder dos ladrões."
Imediatamente, o templo começou a preparar um banquete com pratos vegetarianos e não vegetarianos. O rei convidou Tang Sanzang e seus discípulos para se sentarem na Sala do Qilin, onde perguntou: "Qual é o título do monge sagrado?" Tang Sanzang, juntando as mãos em respeito, respondeu: "Meu nome secular é Chen, e meu nome religioso é Xuanzang. O imperador do meu país me concedeu o nome de 'Tang', e sou comumente chamado de 'Tripitaka'." O rei então perguntou: "E como se chamam seus discípulos?" Tripitaka respondeu: "Meus discípulos não têm títulos. O primeiro se chama Sun Wukong, o segundo Zhu Wuneng e o terceiro Sha Wujing. Esses nomes foram dados pela Bodhisattva Guanyin do Mar do Sul. Como eles se tornaram meus discípulos, eu os chamo de 'Andarilho' para Wukong, 'Oito Preceitos' para Wuneng, e 'Monge' para Wujing." O rei, satisfeito com as apresentações, colocou Tripitaka na cadeira de honra, Sun Wukong à esquerda, e Zhu Bajie e Sha Wujing à direita. Todos os pratos servidos eram vegetarianos, com o rei sentado em frente a eles com um banquete de pratos não vegetarianos, seguido por centenas de oficiais civis e militares.
Após agradecerem ao rei, todos se sentaram. Durante o banquete, enquanto a música tocava, Zhu Bajie comeu vorazmente, devorando todos os pratos vegetarianos à sua frente, e, quando trouxeram mais comida, ele continuou a comer sem deixar nada para trás. Mesmo quando serviram vinho, ele não recusou uma única taça. A celebração durou até o meio da tarde, quando finalmente terminou.
Tang Sanzang agradeceu ao rei pelo banquete, mas o rei insistiu para que ficassem: "Este banquete é apenas uma pequena demonstração de gratidão por capturar os demônios. Preparem outro banquete na Sala do Palácio de Jianzhang, onde planejaremos como capturar o líder dos ladrões e recuperar o tesouro sagrado para a torre." Tripitaka respondeu: "Se o objetivo é capturar o ladrão e recuperar o tesouro, não precisamos de outro banquete. Podemos partir agora para capturar o demônio." Mas o rei insistiu, e todos foram levados para a Sala do Palácio de Jianzhang, onde outro banquete foi servido. Durante o banquete, o rei levantou a taça e perguntou: "Quem entre os monges sagrados liderará a missão para capturar o demônio?" Tripitaka respondeu: "Meu discípulo mais velho, Sun Wukong, irá." Sun Wukong aceitou a missão com uma reverência.
O rei perguntou: "Sun Chanshi, quantos homens e cavalos você precisa? Quando pretende sair da cidade?" Zhu Bajie, incapaz de conter-se, exclamou: "Para que precisamos de homens e cavalos? E por que devemos nos preocupar com o tempo? Vamos agora, com a barriga cheia e o espírito animado, e resolveremos isso num instante!" Tripitaka, contente, disse: "Bajie está mostrando diligência desta vez." Wukong disse: "Se é assim, Sha Wujing ficará para proteger o mestre, e nós dois iremos." O rei perguntou: "Vocês precisam de armas?" Bajie riu e respondeu: "As armas do seu reino não nos servem; nós trazemos as nossas próprias." O rei, ouvindo isso, pegou uma grande taça de vinho e brindou os dois monges antes de partirem. Sun Wukong disse: "Não precisamos de mais vinho. Apenas enviem os dois demônios conosco, para que possamos usá-los como guias." O rei então ordenou que os demônios fossem trazidos, e Wukong e Bajie, segurando-os, partiram com um feitiço de transporte em direção ao sudeste.
E assim eles partiram, com o rei e seus ministros finalmente compreendendo a verdadeira natureza dos monges sagrados. O que aconteceu a seguir na captura do demônio será revelado no próximo capítulo.
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arteriaemchamas · 2 months ago
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viaje al oeste
CAPÍTULO LXIII
LOS DOS MONJES SUMEN EL PALACIO DEL DRAGÓN EN UN DESORDEN TOTAL. LOS SABIOS RECOBRAN LAS CENIZAS Y DESTRUYEN A LOS MALVADOS.
Decíamos que, al ver al Gran Sabio y a Ba-Chie montar a lomos del viento y desaparecer entre las nubes con los dos diablillos, tanto el Señor del Reino del Sacrificio como sus súbditos, de todo rango y condición, se inclinaron ante el cielo y exclamaron, sobrecogidos:
—¡Hasta el día de hoy no habíamos creído de verdad que pudieran existir tales inmortales! ¡Son, en verdad, budas vivientes!
—Hasta mis ojos son mortales y sólo pueden ver lo que tienen delante —confesó el rey a Tripitaka y al Bonzo Sha, tan pronto como hubieron desaparecido Ba-Chie y el Peregrino—. Sabíamos que vuestros discípulos eran capaces de atrapar diablillos, pero jamás sospechamos que pudieran volar por encima de las nubes a lomos del viento.
—Vuestro indigno servidor —confesó Tripitaka con gesto humilde— no posee ningún poder mágico y depende totalmente de las habilidades de sus seguidores. ¿Cómo pensáis, si no, que he logrado llegar hasta aquí?
—A decir verdad, señor —confirmó el Bonzo Sha—, el mayor de mis hermanos no es ni más ni menos que el Gran Sabio, Sosia del Cielo, que sumió en su día en un desorden total el Reino Superior con la sola ayuda de su barra de los extremos de oro. No hubo nadie, entre todos los guerreros celestes, capaz de hacerle frente. Hasta el mismo Emperador de Jade y el propio Lao-Tse se sintieron impotentes ante él, y temblaban de espanto cuando oían mencionar su nombre. Por lo respecta al segundo de mis hermanos, os diré que no es otro que el Mariscal de los Juncales Celestes, que se ha arrepentido de sus antiguos yerros y ha abrazado el sendero de la Verdad. En sus tiempos llegó a tener bajo sus órdenes a un total de ochenta mil marineros, que patrullaban sin cesar el Río Celeste. Comparados con ellos, mis poderes son, realmente, insignificantes. Aun así, considero mi deber informaros que soy el Oficial Encargado-de-levantar-la-cortina y que he abrazado, gustoso, los principios de la religión. Aunque ninguno de nosotros valemos gran cosa, somos unos maestros a la hora de capturar monstruos y atrapar diablillos, detener ladrones y echar mano a los fugitivos, domar tigres y dominar dragones, poner patas arriba los Cielos y poner coto a la fuerza destructora de las aguas. Para nosotros no encierra ningún misterio montar en las nubes, cabalgar a lomos del viento, provocar lluvia, amainar la furia de los vientos, hacer cambiar de lugar a las estrellas, cargar con las montañas a la espalda y perseguir a la luna, entre otras muchas cosas más.
Tan larga relación hizo que aumentara el gran respeto que ya sentía el rey por el monje Tang. Le invitaba siempre a ocupar el puesto de honor y se dirigía a él con el título de «Buda respetable», mientras que al Bonzo Sha y a sus hermanos los llamaba, simplemente, «bodhisattvas». Pero, si grande era el respeto que levantaban entre todos los funcionarios, tanto militares como civiles, no era menor la alegría que todos experimentaban por tener entre ellos a seres tan extraordinarios. Desde el último rincón del país venían gentes a presentarles sus respetos, por lo que, de momento, no hablaremos más de ellos. Sí lo haremos, sin embargo, del Gran Sabio y de Ba-Chie, quienes a lomos de un viento huracanado, no tardaron en llegar, con los dos diablillos, a las inmediaciones del Lago de la Ola Verdosa, en el corazón mismo de la Montaña de las Rocas Esparcidas. Deteniéndose en el aire, el Gran Sabio echó una bocanada de aliento sagrado sobre la barra de los extremos de oro y gritó con potente voz:
—¡Transfórmate! —y al instante se convirtió en un cuchillo ritual, con el que cortó las orejas al espíritu del pez de color negro y el labio inferior al espíritu de la anguila. Los dejó caer a continuación en el agua y dijo en tono burlón:
—Id a informar de lo ocurrido al Rey Dragón de Todos los Espíritus. Decidle que acaba de llegar el Gran Sabio, Sosia del Cielo, y que exige la inmediata devolución de las reliquias al Monasterio de la Luz Dorada, en el Reino del Sacrificio. Si se aviene a mis peticiones, salvará su vida y la de toda su familia. Si, por el contrario, se niega a ellas, secaré completamente este lago y pasaré a cuchillo a todos sus moradores.
A pesar del dolor y de las cadenas que destrozaban sus pies y manos, los dos diablillos se sintieron felices de poder escapar con vida. Al entrar en el agua, se vieron rodeados en seguida por los espíritus de peces, gambas, cangrejos, tortugas marinas, lagartos acuáticos y toda clase de criaturas fluviales, que les preguntaron, sorprendidos:
—¿Cómo venís atados, como si fuerais malhechores?
Ninguno se atrevía a responder. Uno movía la cola con nerviosismo y sacudía, avergonzado, la cabeza, mientras el otro no dejaba de golpearse el pecho con las aletas. Comprendiendo que había ocurrido algo terrible, los curiosos los acompañaron en tropel hasta el palacio del Rey Dragón.
—¡Qué desgracia tan grande! —gritaron, desesperados, al entrar.
En aquel momento el Rey Dragón de Todos los Espíritus estaba tomando unas copas con su yerno Nueve Cabezas. Al oír el alboroto, dejó la botella a un lado y salió a toda prisa a ver qué pasaba.
—Ayer por la noche —informó uno de los diablillos con lágrimas en los ojos—, cuando fuimos de patrulla, tuvimos la mala fortuna de toparnos con el monje Tang y el Peregrino Sun, que estaban barriendo los escalones de la pagoda. Tras arrestarnos, nos cargaron de cadenas y esta misma mañana fuimos conducidos ante el rey, que nos trató aún peor que los monjes. Por si eso fuera poco, el Peregrino y ese tal Ba-Chie nos acaban de cortar las orejas y el labio inferior, aunque estamos contentos de haber podido salvar la vida. Si nos han dejado marchar, ha sido con el único fin de exigiros que devolváis las reliquias al monasterio del que las tomasteis.
Al oír el nombre del Gran Sabio, Sosia del Cielo, el Rey Dragón sintió tal pánico, que su espíritu le abandonó y tuvo la desagradable sensación de que había ascendido hasta el mismísimo noveno pliegue de los Cielos. Temblando como una hoja de bambú a merced de los vientos, se volvió hacia Nueve Cabezas y dijo:
—¡Ay, yerno, en qué situación más comprometida nos encontramos! No me hubiera importado enfrentarme a un ejército diez veces superior al mío, pero ése es un contrincante demasiado poderoso para nosotros.
—Tranquilizaos, por favor —replicó el yerno, sonriendo—. Desde mi juventud me he dedicado a la práctica de las artes marciales y he llegado a adquirir una cierta maestría en el manejo de las armas. Me he enfrentado, de hecho, con los luchadores más aguerridos de los cuatro mares. ¿Por qué iba a tener miedo de un mono? Os aseguro que después de tres asaltos agachará la cabeza, derrotado, y no se atreverá ni a mirarme a los ojos.
Los criados le ayudaron a ponerse la armadura, mientras él echaba mano del arma que le había hecho famoso: una espada terminada en una media luna. En dos zancadas abandonó el palacio y, abriéndose camino entre las aguas, salió a la superficie con el gesto imponente.
—¿Quién es ese Gran Sabio, Sosia del Cielo, que, según dicen, acaba de llegar? —gritó, fanfarrón—. ¡Que venga aquí inmediatamente y le enseñaré a dominar la lengua!
Desde la orilla el Peregrino y Ba-Chie le observaron, curiosos, y vieron que llevaba un yelmo tan brillante como la reverberación de la luz en la nieve, una coraza de acero cuyos reflejos recordaban las escarchas otoñales y una túnica de damasco con dibujos de nubes de colores y piezas de jade. Ceñía su cuerpo un cinturón hecho de piel de rinoceronte, que parecía una serpiente pitón moteada de lunares de oro. La espada terminada en una media luna lanzaba rayos de luz, que se reflejaban en sus lustrosas botas de piel de cerdo, de las que se servía para hendir las aguas y caminar por encima de las olas. Desde lejos daba la impresión de que su cabeza era su rostro, cosa que desmentía de cerca su aspecto sorprendentemente humano. De todas formas, sus rasgos aparecían repetidos, como si se reflejaran de continuo en un espejo. Para poder ver cuanto sucedía en los ocho puntos cardinales, tenía ojos por delante y por detrás. Poseía, igualmente, un total de nueve bocas, dos en cada lado, que le permitían hablar con una sonoridad tal, que hasta los planetas se enteraban de lo que decía, como si fuera el lamento de una garza. Por eso precisamente, se extrañó mucho de que nadie respondiera a su pregunta.
—¿Quién es ese Gran Sabio, Sosia del Cielo? —repitió, malhumorado.
El Peregrino se ajustó la arandela que, a manera de corona, llevaba en la cabeza y, acariciando su barra de hierro, contestó:
—El mismísimo Rey Mono en persona.
—¿Dónde moras actualmente y en qué lugar naciste? —volvió a preguntar el monstruo—. ¿Cómo es, además, que te erigieras defensor del monasterio del Reino del Sacrificio y de su corrupto rey? ¿Tan fuerte te crees para deshonrar a dos de mis capitanes de la forma como lo has hecho y venir a retarme a la puerta misma de mi palacio?
—¡Monstruo ladrón! —le insultó el Peregrino—. ¿Así que no sabes quién es tu abuelito Sun, eh? Acércate, que te lo voy a decir. Mi primera morada la establecí en la Caverna de la Cortina de Agua, que se halla enclavada en el corazón mismo de la Montaña de las Flores y Frutos. Desde mi juventud me dediqué al perfeccionamiento de mi cuerpo, logrando que el Emperador de Jade me concediera el título de Gran Sabio, Sosia del Cielo. No contento con eso, sumí el Reino Celeste en una total confusión, sin que ninguno de los guerreros que allí moran pudiera poner freno a mis correrías. Incapaces de castigarme con el rigor del que mis andanzas me habían hecho merecedor, solicitaron la ayuda de Buda, quien, valiéndose de la profundidad de su sabiduría, me hizo dar uno de los saltos a los que debo mi fama y me atrapó con su santa mano, convertida inexplicablemente en una montaña. Bajo ella estuve confinado quinientos años. Aún seguiría allí, de no haber intervenido en mi favor la Bodhisattva Kwang-Ing. El hermano del Gran Emperador de los Tang, el virtuoso Tripitaka, se disponía a partir hacia la Montaña del Espíritu en busca de escrituras sagradas y se me ofreció la posibilidad de obtener la libertad, si me comprometía a protegerle durante el camino. Me he dedicado a ello con tanto ahínco, que no sólo he alcanzado yo mismo la perfección, sino que he acabado con infinidad de diablillos y monstruos, para que otros se animen a seguir mi ejemplo. Al llegar al Reino del Sacrificio, tuvimos noticia de la gran injusticia que se había cometido con nuestros hermanos los monjes, dos tercios de los cuales habían perecido a manos del verdugo. Compadecidos de su suerte, decidimos restituirles el honor que habían perdido. Fue así como nos enteramos de que el monasterio había perdido el aura que hasta entonces había constituido su gloria. Con el fin de aclarar lo sucedido, mi maestro se ofreció a barrer, uno por uno, todos los escalones de la torre. A la hora de la tercera vigilia el silencio era absoluto. Eso me facilitó poder oír la conversación que estaban manteniendo tus dos monstruos, que confesaron que las reliquias sagradas habían sido robadas por el Rey Dragón de Todos los Espíritus y el esposo de la princesa del mismo nombre. Informaron, además, que, mientras ella se hacía con otro valiosísimo tesoro en los Cielos, vuestra banda acababa con la luminosidad del Monasterio, haciendo caer sobre él una lluvia de sangre. Esa misma confesión la repitieron al día siguiente en presencia del rey, que nos encargó que viniéramos a arrestaros a todos. Todo el mundo sabe quién es Sun Wu-Kung. Si devolvéis inmediatamente las reliquias a sus propietarios, perdonaré vuestras vidas y las de todos los que os sirven. Si, por el contrario, cometéis la imprudencia de medir vuestras armas con las mías, sabed que desecaré vuestro lago, arrojaré sobre él esa montaña y pereceréis aplastados bajo su peso.
—¿Cómo te atreves a meterte en los asuntos de los demás, si, como acabas de decir, no eres más que un monje en busca de escrituras? —replicó el yerno del dragón, sonriendo despectivamente—. ¿Qué te importa a ti que yo robe o deje de robar tesoros? Tú dedícate a lo tuyo. ¿A qué viene eso de querer luchar contra mí?
—¡Qué poco piensan los ladronzuelos como tú! —exclamó el Peregrino—. ¿Acaso crees que yo busco el favor real? No es él quien me da de comer ni me encuentro atado a su trono por ningún voto de lealtad. Al robar las reliquias sagradas, no sólo privaste de su aura al Monasterio de la Luz Dorada, sino que trajiste la desgracia sobre los monjes que lo atienden. ¿No se te ha ocurrido pensar que todos ellos son hermanos nuestros? ¿Cómo voy a quedarme impasible ante el sufrimiento que les ha acarreado tu incalificable conducta?
—Eso quiere decir que estás dispuesto a pelear, ¿no es así? —contestó el yerno del dragón—. Deberías tener presente que, como muy bien afirma el proverbio, «no existe nada más carente de sentimientos que la guerra». En el combate no hay piedad. No pienses que voy a andarme con remilgos a la hora de medir mis armas con las tuyas. Recapacita que, si acabo con tu vida, la misión esa de conseguir las escrituras va a sufrir un severo revés.
—¡Maldito ladrón! —gritó el Peregrino, perdiendo la paciencia—. ¡No tienes derecho a darme lecciones de moralidad! ¡Acércate aquí y te enseñaré a qué sabe la barra de tu abuelito!
El yerno del dragón no rechazó el reto. Al contrario, levantó la espada terminada en una media luna y paró limpiamente el golpe de la barra que se le venía encima. Dio, así, comienzo una extraordinaria batalla en el corazón mismo de la Montaña de las Rocas Esparcidas. Todo comenzó cuando el monasterio perdió su aura, el Peregrino atrapó a dos de los diablillos que habían participado en el robo de las reliquias sagradas e informó de lo ocurrido al rey. A eso siguió la devolución de los dos ladrones a las aguas, las consultas que el Rey Dragón mantuvo con sus consejeros y el deseo incontrolado de Nueve Cabezas por mostrar su maestría en el dificilísimo arte de la guerra. Ciego de orgullo, tomó sus armas y cometió la imprudencia de despertar las iras del Gran Sabio, Sosia del Cielo, cuya barra de hierro jamás había conocido la derrota. El monstruo se sentía seguro con sus nueve cabezas y sus dieciocho ojos, que brillaban como ascuas encendidas, pero no contaba con que los brazos del Peregrino eran capaces de resistir una presión de más de mil kilos de peso. La razón estaba, además, de su parte. De todas formas, la espada del monstruo, con su forma peculiar de media luna, poseía todo el poderío del yang[1] y hubiera terminado con la barra, de no ser ésta una de las manifestaciones del yin. Ambas estaban, pese a todo, dispuestas a obtener la victoria. Sin embargo, tras más de treinta asaltos y de volver, una y otra vez, a la carga, ninguna de ellas consiguió una ventaja apreciable. Ba-Chie había estado todo ese tiempo con los brazos cruzados, esperando a que la batalla adquiriera su punto más álgido. Cuando consideró que, por fin, éste había llegado, levantó el rastrillo por encima de la cabeza y lo dejó caer con fuerza sobre la espalda del monstruo. Sus ojos de atrás vieron venir el golpe y, haciéndose a un lado, consiguió parar con su magnífica espada tanto el rastrillo como la barra. La lucha adquirió, así, nuevos bríos, pero, tras seis o siete asaltos más, el monstruo comprendió que no podía seguir resistiendo un ataque tan brutal. De pronto, dio un salto magnífico y se manifestó tal cual era: un insecto de nueve cabezas, increíblemente repulsivo y feroz. Cualquier mortal hubiera perecido de miedo, al verle. Poseía una extraña cresta, que recordaba las plumas erizadas de un ave, y un cuerpo, fuerte como el acero, cubierto de unos pelos ensortijados. Medía cerca de tres metros y medio y su apariencia general era la de una tortuga alargada o la de un lagarto rechoncho. Por contraste, sus patas, que terminaban en una especie de garra acerada, recordaban las de un águila. Sus nueve cabezas estaban unidas como si fueran un ramo de flores. A juzgar por la fortaleza de sus alas, era capaz de remontarse por los aires con más majestuosidad que un halcón. Emitía, además, un sonido estridente, similar por su potencia al canto de una grulla, que llegaba hasta los mismos límites del Cielo. Sus ojos lanzaban rayos de una luz dorada, que hablaban a las claras del orgullo de aquella criatura alada, única en todo el universo. Horrorizado por su visión, Ba-Chie exclamó:
—¡Jamás había visto nada tan repelente! ¿Qué clase de animal puede formar en su seno una cosa tan asquerosa como ésa?
—Es, en verdad, repugnante —reconoció el Peregrino—, pero eso no le va a librar de los golpes de mi barra.
Dando un salto espectacular, el Gran Sabio se elevó hacia las nubes y lanzó un golpe terrible contra las cabezas de la criatura, que extendió, majestuosa, las alas y se hizo a un lado. Se deslizó a continuación por la ladera de la montaña y, dando un grito terrible, le salió del centro del pecho una cabeza más con una boca tan grande como los calderos que usan los carniceros. Con ella agarró al desprevenido Ba-Chie de las cerdas y se perdió con él en las aguas del Lago de la Ola Verdosa. En cuanto hubo entrado en el palacio del dragón, recobró la forma anterior y, arrojando a Ba-Chie a un rincón, gritó con voz potente:
—¿Se puede saber dónde os habéis metido todos?
Al punto apareció un auténtico enjambre de caballas, carpas y percas, acompañadas de una tortuga, un lagarto marino y otras bestias acuáticas, que respondieron a pleno pulmón:
—¡Aquí estamos, señor!
—Coged a este monje y atadle allí —ordenó el yerno del dragón—. Voy a vengar en él los ultrajes padecidos por los dos capitanes que envié de patrulla.
Los espíritus acuáticos agarraron a Ba-Chie y le metieron en el palacio, como si se tratara de un trofeo. En ese mismo instante apareció el Rey Dragón, que exclamó, complacido:
—Lo que acabas de hacer es digno de la mayor de las recompensas. ¿Cómo has conseguido capturarle?
El monstruo no se ahorró ningún detalle. Con su lengua de bestia le informó de cuanto había sucedido. Satisfecho, el Rey Dragón ordenó preparar un banquete para celebrar tan sonada victoria, por lo que, de momento, no hablaremos más de ellos. Sí lo haremos, sin embargo, del Peregrino, que, al ver la facilidad con la que Ba-Chie caía en las garras del monstruo, no pudo por menos de pensar:
—Esa bestia es, realmente, extraordinaria. Debería poner al maestro al tanto de cuanto ha ocurrido, pero me temo que el rey se burle de mí. Lo mejor será que me enfrente de nuevo a ese monstruo. Desgraciadamente en el agua no me defiendo tan bien como aquí fuera. Tendré que transformarme en alguna bestia acuática y tratar de averiguar qué ha sido del Idiota. Tengo que liberarle para poder seguir adelante con este enojoso asunto.
No había acabado de decirlo, cuando hizo un gesto mágico y al punto se convirtió en un cangrejo. De esa forma, no tuvo reparo en lanzarse a las aguas. No tardó en llegar a la puerta de los tejadillos. Conocía bien el camino, porque había sido allí donde había robado al Rey Toro su cabalgadura de los ojos dorados. Andando siempre de lado, el Peregrino traspuso un espléndido arco y vio al Rey Dragón bebiendo despreocupadamente con el insecto de las nueve cabezas y otros miembros de su familia. El Peregrino no se atrevió a acercarse a ellos. Enfiló uno de los pasillos y no tardó en encontrarse con un grupo de gambas y cangrejos, que también estaban celebrando la victoria. Uniéndose al jolgorio, preguntó, como quien no quiere la cosa:
—¿Ha muerto ya ese monje con el morro alargado que ha capturado el yerno de nuestro señor?
—No, no. Aún no —respondió uno de los espíritus—. Está atado en el pasillo que mira al oeste. ¿No oyes sus gritos?
El Peregrino se arrastró hasta el lugar que le habían indicado, donde, en efecto, vio al Idiota atado a una columna y lamentándose, como si acabaran de arrancarle la piel del cuerpo. Acercándose a él, le preguntó, muy bajito:
—¿Sabes quién soy, Ba-Chie?
—¿Qué podemos hacer? —contestó el Idiota, reconociendo en seguida la voz del Peregrino—. En vez de capturar a esa bestia, me ha atrapado ella a mí.
El Peregrino miró a su alrededor y, al no ver a nadie, le desató a toda prisa con sus pinzas. En cuanto se sintió libre, Ba-Chie volvió a preguntar:
—¿Qué vamos a hacer? Ese monstruo se ha quedado con mi arma.
—¿Sabes dónde la ha guardado? —inquirió el Peregrino.
—Debe de haberla llevado al salón principal del palacio —respondió Ba-Chie.
—Vete a la puerta de los tejadillos y espérame allí —le ordenó el Peregrino.
Temiendo aún por su vida, Ba-Chie se deslizó, sin hacer ruido, hacia el exterior del palacio. El Peregrino, por su parte, se arrastró, una vez más, hasta el salón principal, donde no tardó en descubrir, brillante como una gema, el arma de Ba-Chie. Valiéndose de la magia de la invisibilidad, no le costó trabajo hacerse con ella y corrió, alborozado, hacia la puerta de los tejadillos.
—Toma tu arma y no vuelvas a perderla —dijo a Ba-Chie.
—Creo que lo mejor será que vuelva ahí dentro y mida mis fuerzas con las de ese insecto. Si consigo ganar, capturaré a toda la familia del dragón. Si, por el contrario, mi brazo no despliega toda la potencia de la que es capaz, huiré hacia la orilla del lago, donde tú me estarás esperando con tu barra. No te preocupes por mí —añadió, cuando el Peregrino le aconsejó que no se expusiera demasiado—. Sé defenderme bien en el agua.
Más tranquilo, el Peregrino abandonó el palacio y se dirigió nadando hacia la orilla.
Tras estirarse la túnica de algodón negro y agarrar con las dos manos su preciado rastrillo, Ba-Chie dio un grito y se metió en el palacio, dando mandobles a diestro y siniestro. Los seres acuáticos que hacían la guardia entraron en tropel en el salón principal e informaron a su señor de lo ocurrido, diciendo:
—¡Qué gran desgracia se ha abatido sobre nosotros! Ese monje del morro estirado se ha librado de las cuerdas que le ataban y se ha vuelto contra nosotros.
El dragón, el insecto de las nueve cabezas y los demás miembros de la familia real no se esperaban una noticia como ésa. Abandonaron sin ningún orden la mesa y corrieron a esconderse donde podían. El Idiota no se detenía a mirar si sus víctimas eran jóvenes o entradas ya en años. Golpeaba sin piedad y seguía hacia delante. Así entró en el salón principal, derribando mesas y sillas, haciendo añicos los biombos y convirtiendo en polvo los vasos y platos, Sobre tan espectacular momento disponemos de un poema, que afirma:
La Madera Madre fue capturada por un monstruo acuático, pero el Mono de la Mente no la abandonó a su suerte. Valiéndose de un inteligentísimo truco, la liberó de sus cadenas y le permitió que desatara toda la furia que el cautiverio había ido acumulando en su espíritu. Al verla, el Rey Dragón se quedó mudo de espanto y la princesa y su esposo corrieron a esconderse.
Los arcos y las ventanas del palacio caían, hechos añicos, sobre los comensales, sumiendo a los hijos y a los nietos del dragón en un temor como jamás habían sentido en su vida. Ni los biombos de caparazón de tortuga ni las espléndidas plantas de coral escaparon al afán destructor de Ba-Chie. Su rastrillo arrasaba cuanto encontraba, como si fuera un ciclón. Hasta el mismo insecto de nueve cabezas corrió a refugiarse al interior del palacio. Pero, en cuanto hubo dejado a su esposa en un lugar seguro, recobró la calma y, echando mano de su terrible espada terminada en una media luna, volvió al salón, gritando:
—¿Cómo te atreves a avasallar de esta forma a los míos, cerdo irrespetuoso?
—¿Eres tú el que me lo preguntas, monstruo ladrón? —replicó Ba-Chie con desprecio—. La culpa de esto es exclusivamente tuya. Si no me hubieras capturado, jamás habría levantado la mano contra los tuyos. Entrégame inmediatamente las reliquias sagradas, para que se las lleve al rey, y te prometo que pondré fin a toda esta destrucción. De lo contrario, continuaré dando mandobles, hasta que haya acabado con toda tu familia.
Como era de esperarse, el monstruo no cedió a sus pretensiones. Rechinándole los dientes de rabia, se lanzó contra Ba-Chie. Sólo entonces se atrevió el Rey Dragón a iniciar el contraataque, al frente de sus hijos y nietos, blandiendo su terrible arsenal de cimitarras y lanzas. Al ver que la suerte se volvía en su contra, Ba-Chie se dio media vuelta y huyó a toda prisa, perseguido por los soldados acuáticos. Todos ellos eran excelentes nadadores y no tardaron en alcanzar la superficie del lago, precedidos por un aluvión de burbujas, que alertaron inmediatamente al Peregrino. Al ver aparecer a Ba-Chie, seguido tan de cerca por sus perseguidores, montó en una nube y empezó a golpear las aguas, al tiempo que gritaba, enardecido:
—¡No huyáis, cobardes!
Uno de los golpes alcanzó de lleno la cabeza del dragón, que quedó reducida a una masa informe de carne y huesos rotos. La sangre salpicó hasta el último rincón del lago, tiñéndolo completamente de rojo. Su cuerpo quedó flotando patas arriba en las olas, como si fuera un tronco con escamas. Sus hijos y nietos sintieron cómo las fuerzas los abandonaban y huyeron, despavoridos. Únicamente su yerno, Nueve Cabezas, tuvo la suficiente prestancia de ánimo para recoger el cadáver y regresar con él al palacio. El Peregrino y Ba-Chie no creyeron oportuno correr tras ellos. Se sentaron en la orilla y empezaron a calibrar lo que había ocurrido.
—Estoy convencido de que ese monstruo no querrá seguir peleando —dijo Ba-Chie—. Les he causado un tremendo número de bajas con mi rastrillo. Al principio cada cual se escondió donde pudo pero el insecto recobró en seguida la serenidad y el dragón trató de capturarme. Por eso hube de huir a toda prisa. Ha sido una suerte que hayas acabado con él, porque los funerales y el duelo los tendrán ocupados durante mucho tiempo y no pensarán en volver a coger las armas. ¿Qué podemos hacer mientras tanto? Se está haciendo un poco tarde.
—¿A quién le importa la hora que pueda ser? —replicó el Peregrino—. Deberíamos aprovechar la ocasión y seguir acosándolos. Así recuperaríamos cuanto antes las reliquias sagradas y podríamos regresar a la corte.
Pero el Idiota se sentía un poco cansado y, cediendo a la holgazanería, empezó a dar toda clase de excusas para no seguir adelante con el plan del Peregrino, que terminó diciendo:
—Está bien. Si no quieres seguir luchando, no lo hagas. Sólo te pido que los hagas salir del agua. Ya me encargaré yo de acabar con ellos.
No había terminado de decirlo, cuando vieron una extensa masa de nubes negras desplazarse a lomos de un viento fortísimo en dirección este-sur. Sorprendido, el Peregrino aguzó cuanto pudo la vista y vio que se trataba del Honorable Sabio Er-Lang y los otros seis miembros de la Hermandad de la Montaña de los Ciruelos. Con ellos viajaba una jauría de mastines y una bandada de halcones, así como un nutrido grupo de criados portando en larguísimas pértigas los cuerpos muertos de zorros, ciervos, antílopes y otras piezas de caza. Todos ellos llevaban un arco colgando de la cintura y una espada de afiladísima hoja en la mano.
—Aunque no lo creas —dijo el Peregrino, señalando las cinéticas figuras que se movían a la velocidad del viento—, también yo estoy unido a ellos por un pacto de hermandad. Creo que deberíamos pedirles que nos ayuden a acabar con los monstruos de ahí abajo. No podremos disponer después de una oportunidad como ésta.
—No veo razón alguna para no hacerlo, si de verdad son tus hermanos —contestó Ba-Chie.
—El problema es que el mayor de ellos, el Honorable Sabio Er-Lang, me derrotó en cierta ocasión y no me gustaría mostrarme grosero con él —confesó el Peregrino—. Creo que deberías arrodillarte en el centro del camino de nubes y decir: «¡Deteneos, inmortal! El Gran Sabio, Sosia del Cielo, desea presentaros sus respetos». Estoy seguro de que no se atreverá a seguir adelante. No me será, entonces, difícil convencerle, para que una sus fuerzas a las nuestras.
El Idiota montó a toda prisa en una nube y gritó con voz potente desde la cumbre de la montaña:
—¡Aminorad, por favor, la marcha de vuestros corceles y vuestros carros! El Gran Sabio, Sosia del Cielo, desea veros.
—¿Dónde se encuentra nuestro querido hermano? —preguntó el inmortal, haciendo un gesto a sus acompañantes, para que se detuvieran.
—Os espera en la ladera de esta montaña —respondió Ba-Chie, respetuoso.
—Invitadle a venir aquí —ordenó el inmortal, volviéndose hacia sus seis acompañantes, que respondían a los nombres de Kang, Chang, Yao, Li, Kuo y Chien.
—¡Sun Wu-Kung —gritaron, descendiendo por la montaña—, nuestro hermano mayor desea verte!
El Peregrino corrió hacia ellos y, tras saludarlos con el respeto debido, se dirigió a la cumbre, donde fue acogido por el Honorable Er-Lang con los brazos abiertos.
—He oído decir —añadió tras las consabidas frases de saludo— que se os había levantado el castigo y que habíais aceptado la disciplina budista en la misma Puerta de la Ceniza. Os felicito por vuestra decisión, ya que no me cabe la menor duda de que acabaréis sentándoos sobre un loto.
—Eso espero —contestó el Peregrino—. Son muchas las pruebas de amistad que de vos he recibido y es mi deseo corresponderos de la misma forma en el futuro. Aunque, como acabáis de decir, se me ha levantado el castigo y me encuentro ahora de camino hacia el Oeste, no sé si algún día alcanzaré la perfección suficiente para sentarme sobre un loto. Las dificultades son muchas y constantes los peligros. Si, de hecho, me encuentro ahora aquí, es con el fin de capturar a unos monstruos, que han robado unas reliquias sagradas a los monjes del Reino del Sacrificio. Por pura casualidad os hemos visto pasar y se me ha ocurrido que, quizás, podríais echarnos una mano. Eso si, claro está, no tenéis nada mejor que hacer y os lo permiten vuestras obligaciones.
—Por supuesto que sí —respondió Er-Lang, sonriendo—. Si he salido de caza, ha sido porque estaba un poco aburrido. Es todo un gesto de amistad que hayáis decidido solicitar nuestra colaboración en la empresa que ahora os traéis entre manos. Me halaga que hayáis detenido nuestra carrera. Pero ¿queréis explicarme qué tipo de monstruos habitan en esta comarca?
—Tal vez hayáis olvidado —dijo uno de los sabios que le acompañaban— que ésta es la Montaña de las Rocas Esparcidas y que en ella se encuentra el Lago de la Ola Verdosa, en cuyas aguas mora el Rey Dragón de Todos los Espíritus.
—Que yo sepa —replicó Er-Lang, sorprendido—, ese dragón jamás ha causado el menor problema. ¿Cómo es posible que haya robado las reliquias de un monasterio?
—Lo han hecho entre él y su yerno, un insecto de nueve cabezas —explicó el Peregrino—. Juntos dejaron caer sobre el Reino del Sacrificio una extraña lluvia de sangre y, de esa forma, pudieron hacerse con las cenizas sagradas que se conservaban en la torre del Monasterio de la Luz Dorada. El rey pensó que todo había sido obra de los monjes y los torturó despiadadamente hasta reducirlos a la tercera parte de su número original. Compadecido de su suerte, mi maestro se ofreció a barrer los escalones de la torre. Fue así como conseguí atrapar a dos diablillos que habían salido de patrulla y que al día siguiente hicieron una confesión completa en presencia del rey y de toda su corte. Su majestad nos encargó que capturáramos al resto de los culpables; ése es el motivo que nos trajo hasta aquí. En nuestro primer encuentro con ese monstruo de nueve cabezas casi logramos derrotarle, pero le creció una más justamente en el centro del pecho y consiguió llevarse prisionero a Ba-Chie. Afortunadamente, valiéndome de mis poderes metamórficos, le rescaté antes de que le despellejaran vivo. Eso provocó una nueva escaramuza, en la que el viejo dragón encontró la muerte. Sus súbditos cargaron a toda prisa con su cadáver. Precisamente estábamos discutiendo sobre la conveniencia de proseguir o posponer el ataque, cuando aparecisteis vos y nuestros otros respetables hermanos. La decisión está ahora en vuestras manos.
—Opino que es el mejor momento para atacar —contestó Er-Lang—. Están desorientados y podemos acabar con todos de un plumazo.
—Es posible —reconoció Ba-Chie—, pero se está haciendo demasiado tarde para eso.
—¿Para qué preocuparse de la hora, si, como afirma un estratega, «un ejército no debe dejar pasar la menor oportunidad de victoria»? —replicó Er-Lang.
—Mirándolo bien —dijo el sabio Gang—, no hay por qué apresurarse. Toda la familia de ese insecto se encuentra aquí y no es muy probable que trate de huir. En mi opinión, aprovechando que nuestro hermano Sun y Chu Kang-Lier[2] han decidido enmendar sus yerros y llevar una vida de perfección, deberíamos ofrecerles un banquete de reconciliación. De hecho, hemos traído todo lo necesario para un convite; no nos falta ni el vino ni la comida. Los criados pueden hacer una hoguera y asar una o dos de las piezas que nos hemos cobrado. No se me ocurre modo mejor de pasar la velada. Mañana tenemos tiempo más que suficiente para luchar.
—Como siempre —comentó Er-Lang, complacido—, nuestro hermano tiene razón —y ordenó a los sirvientes que prepararan un banquete.
—Es un honor para nosotros —contestó el Peregrino—, pero no debéis olvidar que ahora somos monjes y que seguimos una estricta dieta vegetariana. Esperamos que eso no os cause muchas molestias.
—En absoluto —respondió Er-Lang—. Hemos traído también toda clase de frutas y de bebidas vegetarianas. Entre los inmortales hay muchos que siguen ese tipo de dieta.
De esa forma, los hermanos brindaron por el cariño que los unía bajo la luz serena de la luna y el parpadeo tímido de las estrellas, teniendo el Cielo por tienda y la Tierra por lecho. Aunque las vigilias pueden ser a veces demasiado largas, aquella noche transcurrió más deprisa de lo que ninguno de ellos hubiera deseado. Pronto empezó a teñirse el oeste de una tímida luz dorada. El vino había despertado la valentía de Ba-Chie, que, poniéndose en seguida de pie, dijo:
—Está a punto de amanecer. Creo que voy a sumergirme en las aguas a retar a ese monstruo.
—No te fíes demasiado de él —le aconsejó Er-Lang—. Hazle salir del agua y nosotros nos encargaremos de lo demás.
—De acuerdo —dijo Ba-Chie, echándose a reír y, estirándose las ropas, cogió el rastrillo y se lanzó al lago, no sin antes recitar un conjuro para lograr la partición de las aguas.
No le costó mucho trabajo llegar a la puerta de los tejadillos. Haciendo caso omiso de lo temprano de la hora, lanzó un grito feroz y se metió en el palacio, repartiendo golpes a diestro y siniestro. El hijo del dragón estaba velando el cadáver de su padre, vestido totalmente de traje y llorando como una plañidera, mientras el yerno y uno de los nietos se encontraban en la parte de atrás preparando el féretro. Sin ningún respeto por el dolor de aquella familia, Ba-Chie entró como una exhalación en la habitación en la que se encontraba el muerto y, sin dejar de proferir insultos, asestó un golpe tremendo al heredero del trono. Al instante brotaron de su cabeza nueve regueros de sangre, tantos como dientes tenía el rastrillo de Ba-Chie. Al verlo, la viuda corrió, aterrada, hacia el interior del palacio, gritando como una loca:
—¡Ese monje del morro alargado acaba de matar a mi hijo!
Al oírlo, el insecto cogió la espada rematada en una media luna y corrió a entablar batalla, seguido del nieto del dragón. Ba-Chie los hizo frente con el rastrillo, pero fue retrocediendo poco a poco, hasta terminar aflorando en la superficie del lago. El Gran Sabio, Sosia del Cielo, y sus siete hermanos se abalanzaron en seguida sobre ellos. El nieto del dragón no tardó en quedar reducido a un montón informe de carne macerada.
Comprendiendo que las cosas iban peor de lo que esperaba, el yerno se dejó caer al suelo y adquirió la forma que le era habitual. Extendió a continuación las alas y se elevó hacia lo alto. Er-Lang sacó su cuenco de oro, cogió una pequeña bolita de plata y la lanzó contra el insecto, que se volvió, rabioso, contra él, dispuesto a propinarle un tremendo mordisco. Justamente cuando empezaba a salirle la cabeza en el centro del pecho, el pequeño mastín de Er-Lang dio un acrobático salto y se la arrancó de una dentellada. Ciego de dolor, el monstruo voló hacia los mares del norte. Ba-Chie se dispuso a seguirle, pero le retuvo el Peregrino, diciendo:
—Es mejor que le dejemos tranquilo. Como muy bien aconseja el proverbio, «no debe perseguirse al fugitivo desesperado». No creo que viva mucho tiempo sin la cabeza que acaba de arrancarle el mastín. Tomaré su figura y me abriré camino por las aguas. Tú persígueme hasta el palacio. No me costará mucho arrancar a la princesa el tesoro que hemos venido a buscar.
—Estoy de acuerdo en que le dejemos tranquilo —dijo Er-Lang—. Pero me temo que, si siguen existiendo criaturas como ésa, la gente puede sufrir muchísimo por su causa.
Sus palabras no pudieron ser más acertadas. Hasta el día de hoy puede verse en ciertos lugares un insecto de nueve cabezas, que lanza chorros de sangre y que es el heredero directo del monstruo, cuya suerte acabamos de relatar[3]. El Peregrino, mientras tanto, abrió un sendero por las aguas y Ba-Chie se lanzó tras él, gritando como un loco y lanzando denuestos. A la puerta misma del palacio les salió al encuentro la Princesa de Todos los Espíritus, que preguntó, preocupada, a su falso marido:
—¿Por qué estáis tan alterado?
—Ese Ba-Chie acaba de derrotarme y me viene persiguiendo —contestó el Peregrino—. Estoy al límite de mis fuerzas y no podré resistirle mucho más. Vete a esconder rápidamente los tesoros.
La princesa fue incapaz de distinguir lo auténtico de lo falso. Terriblemente alterada corrió hacia el interior del palacio, de donde regresó con una caja de oro, que entregó al Peregrino, diciendo:
—Éstas son las cenizas budistas —acto seguido sacó otra caja de jade blanco y añadió—: Aquí está el agárico de nueve hojas. Es mejor que los guardes tú. Mientras lo haces, trataré de detener como sea la carrera victoriosa de Ba-Chie. No te retrases mucho. Estoy convencida de que, si luchamos codo con codo, lograremos derrotarle.
En cuanto tuvo las cajas en su poder, el Peregrino se pasó la mano por el rostro y, recobrando la forma que le era habitual, dijo en tono burlón:
—¿Estáis segura de que soy vuestro marido?
Dando un grito de sorpresa, la princesa trató de recuperar las cajas, pero en ese mismo instante Ba-Chie irrumpió en la escena y le asestó un terrible golpe en el hombro, que la hizo rodar por el suelo como una manzana podrida. Sólo quedaba viva la esposa del Rey Dragón. Al enterarse de lo ocurrido, intentó huir por una ventana, pero no pudo escapar de las garras de Ba-Chie, que se dispuso a acabar en seguida con ella. El Peregrino le detuvo el brazo, diciendo:
—Espera un momento. Es mejor que no la mates. La llevaremos a la capital, para que todo el mundo vea lo que hemos sido capaces de hacer.
Sin ninguna consideración Ba-Chie la agarró de los pelos y la arrastró hasta la superficie del lago, seguido del Peregrino con las dos cajas.
—No sé cómo agradeceros cuanto habéis hecho por nosotros —dijo a Er-Lang, en cuanto hubieron llegado a la orilla—. No sólo hemos recuperado las reliquias, sino que hemos acabado con todos los monstruos.
—No seáis tan humilde —replicó Er-Lang—. ¿Qué hemos hecho nosotros, en definitiva? Todo ha sido obra vuestra. Si no hubierais acabado con el rey y no hubierais hecho uso de vuestros poderes metamórficos, aún estaríamos peleando.
—Puesto que nuestro hermano ha obtenido una resonante victoria —añadieron los inmortales que le acompañaban—, aquí ya no hacemos nada.
El Peregrino no se cansaba de darles las gracias. Le hubiera gustado que le acompañaran a ver al rey, pero comprendió que no podía exigirles tanto. Los sabios prosiguieron, pues, su camino hacia el Río de las Libaciones, mientras ellos cogían las cajas de los tesoros y se elevaban hacia lo alto. Ba-Chie no soltó en ningún momento a la viuda del dragón. Montados en una nube, no tardaron en avistar el Reino del Sacrificio. Desde el momento mismo de su liberación, los monjes del Monasterio de la Luz Dorada esperaban impacientes su regreso, apostados a las afueras de la ciudad. Al verlos bajar de la nube, corrieron a su encuentro con grandes muestras de júbilo y los acompañaron al interior de la capital. El monje Tang se encontraba en aquellos momentos conversando con el rey. Armándose de valor, uno de los miembros de la comunidad del monasterio corrió a informar a su majestad de lo ocurrido, diciendo:
—Acaban de regresar los Honorables Sun y Chu con las reliquias y uno de los ladrones.
El rey abandonó a toda prisa el salón del trono, seguido de Tripitaka y el Bonzo Sha. Juntos corrieron a dar la bienvenida a los recién llegados, a los que alabaron por la hazaña realizada. En agradecimiento, el rey ordenó que se les diera un espléndido banquete.
—Opino, majestad —dijo Tripitaka con la humildad que le caracterizaba—, que, antes de sentarnos a la mesa, deberíamos llevar las cenizas sagradas al lugar que les corresponde. Abandonasteis la ciudad ayer mismo —añadió, dirigiéndose hacia sus discípulos—. ¿Cómo es que no habéis vuelto hasta hoy?
El Peregrino le relató, entonces, cómo se habían enfrentado al Rey Dragón y a su yerno, cómo se habían encontrado con el grupo de inmortales, cómo habían conseguido derrotar a los monstruos y cómo se habían hecho, finalmente, con las reliquias. Al oír la gesta que habían realizado en tan poco tiempo, Tripitaka, el rey y los funcionarios, tanto civiles como militares, se quedaron mudos de asombro.
—¿Conoce la viuda del dragón nuestra lengua? —preguntó después el rey.
—¿Cómo no va a conocerla, si ella misma es una reina, que ha dado a luz a infinidad de herederos? —contestó Ba-Chie.
—En ese caso —concluyó el rey—, que nos cuente cómo se llevó a cabo el robo de nuestros preciados tesoros.
—Yo no sé absolutamente nada de eso —respondió la viuda con dignidad—. Tan reprobable acción fue planeada y llevada a cabo por mi difunto marido y nuestro yerno, Nueve Cabezas. Parece ser que, en cuanto tuvieron conocimiento de que en la torre de uno de vuestros monasterios existía una reliquia budista capaz de emitir una luz cegadora, dejaron caer sobre él, hace aproximadamente tres años, una lluvia de sangre y se apoderaron de tan valiosas cenizas.
—¿Cómo se perpetró el robo de la planta de agárico? —volvió a preguntar el rey.
—Eso —respondió la viuda con la misma entereza— fue obra de mi hija, la Princesa de Todos los Espíritus, que se escabulló, sin ser vista en los Cielos y arrancó la mata de agárico de nueve hojas, que la misma Wang-Mu-Niang-Niang había plantado justamente enfrente del Salón de la Niebla Divina. Lo hizo, para que las cenizas sagradas se conservaran intactas y no dejaran de emitir su luz durante más de mil años. Si se la agita un poquito, la misma planta es capaz de lanzar miles de rayos de colores más brillantes que el mismo sol. Ahora esos tesoros están en vuestro poder y, por su culpa, han perdido la vida mi esposo, mis hijos y mi yerno. Apiadaos, pues, de mí y concededme la gracia de continuar viviendo.
—¡De ninguna de las maneras! —exclamó Ba-Chie en seguida.
—La culpa no puede extenderse a toda una familia —sentenció el Peregrino—. Te perdonaremos la vida con una condición: que aceptes de buen grado convertirte en la guardiana del monasterio.
—Ni siquiera una buena muerte es comparable con una existencia desgraciada —replicó la viuda—. Si no me matáis, me comprometo hacer lo que sea.
El Peregrino pidió una cadena de hierro y se dispuso a pasársela a la viuda por el esternón. Antes de hacerlo, sin embargo, se volvió hacia el Bonzo Sha y le dijo:
—Comunica al rey que vaya al monasterio a presenciar de qué forma pensamos proteger el tesoro que allí siempre se ha guardado.
La litera real no tardó en abandonar la corte, portando en su interior al señor de la ciudad y al propio Tripitaka, al que en ningún momento dejaba de la mano. Todos los funcionarios, tanto civiles como militares, se hallaban ya presentes en el Monasterio de la Luz Dorada. Las reliquias sagradas fueron colocadas en una hornacina a la altura del decimotercer rellano. La viuda del dragón, por su parte, fue encadenada a una columna que había justamente en el centro. El Peregrino recitó un conjuro mágico y al punto se presentaron ante él el espíritu de la ciudad y el protector del monasterio, a los que encargó que le dieran de comer cada tres días y la vigilaran constantemente. Caso de no hacerlo, serían ejecutados sin ninguna contemplación. Los dioses asintieron en silencio.
El Peregrino tomó, entonces, la planta de agárico y barrió con ella todos los escalones que separaban el primero del decimotercer rellano, antes de colocarla con cuidado junto a la urna de las reliquias. De esta forma, se logró dar marcha atrás al tiempo y de nuevo volvió a rodear el monasterio un aura tan luminosa, que todos los reinos bárbaros de la comarca percibieron al instante su resplandor. Al salir, el rey dijo, entre agradecido y avergonzado:
—Si no hubierais pasado por nuestro reino, jamás habríamos descubierto lo que realmente sucedió.
—Opino, majestad —contestó el Peregrino, quitando importancia a su confesión—, que el nombre de Luz Dorada no cuadra bien con la importancia de este monasterio. Al fin y al cabo, el oro es una substancia muy voluble y la luz posee una estabilidad tal, que hasta el aire la hace vibrar. Puesto que habéis recobrado su preciado tesoro gracias a nosotros, nos permitimos sugeriros que de ahora en adelante lo llaméis el Monasterio del Dragón Derrotado. Os doy mi palabra de que ese nombre durará para siempre y su fama llegará hasta el último rincón del mundo.
El rey ordenó que así se hiciera. Los canteros reales labraron una placa en la que podía leerse: «Monasterio del Dragón Derrotado. Construido por expreso deseo de su majestad». Tras colgarlo de la puerta principal, dio comienzo un espléndido banquete de agradecimiento, que duró hasta bien entrada la noche. Antes de proseguir el viaje, el rey encargó el retrato de los cuatro peregrinos e hizo inscribir sus nombres en la Torre de los Cinco Fénix. No contento con eso, salió a despedirlos a las afueras de la ciudad.
Igualmente, les ofreció, como recompensa, grandes cantidades de jade y oro, que rechazaron con la debida cortesía. Para ellos era suficiente que los monstruos hubieran sido exterminados y se hubiera hecho justicia. ¿Qué mayor premio que ver brillar el aura que rodeaba el monasterio y sentir que la luz se había extendido por toda la tierra?
No sabemos, de momento, qué peligros los acechaban en el camino que aún les quedaba por recorrer. El que desee descubrirlos tendrá que escuchar con atención las explicaciones que se ofrecen en el capítulo siguiente.
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arteriaemchamas · 2 months ago
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Viaje al Oeste
CAPÍTULO LXII
PARA DESPRENDERSE DE TODA INMUNDICIA Y CONSEGUIR UNA MENTE TOTALMENTE LIMPIA, ES NECESARIO BARRER UNA PAGODA. PARA ALCANZAR LA PERFECCIÓN, HAY QUE DOMINAR A LOS DEMONIOS Y VOLVERSE HACIA EL SEÑOR.
Ni de día ni de noche[1] debes olvidarte de cosechar el bien; tenlo siempre presente las doce horas del día[2]. No dejes que se te seque el agua sagrada ni permitas que el fuego te acose a lo largo de las ciento ochenta mil marcas[3] que miden el transcurso de cinco años. Cuando se mezclan el agua y el fuego, surge la abundancia y las Cinco Fases se funden como si estuvieran encadenadas. El yin y el yang se encuentran, entonces, en equilibrio y puede ascenderse a la Torre de Nubes, o alcanzar los Cielos a lomos de un fénix, o llegar hasta Ying-Chou montado en una garza.
El título de este poema «tsu» del que nos hemos servido para describir la situación en la que ahora se encontraba Tripitaka y sus discípulos es El Inmortal junto al Río. Todos ellos habían alcanzado ese estado de perfección en el que el agua y el fuego se encuentran en un equilibrio perfecto. De ahí que sus espíritus experimentaran la frescura y la pureza absolutas. Una vez que consiguieron hacerse con el abanico del inmaculado yin y apagaron con él las llamas de aquella inmensa montaña, lograron recorrer en un solo día la distancia de mil quinientos kilómetros. Eso hizo que prosiguieran el viaje con el corazón limpio de toda preocupación. El otoño estaba a punto de concluir y el invierno había empezado a dar muestras de su inminente llegada. Los crisantemos se habían secado y caían, como copos de nieve, a los pies de los ciruelos, que mostraban, orgullosos, el dulzor de sus tardíos frutos. En todos los pueblos se recogían las últimas cosechas y se almacenaba el grano para el invierno. Los bosques se iban despojando poco a poco de hojas, permitiendo la visión directa de las colinas que se alzaban tras ellos. Al amanecer la superficie de los arroyos aparecía cubierta de una capa de hielo, que se hacía más gruesa con el paso de los días. Hacía mucho tiempo que los insectos habían dejado de afanarse, arrastrados por la creciente inclemencia de los vientos. El yin iba transformándose, poco a poco, en yang y ya estaba dispuesto a sentarse en su trono el espíritu Yüan-Ming, el señor del primer mes del invierno[4]. En esa estación se apaga el aura de la Tierra, renace la del Cielo, los arcos iris se esconden y el hielo se va formando lentamente en la superficie de los estanques y lagos. No en balde es el tiempo de las aguas, aunque los días sean grises y el color desaparezca de todos los paisajes.
Una vez que los arces han perdido su tinte rojizo, sólo los bambúes y pinos son capaces de hacer frente al frío, acentuando el verdor de sus hojas. Los viajeros lo fueron comprobando a lo largo de muchos días de camino. Tras recorrer un larguísimo trecho, se toparon con una ciudad fortificada. El monje Tang tiró de las riendas del caballo y, volviéndose hacia Wu-Kung, exclamó:
—¿Ves aquellos edificios de allí? ¿Qué clase de lugar crees que es?
El Peregrino levantó la cabeza y vio que se trataba de una ciudad protegida por un profundo foso. Vista desde aquella distancia, daba la impresión de ser un dragón enroscado o un tigre dispuesto a saltar sobre su presa. Por doquier se veían doseles de brillantes colores. Los puentes que salvaban el profundo foso que la rodeaba estaban adornados con figuras de animales de jade. A juzgar por los pedestales que sostenían las estatuas de sus miembros más destacados, debía de tratarse de una ciudad extremadamente rica, porque eran de oro. Por ése y otros muchos detalles, recordaba la propia capital de China o una de las muchas ciudades del Cielo. Lo que nadie podía negar era que se trataba del centro de un próspero imperio, cuyos dominios se extendían más allá de veinte mil kilómetros y cuya duración superaba los mil años. Con toda seguridad, los bárbaros pagarían tributos a su rey y cada día llegarían a su corte emisarios de las islas y tierras lejanas cargados de exóticos regalos. No cabía duda de que su soberano seguía fielmente el camino de la virtud. Se apreciaba su prosperidad en las melodiosas canciones que fluían de las cantinas y en la alegría que inundaba todas las calles y plazas. El palacio real, espléndido como el de Wei-Yang[5], estaba rodeado por una franja de árboles tan majestuosos, que se tenía la impresión de que los fénix saludarían la llegada de un nuevo día escondidos entre sus copas.
—Esa ciudad por fuerza tiene que ser el lugar de residencia de algún rey —concluyó el Peregrino, después de estudiarla con detenimiento.
—¿Cómo puedes afirmarlo con tanta seguridad? ��objetó Ba-Chie, soltando la carcajada—. El mundo está lleno de ciudades que pertenecen a una prefectura o forman parte de un simple distrito.
—Sí, pero aquellas en las que habita un rey son totalmente distintas de las que acabas de mencionar —replicó el Peregrino—. No tienes más que mirar las puertas que hay en esa ciudad. Su número es superior a una decena. Además su perímetro sobrepasa los doscientos kilómetros y sus edificios son tan altos que aparecen siempre cubiertos de nubes. Si no es ésta la capital de algún reino, ¿a qué se debe que ofrezca un aspecto tan distinguido?
—Todos sabemos que posees una visión francamente extraordinaria —concluyó el Bonzo Sha—, así que, si dices que se trata de la capital de un reino, ninguno de nosotros lo pondremos en duda. ¿Has conseguido averiguar cómo se llama?
—¿Cómo voy a averiguarlo, si no se ven por ninguna parte estandartes ni placas? —contestó el Peregrino—. Creo que, si queremos saberlo, tendremos que entrar en ella.
El maestro espoleó al caballo y no tardó en llegar a una de las puertas. Pasó a pie el puente que salvaba el foso y se adentró en las calles de la ciudad. Sus tres mercados y sus seis bulevares bullían de animación, pero lo más sorprendente era que todos sus habitantes vestían de tal forma que parecían nobles. Cuando más admirados estaban de tanta prosperidad, vieron a un grupo de monjes mendigando de puerta en puerta. Su aspecto no podía ser más harapiento. Al verlos, Tripitaka suspiró con pena y dijo:
—Cuando muere la liebre, el zorro se echa a llorar, porque todos los seres lamentan la desaparición de los de su especie. Acércate a ellos y pregúntales por qué llevan una vida tan miserable —pidió después a Wu-Kung.
—¡Eh, monjes! —gritó el Peregrino, dándose cuenta de que llevaban la cabeza metida en un cepo, como si fueran vulgares malhechores—. ¿A qué monasterio pertenecéis y por qué portáis sobre vuestros hombros el símbolo de la vergüenza?
—Somos miembros del Monasterio de la Luz Dorada —respondieron los monjes, postrándose de hinojos— y hemos sido castigados injustamente.
—¿Dónde se encuentra ese monasterio que decís? —volvió a preguntar el Peregrino.
—A la vuelta de la esquina —contestó uno de los monjes.
El Peregrino los llevó en seguida ante el monje Tang, que les preguntó, en cuanto hubo escuchado las explicaciones de su discípulo:
—¿Qué queréis decir con eso de que habéis sido castigados injustamente? Contádmelo, por favor, si no os importa.
—Aunque vuestro rostro nos resulta muy conocido —se disculparon ellos—, no sabemos de dónde venís. Además, no nos atrevemos a decíroslo aquí. Si tenéis la amabilidad de acompañarnos hasta nuestra humilde morada, tendremos el honor de expresaros todas nuestras cuitas.
—Me parece lo más prudente —opinó el maestro—. Iremos con vosotros y nos lo contaréis con más tranquilidad.
Cuando llegaron a la puerta del monasterio, vieron que sobre el dintel había una placa, en la que aparecía grabada con letras de oro la siguiente inscripción horizontal: «Monasterio de la Luz Dorada. Construido por mandato imperial». Con pena comprobaron que las lámparas que colgaban de las paredes, tan desconchadas como la chabola de un mendigo, llevaban apagadas mucho tiempo y que el viento arrastraba montones de hojas secas por los pasillos vacíos. Testigo de tiempos mejores, una torre de trescientos metros se perdía entre las nubes. En el lugar dedicado a la meditación sólo había unos cuantos pinos raquíticos y, aunque en algunos puntos el suelo estaba cubierto de flores, hacía años que nadie pisaba por allí. Las telas de araña se habían enseñoreado de todos los techos y rincones. Aunque los tambores y las campanas continuaban colgados en sus sitios, se notaba que llevaban mucho tiempo sin usar. Los frescos de las paredes se habían desdibujado, desapareciendo sus colores entre una gruesa capa de polvo. Los atriles permanecían abandonados y en silencio. No se veía a ningún monje por ninguna parte. Hasta el mismo Salón del Zen había enmudecido, convertido en triste refugio para los pájaros. ¡Qué agobiante sensación de abandono, con cuánto dolor contemplaban los peregrinos aquella decadencia inimaginable! Aunque los pebeteros continuaban colocados ante las imágenes de Buda, no salía de ellos ni una sola voluta de incienso, llenos solamente de cenizas frías. A su alrededor aún podían verse pétalos de flores, pero estaban totalmente secos.
Al contemplar tan triste espectáculo, Tripitaka no pudo evitar que las lágrimas fluyeran, abundantes, de sus ojos. Con no poca dificultad, a causa del cepo que los aprisionaba, los monjes abrieron las puertas del salón principal e invitaron al maestro a presentar sus respetos a Buda. Sólo pudo ofrecer el incienso de su corazón, aunque siguió todos los pasos del rito e, incluso, llegó a golpear tres veces seguidas el suelo con la frente.
Después se dirigieron todos a la parte de atrás, donde encontraron a seis o siete monjes jóvenes encadenados a una columna que había justamente enfrente de las habitaciones del guardián del monasterio. Aquello fue demasiado para Tripitaka. Aun así, entró con los demás en los aposentos del hombre que, supuestamente, guiaba los destinos de aquel sagrado lugar. Todos los monjes se echaron rostro en tierra y, tras golpear repetidamente el suelo con la frente, uno de ellos preguntó:
—¿No seréis por casualidad esos monjes que vienen de la corte de los Gran Tang, en las Tierras del Este? Así lo hemos creído más de uno, a juzgar por vuestro aspecto.
—Está visto que poseéis ciertos conocimientos mágicos —contestó el Peregrino, echándose a reír—. En efecto, somos esos monjes de los que habláis. ¿Cómo nos habéis reconocido?
—Nosotros no entendemos de magia —respondió el monje—. Lo único que sabemos hacer es dirigirnos día y noche al Cielo y a la Tierra, exigiendo justicia para nuestro caso, porque hemos sido condenados sin ningún motivo. Anoche todos tuvimos un sueño, en el que se nos comunicó que estaba a punto de llegar, procedente de la corte de los Tang, en las Tierras del Este, un monje que nos libraría de todas nuestras penalidades y nos restituiría el honor que hemos perdido. Al veros, no tuvimos ninguna duda de que se trataba de vosotros. No nos negaréis que tenéis unos rostros inconfundibles.
—¿Cómo se llama esta comarca y por qué os encontráis en un estado tan lamentable? —preguntó Tripitaka, animado por lo que acababa de oír.
—Esta ciudad —contestó uno de los monjes, que habían vuelto a arrodillarse en señal de respeto— es conocida por el nombre de Reino del Sacrificio y se trata del mayor asentamiento humano que hay en los territorios occidentales. No hace mucho tiempo nos pagaban tributo todas las tribus bárbaras que se hallan desperdigadas por estos alrededores: las del Reino de Yüe-De, en el sur, las del Reino de Gao-Chang, en el norte, las del Estado del Liang Occidental, en el este, y las del Reino de Pen-Puo, en el oeste. Todas ellas traían cada año incontables cantidades de jade de la mejor calidad, perlas finísimas, muchachas de una belleza extraordinaria y briosísimos corceles. Venían espontáneamente, sin necesidad de recurrir a la guerra o a expediciones militares, convencidos de nuestra indiscutible superioridad moral.
—Si es verdad lo que decís —comentó Tripitaka—, vuestro rey debe de estar imbuido de una profunda virtud, vuestros funcionarios deben de ser inmunes a los sobornos y vuestros guerreros deben de poseer una nobleza a toda prueba.
—Nada más lejos de la realidad —contestó el monje—, porque ni nuestro rey es virtuoso, ni nuestros funcionarios honestos, ni nuestros guerreros valientes. Esta ciudad debía su fama al Monasterio de la Luz Dorada, que siempre aparecía, incluida su altísima torre, envuelta en un aura de santidad. Los rayos de luz que emitían sus construcciones podían verse por la noche hasta una distancia de veinticinco mil kilómetros. Durante el día las nubes benefactoras que las rodeaban dejaban sentir su influencia en todos los rincones de los reinos que acabo de mencionaros. Por eso, y nada más, era considerado este lugar el centro de una prefectura celeste y gozábamos del respeto de todas las tribus bárbaras. Sin embargo, hace aproximadamente tres años cayó sobre nosotros, a eso de la medianoche del primer día del invierno, una extraña lluvia de sangre. A la mañana siguiente todo el mundo temblaba de miedo y salían de todas las casas gritos de terror. Los ministros reales fueron a informar de lo ocurrido a su majestad y pasaron varias horas deliberando a qué podía deberse tan extraño fenómeno. Se concluyó que se trataba de un castigo del Señor del Cielo y se pidió tanto a los monjes taoístas como a los budistas que recitáramos sin parar nuestras escrituras, con el fin de aplacar al Cielo y a la Tierra. Pero lo más desagradable fue que, al enterarse los pueblos bárbaros de que la sangre había caído sobre nuestro monasterio, se negaron a continuar pagándonos los tributos que antes nos ofrecían de buena gana. El rey quiso enviar contra ellos una expedición de castigo, pero le disuadieron a tiempo sus consejeros, diciéndole que la culpa era nuestra, por haber escondido el tesoro que guardábamos en la torre y que hacía de este lugar un centro sagrado. Eso explicaba la desaparición del aura que antes la envolvía y la negativa de los demás pueblos a seguir ofreciéndonos lo que de más valor tenían. El rey no lo pensó más. Nos hizo arrestar y nos sometió a unas torturas tan horribles, que perecieron las dos terceras partes de los monjes que aquí vivíamos. A los que quedamos se nos cubrió de ignominia, cargándonos de cadenas y sometiéndonos al tormento del cepo. Pero, considerándolo fríamente, ¿cómo íbamos a ser tan tontos para robarnos nuestro propio tesoro? En nombre de los ideales que nos unen, apiadaos de nuestros sufrimientos y destruid con la fuerza de vuestro dharma la vergüenza que ha caído sobre nuestras cabezas.
Tripitaka sacudió la cabeza y, tras suspirar con tristeza, dijo:
—No acabo de comprender lo ocurrido. Hay algo oscuro en todo eso que acabáis de contar. No me cabe duda de que el rey se ha desentendido de sus pesadas responsabilidades y eso os ha perjudicado seriamente. Sin embargo, si la lluvia de sangre acabó con el aura que rodeaba el monasterio, ¿por qué no informasteis inmediatamente de ello a la corte? Así os hubierais ahorrado todo este sufrimiento.
—¿Cómo íbamos a conocer la voluntad de los Cielos, si no somos más que personas corrientes? —replicó el monje—. Además, nuestros mayores se encontraban indecisos y no sabían qué hacer. Nosotros éramos los menos indicados para hacerlo.
—¿Qué hora es ahora? —preguntó Tripitaka, volviéndose hacia Wu-Kung.
—La de shen —contestó el Peregrino.
—Quisiera ir a ver al rey de estas tierras y pedirle que nos selle nuestros documentos de viaje —dijo Tripitaka—. Por otra parte, no he terminado de comprender lo que realmente sucedió en este lugar y, aunque no me atrevo a preguntárselo directamente, espero que me permita quedarme en esta ciudad el tiempo necesario para averiguarlo. Eso sin contar que, cuando salí de Chang-An, prometí en el Salón de las Puertas de la Ley que no pasaría por un templo sin quemar un poco de incienso, ni por un monasterio sin presentar mis respetos a Buda, ni por una pagoda sin barrer su atrio o los incontables escalones de su torre. Precisamente todos vuestros problemas —añadió, dirigiéndose a los monjes— se iniciaron en una construcción de este tipo. ¿Por qué no me traéis una escoba? Creo que, antes de empezar a barrer, voy a darme un baño. Eso me predispondrá el ánimo para tratar de descubrir qué es lo que privó a vuestra torre de su brillo. Cuando lo haya averiguado, presentaré un informe al señor de esta ciudad y os levantará el terrible castigo que os ha impuesto.
Al oírlo, todos los monjes con la cabeza metida en el cepo corrieron a las cocinas y cogieron cuantos cuchillos pudieron encontrar. Se los entregaron a Ba-Chie y le suplicaron, diciendo:
—Mirad a ver si podéis romper las cadenas de esos monjes jóvenes que están atados a aquella columna. Si lo lográis, ellos se encargarán de preparar algo de comer y de disponer el agua, para que toméis un baño. Mientras tanto, nosotros saldremos a mendigar a las calles a ver si conseguimos una escoba nueva, para que barráis la torre.
—¿Para qué me entregáis todos estos cuchillos? —exclamó Ba-Chie, soltando la carcajada—. No hay cosa más fácil que hacer saltar una cadena. Decídselo a ese hermano de la cara peluda y lo veréis. Es un auténtico especialista en romper hierros.
El Peregrino se acercó a ellos y, valiéndose de la magia para liberar cautivos, dio un tirón a los grilletes. Las cadenas se desprendieron al punto de los brazos y piernas de los monjes, que corrieron, jubilosos, a las cocinas a fregar cazuelas y a cocinar algo de comer. Tripitaka y sus discípulos no tardaron en sentarse a la mesa. Cuando estaba empezando a anochecer, se presentaron los monjes de los cepos con dos escobas.
Tripitaka no cabía en sí de contento. Estuvo hablando con ellos hasta que vino uno de los jóvenes con una lámpara en la mano a decirle que el baño estaba dispuesto. Para entonces, la luna estaba ya muy alta y las estrellas habían alcanzado el cenit de su resplandor. A lo lejos se oían los tambores de los vigías apostados en las murallas y los golpes secos de los encargados de medir las vigilias. Un viento frío recorría todas las calles de la ciudad, mientras parpadeaba en cada una de las casas la tenue luz de las lámparas. Hacía horas que los portones de la ciudad habían sido asegurados con grandes trancos y que se habían cerrado las puertas de sus tres mercados. En las orillas de los lagos se terminaban de amarrar las últimas barcas de los pescadores, mientras en los campos se dejaban a un lado los arados, en los bosques los leñadores daban descanso a sus hachas y en el corazón mismo de la ciudad los estudiantes recitaban diligentemente sus lecciones.
Después de bañarse, Tripitaka se puso una camisa de manga corta, que se ciñó a la cintura con ayuda de una faja, se calzó un par de zapatos con suela de esparto y, cogiendo una de las escobas, dijo a los monjes:
—Id a descansar, mientras yo voy a barrer la pagoda.
—Si, como nos han relatado, perdió su brillo durante una tormenta de sangre y no ha vuelto a brillar desde entonces —se apresuró a decir el Peregrino—, lo más seguro es que se haya aposentado allá arriba alguna fuerza maligna. Si subís vos solo con este viento tan frío, podéis encontraros con lo que menos pensáis. ¿Qué os parece si os acompaño?
—Excelente —contestó Tripitaka y cada uno cogió una escoba.
Antes de ponerse manos a la obra, se dirigieron a la nave principal, encendieron candelas nuevas y quemaron un poco de incienso. Tripitaka cayó de hinojos ante la imagen de Buda y oró, diciendo:
—Vuestro discípulo Chen Hsüan-Tsang ha sido enviado por el Gran Emperador de los Tang, en las Tierras del Este, a presentar sus respetos a Tathagata y a suplicarle que me haga entrega de las escrituras sagradas. Al llegar a este Monasterio de la Luz Dorada, en la ciudad del Reino del Sacrificio, sus monjes me han informado que el aura que lo envolvía se disolvió en una extraña lluvia de sangre que cayó en la primera noche del invierno. El rey los acusó de ser ellos los culpables de tan peculiar fenómeno y los cubrió de ignominia. Por eso, he decidido barrer la pagoda y tratar de descubrir de qué se trata. Os suplico que, haciendo uso de vuestra insondable sabiduría, me reveléis la fuente de suceso tan lamentable, para que sean castigados los culpables y los inocentes recobren su perdida dignidad.
En cuanto hubo terminado la oración, abrió la puerta de la torre y empezó a barrerla desde el primer peldaño, acompañado por el Peregrino. Era tan alta, que parecía estar apoyada en el suelo de los cielos. Aunque ya no poseía luz propia, su colorido era tan vivo, que parecía una montaña de oro cubierta de seda. Sus escaleras ascendían en espiral hacia lo alto, como si quisieran trepanar el misterio del cosmos. Con razón gustaba la luna de reflejarse en ella y el tañido de sus campanas de oro reflejaba los ritmos del mar. Las volutas de sus aleros saludaban a las estrellas, que se miraban a todas horas en ella, porque su altura imponente cerraba el paso a las nubes. La vista era incapaz de abarcarla en toda su longitud; se tenía la impresión de que medía miles y miles de kilómetros y que llegaba hasta el centro del Noveno Cielo. Pese a todo, las lámparas que había en las paredes de cada rellano aparecían cubiertas de un polvo espeso, que se repetía en él, antaño, bellísimo arambol de jade blanco, ahora sepultado en una capa de suciedad y restos de insectos. Ni una sola voluta de incienso en las mesas de las ofrendas, abandonadas y totalmente vacías. Las telas de araña cubrían las imágenes y los cristales de las ventanas, tornándolos tan opacos como papeles de arroz expuestos a la luz del sol. Los pebeteros y los recipientes para el aceite se habían convertido en nidos de ratas. ¡Cuánta frustración, sufrimiento y muerte había traído a los monjes la fuente de aquel abandono! Todo eso estaba a punto de acabar, porque, en cuanto Tripitaka hubiera terminado de barrerla, recobraría su antiguo resplandor y su gloria pasada. El monje Tang limpiaba con esmero un tramo de escalera antes de pasar al siguiente. Cuando llegaron al séptimo, era la hora de la segunda vigilia y el maestro comenzó a sentir cansancio en los brazos.
—Veo que estáis cansándoos —dijo el Peregrino—. ¿Por qué no os sentáis y me dejáis barrer por vos?
—¿Cuántos tramos calculas que tiene la escalera de esta torre? —preguntó Tripitaka.
—Trece por lo menos —respondió el Peregrino.
—Es preciso que termine de barrerlos, para dar cumplimiento a lo que en su día prometí —dijo el maestro, esforzándose por hacer frente al cansancio.
Pero después de barrer tres tramos más, empezaron a dolerle de tal forma las piernas y la espalda, que tuvo que sentarse a descansar justamente al final del décimo tramo.
—Wu-Kung —dijo, entonces, con voz apenas audible—, si no te importa, barre tú los tres tramos que quedan y, en cuanto hayas terminado, bajamos.
Complacido, el Peregrino barrió el undécimo tramo y comenzó el duodécimo. En ese mismo momento oyó a alguien hablando en lo alto de la torre y se dijo:
—¡Qué cosa más rara! Es casi la hora de la tercera vigilia. ¿Cómo es posible que alguien esté hablando ahí arriba? Por fuerza tiene que ser alguien que no se encuentre en sus cabales. Voy a ver de quién se trata.
Agarró la escoba y se la puso debajo del brazo. Se arremango después la ropa y, saliendo con cierta dificultad por una de las ventanas, se elevó hasta lo alto de una nube.
Desde allí vio sentados en la decimotercera porción de la torre a dos espíritus, que estaban charlando tranquilamente delante de una cacerola de arroz y de un barreño lleno de vino. Mientras bebían, jugaban a los chinos[6]. Valiéndose de la magia, el Peregrino dejó a un lado la escoba, sacudió con fuerza la barra de los extremos de oro y, poniéndose de pie entre los dos diablillos, exclamó:
—¡Así que sois vosotros los que habéis robado el secreto de este monasterio!
Aterrados, los dos diablillos dieron un salto y lanzaron contra el Peregrino la cacerola y el barreño, que se hicieron polvo, al chocar con la barra de los extremos de oro.
—Os arrancaré una confesión, aunque, para ello, tenga que acabar con vosotros —los amenazó el Peregrino, haciéndolos retroceder hasta la pared.
—¡No nos matéis, por favor! —suplicaron ellos, comprendiendo lo delicado de su situación—. Nosotros no tenemos que ver absolutamente nada con eso. Lo ha robado otro.
Valiéndose de la magia, el Peregrino los agarró con una sola mano y los llevó hasta el décimo tramo de escalera.
—¡Acabo de capturar a los ladrones del secreto del monasterio! —dijo con una voz tan fuerte que despertó a Tripitaka, quien se había quedado adormilado en uno de los escalones.
—¿Dónde los has encontrado? —preguntó el maestro, complacido.
—Se estaban divirtiendo en lo alto de la torre, jugando a los chinos y bebiendo —explicó el Peregrino, obligándolos a ponerse de rodillas—. Al oír toda su cháchara, me monté en una nube y les corté la retirada. Ha sido facilísimo. Si no he acabado con ellos, ha sido porque quiero arrancarles una confesión completa. Por eso los he traído hasta aquí. Vos podéis tomar nota de dónde son y en qué lugar han escondido el tesoro que andamos buscando.
—¡No nos matéis, por favor! —repetían con voz cada vez más lastimera. Por fin, uno de ellos se armó de valor y dijo:
—Hemos venido aquí por orden del Rey Dragón de Todos los Espíritus, cuyo palacio se encuentra en el fondo del Lago de la Ola Verdosa, en el corazón mismo de la Montaña de las Rocas Esparcidas. Éste se llama Burbuja Ocupada, y yo, Ocupada Burbuja. Él es el espíritu de una anguila, y yo, el de un pez de color negro. Una de las hijas de nuestro señor, llamada Princesa de Todos los Espíritus, una muchacha realmente encantadora y con unas cualidades francamente extraordinarias, se desposó con un tipo que responde al nombre de Nueve Cabezas y cuyos poderes mágicos no tienen nada que envidiar a los del inmortal más aventajado. Hace dos años, trajo aquí al Rey Dragón y, valiéndose de sus artes, hizo caer sobre este monasterio una lluvia de sangre, que acabó con su aura.
No le fue difícil, de esa forma, hacerse con las cenizas de un buda[7], que se conservaban en este lugar. Al mismo tiempo, la princesa se introdujo en el Cielo y robó el agárico de nueve hojas, que Wang-Mu Niang-Niang había plantado justamente enfrente del Salón de la Niebla Divina. Tanto las cenizas como la planta se encuentran actualmente en el fondo del lago, iluminando el palacio día y noche con sus rayos dorados y sus resplandores de colores. Hace poco oímos comentar que un tal Sun Wu-Kung se dirigía hacia el Paraíso Occidental en busca de escrituras sagradas. Como, según parece, se trata de un tipo con unos poderes mágicos inigualables, al que le encanta meterse en los asuntos de los demás, se nos ordenó que viniéramos a patrullar la zona y que diéramos la voz de alarma, en cuanto apareciera ese Sun Wu-Kung.
—¡Cuidado que sois atrevidos! —exclamó el Peregrino con desprecio—. No me extraña que el Rey Toro asistiera el otro día a uno de vuestros banquetes. ¡Por fuerza tenía que estar conchavado con una banda de espíritus malhechores como vosotros!
No había acabado de decirlo, cuando aparecieron Ba-Chie y otros monjes jóvenes con dos lámparas.
—¿Por qué no os habéis retirado a descansar después de barrer la torre? —preguntó el Idiota al maestro—. ¿Cómo es que aún estáis aquí charlando?
—Me alegro de que hayas venido —se apresuró a decir el Peregrino—. El secreto del monasterio ha sido robado por el Rey Dragón de Todos los Espíritus, que ha enviado a estos dos diablillos, para que siguieran atentamente todos nuestros movimientos. Lo malo es que han sido ellos los que han caído en nuestras redes.
—¿Cómo se llaman y qué clase de espíritus son? —volvió a preguntar Ba-Chie.
—Según acaban de decirnos, uno responde al nombre de Burbuja Ocupada, y el otro al de Ocupada Burbuja. El primero es el espíritu de una anguila y el segundo el de un pez de color negro.
—Si acaban de confesarlo todo —concluyó Ba-Chie, blandiendo su rastrillo con ánimo de darles muerte—, ¿para qué seguir perdiendo el tiempo con ellos? ¿A qué esperamos para matarlos?
—Se nota que no has calibrado bien el problema —replicó el Peregrino—. Si los mantenemos con vida, nos será más fácil hablar de todo el asunto con el rey. Eso sin contar con que pueden facilitarnos una valiosa información a la hora de recuperar el tesoro y castigar a los culpables.
El Idiota bajó en seguida el rastrillo. El Peregrino, por su parte, agarró a los dos diablillos y se dispusieron a descender de la torre. Mientras bajaban las escaleras, los dos prisioneros no dejaban de suplicar:
—¡Perdonadnos la vida, por lo que más queráis!
—¡Qué casualidad! —decía Ba-Chie, al mismo tiempo—. Andábamos buscando una anguila y un pez negro para hacer una sopa a estos pobres monjes y, mira tú por donde, encontramos a estos dos.
Los monjes jóvenes no cabían en sí de contento. Abrían la marcha con sus lámparas, bajando los escalones de tres en tres. Uno de ellos se adelantó a informar a los demás de lo ocurrido, gritando, entusiasmado:
—¡Ha sido fantástico! ¡Puede decirse que, por fin, hemos visto la luz! Esos hermanos nuestros acaban de capturar a los demonios que robaron nuestro secreto.
—Traed unas cadenas y colgadlos de ahí —ordenó el Peregrino—. Vigiladlos bien, mientras nosotros descansamos un poco. Ya decidiremos mañana lo que haya de hacerse.
Los monjes se esmeraron en cumplir ese encargo. En cuanto hubo amanecido, el maestro saltó a toda prisa del lecho y dijo:
—Voy a ir con Wu-Kung a ver al rey y a pedirle que nos selle los documentos de viaje —y se puso la túnica de los bordados y el sombrero Vairocana.
Vestido de esta guisa, se dirigió hacia la puerta, seguido del Peregrino, que se arregló lo mejor que pudo la piel de tigre y la camisa de seda.
—¿Por qué no lleváis con vosotros a estos dos diablillos? —preguntó Ba-Chie, al verlos coger el documento de viaje.
—Es mejor que le informemos primero de lo ocurrido —contestó el Peregrino—. Ya se encargará después de enviar a alguien a por ellos.
Nada más trasponer las puertas del palacio, vieron una auténtica bandada de pájaros de color rojizo, así como incontables dragones amarillentos. Tras dirigirse a la Puerta de las Flores, que estaba orientada hacia el oriente, Tripitaka saludó con respeto al oficial que hacía la guardia y le dijo:
—Anunciad a vuestro señor que este indigno monje se encuentra de camino con destino al Paraíso Occidental por orden expresa del Gran Emperador de los Tang, en las Tierras del Este. Su misión es conseguir las escrituras sagradas, Por eso, solicita de vuestro virtuosísimo soberano que le selle el documento de viaje, para que pueda atravesar sus vastos dominios.
El rey ordenó que fueran conducidos inmediatamente a su presencia. Al ver al Peregrino, que caminaba justamente detrás del maestro, todos los funcionarios, tanto civiles como militares, se echaron a temblar. Algunos opinaban que se trataba de un mono que había abrazado la religión, mientras que otros pensaban que era, simplemente, un monje con la cara de un dios del trueno. Nadie se atrevía, de todas formas, a mirarle directamente a los ojos. Mientras el maestro presentaba sus respetos al soberano, él permaneció totalmente inmóvil con las manos entrelazadas en señal de respeto.
—Vuestro humilde servidor —explicó el maestro— se dirige hacia el Monasterio del Trueno, en el Paraíso Occidental, a presentar sus respetos a Buda y conseguir las escrituras sagradas, por orden expresa del Gran Emperador de los Tang, en las Tierras del Este del Continente Austral de Jambudvipa. En cumplimiento de tan alta misión, hemos llegado a vuestras dignísimas tierras y no nos atrevemos a cruzarlas sin el correspondiente permiso. Hemos decidido, pues, haceros entrega de nuestro documento de viaje, para que os dignéis estampar en él vuestro sello y podamos proseguir nuestro camino.
Tan respetuosa exposición complació vivamente al rey, que ordenó que el monje procedente de la corte de los Tang fuera conducido inmediatamente al Salón de los Carillones de Oro. Mientras el rey leía personalmente el documento, se pidió al maestro que tomara asiento en un espléndido cojín de seda cubierto totalmente de bordados.
—Ha sido una suerte para el Gran Emperador de los Tang —comenzó diciendo su majestad, una vez concluida la lectura— poder disponer de un monje tan noble y virtuoso como vos, que, sin temor a las incomodidades de un viaje tan largo, se ofreciera de buen grado a ir en busca de los escritos de Buda. ¡Cuán distinta esa actitud de la de los monjes de nuestro reino, que únicamente se preocupan de robar y de traer la ruina a este reino y al señor que lo rige!
—¿Tenéis la bondad de explicarme de qué forma lo han hecho? —preguntó Tripitaka, juntando respetuosamente las palmas de las manos.
—No necesito deciros —respondió el rey— que éste es el reino más importante de todos los Territorios Occidentales. Hasta hace poco, todas las tribus bárbaras de esta zona nos ofrecían tributos, temerosos, no de nuestros ejércitos, sino del Monasterio de la Luz Dorada. En él se guardaba una reliquia que emitía tales rayos de luz, que llenaban de luminosidad el mismísimo Cielo. Pero, cegados por la avaricia, los monjes robaron tan peculiar tesoro y el aura lleva apagada cerca de tres años. Eso ha provocado la negativa de los otros reinos a seguir presentándonos sus respetos, haciendo crecer en nuestros corazones el más profundo de los odios.
—Suele decirse, majestad —contestó Tripitaka, esbozando una sonrisa— que, quien al apuntar se desvía el grosor de un cabello, jamás dará en el centro de la diana. Ayer, cuando entré en la capital de vuestro próspero reino, vi a un grupo de unos diez monjes con la cabeza metida en el cepo. Al preguntarles qué crimen habían cometido, me respondieron que pertenecían al Monasterio de la Luz Dorada y que eran totalmente inocentes de los cargos que se les imputaban. Pedí que me llevaran a su centro de recogimiento y, tras llevar a cabo una exhaustiva investigación, llegué a la conclusión de que, en efecto, no tenían que ver nada con lo ocurrido. Barrí, una tras otra, todas las escaleras de la torre y descubrí a los dos diablillos que habían robado las reliquias.
—¿Dónde se encuentran ahora esos monstruos? —preguntó el rey, visiblemente complacido.
—En el Monasterio de la Luz Dorada —respondió Tripitaka—. Mandé encerrarlos, hasta que vos decidierais qué hacer con ellos.
Asombrado de tanta prudencia, el rey dictó una orden, que decía:
—Que la guardia uniformada traiga inmediatamente a mi presencia a los diablillos que se encuentran detenidos en el Monasterio de la Luz Dorada. Deseo interrogarlos personalmente.
—Aunque vuestra guardia es aguerrida a más no poder —dijo Tripitaka en tono humilde—, no estaría de más que los acompañara el discípulo que ha venido conmigo.
—¿Dónde se encuentra ahora ese discípulo? —preguntó el rey.
—Ahí abajo —contestó Tripitaka, señalándole con el dedo—, junto a los escalones de jade.
—¡Qué monje más feo! —exclamó, sorprendido, el rey al verle—. ¿Cómo es posible que tenga una cara así?
—Majestad —respondió el Gran Sabio con voz segura—, no debe juzgarse a un hombre por su rostro, porque tan imposible es eso como medir con un vaso toda el agua del mar. Si solamente prestáis atención a los hombres de rasgos atractivos, ¿cómo vais a dar caza a los malhechores y a los ladrones?
—Lo que acabáis de decir es cierto —reconoció el rey, asombrado de la profundidad de aquellas palabras—. Es imprudente escoger a los consejeros entre los hombres de aspecto atractivo. Lo que más me preocupa, de momento, es capturar a los ladrones y hacer que devuelvan cuanto antes las cenizas al monasterio.
Ordenó después que prepararan una silla con baldaquino, para que el Peregrino y el jefe de la guardia imperial fueran al monasterio a cumplir lo que había determinado. Al punto los sirvientes reales trajeron una espléndida litera con los cortinajes amarillos y Wu-Kung montó en ella. Era tan pesada, que debía ser transportada por ocho personas a la vez, cuatro delante y cuatro detrás. Otras cuatro iban gritando a los viandantes que dejaran libre el camino. Tanta fanfarria terminó poniendo en alerta a toda la ciudad, que se volcó en las calles, tratando de ver al monje de la cara de dios del trueno y a los dos espíritus ladrones. Cuando Ba-Chie y el Bonzo Sha oyeron los gritos, pensaron que se trataba de algún personaje importante enviado por el rey y corrieron a las puertas del monasterio a darle la bienvenida. Al ver al Peregrino sentado en la litera, el Idiota soltó la carcajada y exclamó:
—¡Ahora eres realmente lo que pareces!
—¿Qué quieres decir con eso? —preguntó el Peregrino, molesto, llegándose hasta donde él estaba.
—Vienes en una litera cubierta de cortinajes amarillos y portada por ocho personas. ¿No son ésos los atributos de un rey? —contestó Ba-Chie—. Si mal no recuerdo, tú eres el Rey Mono.
—No te burles de mí, anda —dijo el Peregrino. Desató después a los dos diablillos y se dispuso a conducirlos ante el rey.
—¿Por qué no nos llevas contigo? —preguntó el Bonzo Sha.
—No, no —respondió el Peregrino—. Es mejor que os quedéis aquí al cuidado del caballo y el equipaje.
—Si queréis, podemos ocuparnos nosotros de eso —dijo uno de los monjes con la cabeza en el cepo—. Así podréis conocer todos al rey.
—Está bien —decidió el Peregrino—. En cuanto hayamos hablado con el soberano, volveremos a quitaros los grilletes.
Ba-Chie agarró a uno de los diablillos, mientras el Bonzo Sha hacía lo mismo con el otro. El Gran Sabio volvió a montar en la litera y el cortejo se puso en camino. Al llegar a las escalinatas de jade blanco, el jefe de la guardia imperial levantó la voz y dijo:
—Vuestros deseos están cumplidos. Aquí tenéis a los diablillos que nos ordenasteis traer.
El rey se levantó al punto del trono del dragón y bajó a ver a los monstruos, seguido del monje Tang y de todos los demás funcionarios, tanto civiles como militares. Uno de los prisioneros tenía un mentón redondeado cubierto de escamas negras, una boca llamativamente puntiaguda y unos dientes tan afilados como cuchillos. El otro, por el contrario, poseía una piel muy fina, una boca alargada y unos bigotes tan duros como cerdas. Aunque tenían piernas y se servían de ellas para caminar, su aspecto era todo menos humano. Pese a todo, el rey les preguntó en tono solemne:
—¿De dónde provenís y en qué año invadisteis nuestros dominios para haceros con las reliquias? ¿Cuántos ladrones tomaron parte en la acción y cuáles son sus nombres? Responded con sinceridad, si queréis conservar vuestras vidas.
Un hilo de sangre fluía lentamente por los cuellos de los dos monstruos, aunque no parecía importarles el dolor. En cuanto oyeron las preguntas del rey, se echaron rostro en tierra y respondieron:
—Hace aproximadamente tres años, el día primero del mes séptimo, el Rey Dragón de Todos los Espíritus se estableció con toda su familia en un lugar a trescientos kilómetros al sudeste de aquí, llamado el Lago de la Ola Verdosa, en el corazón mismo de la Montaña de las Rocas Esparcidas. Su hija, una princesa extremadamente hermosa y seductora, se desposó con un tipo conocido por el nombre de Nueve Cabezas, para el que la magia no tiene ningún secreto. Al enterarse de que el mayor de vuestros monasterios poseía un tesoro de valor incalculable, unió sus fuerzas con las del dragón, dispuesto a hacerse con él como fuera. Para ello, hizo caer una lluvia de sangre, que acabó con el aura que rodeaba el monasterio. No le fue, así, difícil hacerse con las reliquias sagradas, que ahora descansan en el fondo del lago, iluminando día y noche el palacio del dragón. Al mismo tiempo, la princesa logró arrebatar a Wang-Mu-Niang-Niang su planta de agárico, con la que realza aún más el poder de las cenizas. Nosotros, señor, no somos ningunos bandidos, sino soldados al servicio del Rey Dragón, que hemos tenido la mala fortuna de ser capturados anoche mismo. Declaramos que cuanto hemos dicho se ajusta escrupulosamente a la Verdad.
—Si es eso cierto —replicó el rey—, ¿por qué no nos dais a conocer vuestros nombres?
—Yo, señor —respondió uno de ellos—, me llamo Burbuja Ocupada y mi compañero, Ocupada Burbuja. Soy el espíritu de una anguila y éste, el de un pez de color negro.
El rey ordenó al jefe de la guardia imperial que los metiera en las mazmorras. Llamó a continuación a uno de los escribanos y le dictó la orden siguiente: Que todos los monjes del Monasterio de la Luz Dorada sean inmediatamente liberados de sus cepos. Es, igualmente, deseo nuestro que se prepare en el Salón del Unicornio un espléndido banquete, para agradecer cumplidamente a los monjes llegados de lejos su colaboración en la captura de los ladrones. Posiblemente se les confíe, más adelante, la misión de capturar al jefe de los bandidos.
Sin pérdida de tiempo, los cocineros imperiales prepararon un convite en el que abundaban por igual los platos vegetarianos y los que contenían carne. Tras invitar al monje Tang y a sus discípulos a tomar asiento en el Salón del Unicornio, el rey preguntó al maestro:
—¿A qué familia pertenecéis?
—La que me vio nacer lleva el nombre de Chen, aunque en religión se me conoce como Hsüan-Tsang. El emperador me ha concedido el honor de ostentar el apellido Tang. Sin embargo, el nombre que más uso es el de Tripitaka.
—¿Y vuestros respetables discípulos? —volvió a preguntar el rey.
—Ellos no pertenecen a ninguna —explicó Tripitaka—. El primero se llama Wu-Kung, el segundo, Wu-Neng, y el tercero Wu-Ching. Dichos nombres les fueron impuestos por la Bodhisattva Kwang Shr-Ing de los Mares del Sur en persona. Todos ellos me han prometido obediencia y me consideran como su maestro. Por eso, a Wu-Kung le llamo a veces el Peregrino, a Wu-Neng, Ba-Chie y a Wu-Ching, el Bonzo.
Apenas hubo acabado de hablar, el rey pidió a Tripitaka que ocupara el lugar de honor de la mesa, mientras que el Peregrino presidio la mesa que había a su izquierda y Ba-Chie y el Bonzo Sha, la que estaba situada a su derecha. En esas mesas se veía una gran variedad de platos vegetarianos, frutas, té y arroz. El rey se sentó enfrente de ellos en una mesa que exhibía toda clase de viandas condimentadas con carne, lo mismo que las cien restantes, que fueron ocupando, según su rango y dignidad, los funcionarios del reino, tanto civiles como militares. Todos empezaron a comer con la venia de su majestad, que levantó la copa a la salud de tan ilustres visitantes. Tripitaka no se atrevió a llevarse la copa a los labios. Los tres discípulos, por el contrario, aceptaron de buen grado el brindis que se les hacía. El convite estuvo amenizado por la orquesta real, que no fue capaz, con sus melodías, de menguar el enorme apetito de Ba-Chie. Sin prestar atención a la clase de verduras que iban poniendo sobre la mesa, él las devoraba a una velocidad increíble. Los criados le sirvieron más sopa y más arroz que a todos los comensales juntos, pero lo engulló antes de que los demás hubieran probado el primer bocado. Ni una vez rechazó las copas de vino que el maestresala le fue ofreciendo, eso que el banquete duró hasta bien entrada la tarde. Tripitaka agradeció, entonces, al rey todas las atenciones que había tenido con ellos, pero su majestad dijo, agarrándole de la túnica:
—Esto es sólo en agradecimiento por haber capturado a estos diablos. Creo que lo más conveniente será que continuemos la celebración en el Palacio de Chian-Chang[8]. Allí podéis explicarnos cómo pensáis atrapar al que planeó el robo de las reliquias. Es preciso que vuelvan cuanto antes al monasterio.
—Para eso no es necesario que asistamos a otro banquete —respondió Tripitaka—. En cuanto nos retiremos, iremos a la caza de esos monstruos.
Pero el rey no quiso oír hablar de ello e insistió en ir al Palacio de Chian-Chang. Allí se les ofreció un nuevo convite, a lo largo del cual preguntó el rey, levantando deferentemente su copa:
—¿Quién de vosotros va a mandar las tropas encargadas de capturar a ese monstruo?
—De eso se encargará Sun Wu-Kung, el mayor de mis discípulos —contestó Tripitaka y el Gran Sabio juntó las manos e inclinó la cabeza en señal de obediencia.
—En ese caso —añadió el rey—, ¿con cuántos caballos y hombres querrá contar el respetable Sun? Desearía, igualmente, saber cuándo va a abandonar la ciudad.
—¿Quién necesita caballos y hombres? —exclamó Ba-Chie, incapaz de dominar su impaciencia por más tiempo—. Nosotros siempre estamos preparados para lo que sea. De hecho, ahora que estoy bien llenito de vino y arroz, no me importaría acompañar al mayor de mis hermanos en una empresa tan arriesgada. Entre los dos sólo tendremos que estirar las manos, para traer aquí a ese malvado.
—Últimamente te ofreces para todo, Ba-Chie —dijo Tripitaka, complacido.
—En ese caso —concluyó el Peregrino—, que se quede el Bonzo Sha a proteger al maestro, mientras estamos ausentes tú y yo.
—Puesto que, según parece, no precisáis ni de caballos ni de hombres —insistió el rey—, ¿qué armas deseáis llevar con vosotros?
—Perdonad mi sinceridad —dijo Ba-Chie, sonriendo—, pero vuestras armas no nos valen para nada. Nosotros tenemos nuestros propios medios de defensa, de los que no nos desprendemos ni de día ni de noche.
El rey ordenó, entonces, que le trajeran una copa de un tamaño muy superior al normal, con la que quiso brindar a manera de despedida con ellos, pero el Gran Sabio rechazó el ofrecimiento, diciendo:
—Disculpad que no bebamos nada más. Lo que sí os agradeceríamos es que mandarais traer a esos dos diablillos que tenéis en vuestras mazmorras. Desearíamos preguntarles algunas cosas, que nos pueden resultar de mucha utilidad.
El rey así lo hizo y ellos, montando a lomos del viento, se dirigieron hacia el sudeste con los dos diablillos fuertemente amarrados. Al verlos desplazarse de aquella forma por los aires, tanto el rey como sus súbditos comprendieron en seguida que aquellos monjes eran, en realidad, unos sabios.
De momento desconocemos cómo capturaron a los otros monjes. El que desee averiguarlo tendrá que escuchar con atención las explicaciones que se dan en el capítulo siguiente.
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arteriaemchamas · 2 months ago
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QUINTA AULA
Uma coisa importante para gente ver é o paralelismo entre as operações alqu��micas realizadas no metal e aquelas realizadas na alma humana. Engraçado que as coisas não dão certo se romper este paralelismo. Na verdade é mais do que paralelismo: é uma identidade. Quer dizer, a operação alquímica não visa nem ao metal físico nem ao metal da alma. Visa à uma coisa que é uma síntese simbólica de ambos. Quer dizer que o conjunto das operações alquímicas age num a esfera que não é nem psíquica, nem material, mas que é propriamente o ponto de convergência destas coisas. Não existe a distinção entre alquimia material e espiritual: ela é absurda em gênero, número e grau. Quer dizer, se é alquímico, o alquímico se caracteriza precisamente pela inexistência destas distinções; que em outros setores pode não ser tão importante. Quer dizer, tanto faz você falar da alma dos metais quanto do metal da alma: é exatamente a mesma coisa. E é por isso que a linguagem simbólica é entendida como um hiper- literalismo. Claro que tudo isso se baseia numa idéia que é mais do que uma analogia; é uma homologia para a estrutura do ser humano e a do cosmos. Provando assim, o princípio do: Assim como é em cima é em baixo. Você tem um macrocosmo organizado à sua imagem do microcosmo e vice-versa. Isto é: por um princípio de simpatia que, quando se mexe em um, se mexe no outro. Este é o princípio de toda a operação dita válida. E hoje em dia, você encontra o equivalente parcial disto aí na idéia de Ressonância Magnética.
A Ressonância Magnética se usa para explicar certos efeitos ocorridos à distância e aparentemente sem a intermediação de nenhum instrumento. Eles colocam um ratinho num labirinto e o ensinam a sair deste labirinto. Imediatamente todos os ratinhos de outros laboratórios começam a aprender aquilo mais depressa.
Isso quer dizer que, entre membros da mesma espécie existe uma ligação qualquer.
Não muito bem explicada e que os caras chamam de Ressonância Magnética. É mais ou menos como o sincronismo do mundo. Então, a teoria da R. M., é menos uma teoria do que um simples fato. É mais ou menos como o sincronismo de Jung. Só que a soma de observações convergentes foi tamanha que não tem mais como negar. Essa ressonância acontece não só na esfera animal como na mineral. E se você entrar mais na decomposição da matéria até as substâncias químicas elementares, parece que tem isso. quer dizer, quando você num laboratório está tentando uma certa reação química, a partir da hora que se consegue esta reação, o tempo dela fica acelerado em outros laboratórios que não tem nada a ver com aquilo. É como se aquela substância tivesse aprendido, introjetado uma informação. Mas, na verdade, esse negócio de teoria da informação, hoje permite explicar coisas que até 30 anos atrás era considerado totalmente inexplicável. Agora, agente não pode confundir o que é real do que é explicável. A ciência é a tentativa de uma explicação racional dos fatos. Ou seja, uma ordenação racional explicativa dos fatos. Agora, se não temos fato, não temos ciência. Claro que os fatos sozinhos não compõem a ciência, mas é o começo da ciência. Se você rejeitar os fatos porque você não tem explicação para eles, a ciência não pode começar. Porque a ciência começa precisamente na hora em que você tem uma fato não explicável. A ciência começa por um espanto. Então, por um efeito até compreensível, na medida em que o estabelecimento científico progride e se consolida, ele tenta ter uma certa ilusão e um certo domínio no campo dos fatos. Então, o que quer que venha de fora que pareça contrariar o esquema teórico já montado, eles negam os fatos. Então, você cria uma espécie de proibição de fatos que já não estejam dentro da teoria pronta. Mas isso aí acaba com a ciência. Se você só aceita fatos que já tenham explicação, acabou. Isso contraria todo o conceito de ciência. Se todos os fatos que você observa já tem um arcabouço teórico e pronto e só resta encaixar os fatos
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subseqüentes, acabou a investigação. Você só tem a aplicação da ciência. Isso também é compreensível. O princípio de ciência aplicada acaba predominado sobre o princípio de ciência teórica que são mais fáceis, por uma espécie de acomodação.
Então, esses fatos de ordem alquímica, basta estudá-los para ver que eles são amplamente comprovados; o que eles não têm é a menor explicação nos termos da ciência atual. Você precisaria encontrar outros esquemas teóricos. Ou então, ficar sem nenhum: ou você aceita as explicações baseadas nestes princípios de correspondência, simpatia, analogia e toda aquela cosmovisão medieval, ou você vai ter que aceitar o fato bruto, colocar um ponto de interrogação e continuar investigando. Na realidade, o que as ciências modernas fazem é sempre, sempre buscar uma explicação antiga e dar um nome moderno. Não tem nenhuma diferença entre o que hoje chamamos de Ressonância e o que os medievais chamavam de simpatia; e que as nossas avós chamavam de simpatia. Só que elas não usavam simpatia no sentido teórico. Somente no sentido da operação: se você coloca um pote de mel e coloca o nome da garota que você ama e no dia seguinte você conquista a garota. a semelhança entre esta simpatia e o comportamento dos ratos é a seguinte: é a possibilidade de você, agindo num objeto pequeno, você desencadear um efeito grande sem a mediação de um instrumento racionalmente concebível. É um efeito mágico. Isso significa que para diferentes partes do Cosmo que estão separadas no espaço, existe um elo de simpatia conforme a forma dos entes. Quer dizer, entes que tenham a mesma forma respondem à mesma influência ainda que estejam separados pela distância. Isso quer dizer que o princípio da forma, da divisão das espécies em gêneros etc.. predomina sobre a distância. Quer dizer: o fato de um ente pertencer à mesma espécie de um outro cria uma ligação mais forte do que se os dois estivessem juntos no espaço. É a famosa questão da ação à distância: existe ou não existe ação à distância? Por este princípio, toda a ação é a distância. E quando não houver reação próxima também não haverá ação à distância. Aí você age não sobre o ente físico considerado na sua singularidade na hora em que você está agindo sobre o esquema da espécie. Quer dizer, espécie definida como uma forma. Essa forma é como se fosse um programa de computador.
O que quer que tenha um programa e funciona de acordo com este programa, será alterado quando você mexe num dos seus exemplares. Não vejo outra maneira de explicar isso aí. Então, todo raciocínio alquímico se baseia nisso aí. Na hora em que você mexe em certos componentes internos seus, você está mexendo nos equivalentes externo dele. Os alquimistas sempre diziam que a operação que eles fazem não é para regeneração nem do homem nem do metal; mas para a regeneração da natureza inteira. Ora isto pressupõe que, se não existe nenhum alquimista humano fazendo a operação, ela está se fazendo de algum modo na própria natureza. Se ela parar, a coisa vem abaixo. Então, para o alquimista, a transmutação do metal não é um caso excepcional: não é uma exceção, é justamente a regra. Quer dizer, os metais que nós conhecemos, com todas as suas distinções, já são um efeito de uma contínua transmutação que está sendo operada na natureza. E que num determinado campo do cosmos, chamado Terra, ela se estabiliza nestas formas. Este tipo de raciocínio é que permite em épocas remotas, os caras tem feito descobertas assombrosas. Quando você vê que há quase 10 milênios que se associa ao planeta Marte ao Ferro. Então, quando mandam sondas espaciais e descobrem que Marte é feito todinho de minério de ferro.
Veja, na escala do chute, seria a maior loteria esportiva do universo! Como é que o sujeito capta uma coisa dessas! Marte poderia ser composto de milhares de coisas.
Existem outros exemplos deste tipo como quando você vê certas proporções correspondentes do corpo humano. você vê que esse pessoal não estava longe da verdade. Se você fizer uma proporção entre a velocidade da órbita de Marte e de Mercúrio, você vai ver que esta proporção é a mesma entre a velocidade da circulação da corrente sangüínea e a da respiração. Isto segue uma proporção não exata mas
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bastante aproximada. Se quiserem ver este número exatamente, consultem um livro de astrologia muito bom do Mestre Murilo Sementovski. Foi editado em tradução italiana (na biblioteca da Astro dever ter). Então, tudo isso nos leva a compreender que as distinções estabelecida pela Física, clássica não são para serem levadas muito a sério. Por outro lado, você vê que toda a concepção científica moderna se baseia na separação radical feita entre o sujeito e o objeto. Essa é a famosa pensamento de Descartes: aqui existe uma coisa que pensa cujo principal atributo é pensar, e existe uma outra substância cujo principal atributo é ter extensão. Então, é muito engraçado pois desse jeito pensar e medir não são coisas do mesmo gênero. Como é que você vai distinguir duas espécies de substância por atributos que, por sua vez não são da mesma espécie? Quando você separa, distingue, entre os leões e os tigres. São espécies do mesmo gênero. Mas todas as diferenças em que eles se distinguem são também do mesmo gênero. Portanto, a cor da pele. Um tem a pele malhada, o outro não tem a pele malhada, um tem juba, o outro não tem juba. Agora, se você dissesse: um tem juba e o outro não dá leite. Ou o outro não, fala. Isso aí, é uma coisa totalmente ilógica. Se você pega o gênero substância e diz: agora vou distinguir 2
tipos de substância, 2 espécies de substância. Bom, você vai ter que distinguir pela ausência ou posse dos mesmo traços. Quando Descarte faz a divisão de substância existente e substância pensante, ele já está supondo que pensar e ter extensão são diferenças da mesma espécie, o que é uma bobagem. Mas essa coisa, entrou na época na cabeça de todo mundo. Até hoje nós acreditamos que existe no homem um mundo interior que é de natureza totalmente distinta daquela que ele está vendo lá fora. É
como se você fosse um ser que esta colocado fora da realidade, da própria natureza.
Na verdade, tudo indica que não há esta separação de gênero. Pode haver uma separação de modo. É só entrando muito no estudo de Aristóteles para diminuir estas coisas. Porque Aristóteles vai mostrar as funções cognitivas humanas, apenas como o aperfeiçoamento das própria funções corporais. Quer dizer, você não tem mais esse hiato entre o ser, existir fisicamente o e o conhecer. Também não é uma dualidade. É
toda uma escala, um série de transições que você vai passando. Então se formos por Descartes, todas essa operações alquímicas, são todas um non sense: Em que uma mudança psíquica do indivíduo poderia afetar o mundo externo? De fato parece que não. Se você supõe que as 2 coisas são espécies diferentes. Vi um filme uma vez que era sobre a quebra da Bolsa de Nova York. Aí os caras saem de manhã para retirar o dinheiro do banco; e o banco estava fechado. Aí eles ficam esmurrando a porta do banco como se esmurrando a porta fosse botar dinheiro lá dentro. É o tipo da ação desesperada onde a causa jamais produzirá o efeito: você está tentando vencer uma crise econômica na base do esforço muscular. Então, se a visão cartesiana funcionasse, os esforço alquímico seria mais ou menos do mesmo tipo. Você está indo numa esfera aonde você vai alcançar o objeto da ação. Mas, e se a coisa for realmente assim? E se o universo não tiver como principal característica a extensão como pretende Descartes? Quem estudou Leibniz, sabe que a extensão não basta para configurar o objeto real; que além de extensão o objeto precisa ter uma substancialidade individual; precisa ser alguma coisa por ele mesmo. Ou seja, precisa ter forma substancial como dizia o velho Aristóteles. Então, se o mundo real não é constituído somente de extensões, mas constituído de formas substanciais, então o universo não se organiza realmente como uma série de objetos colocados uns ao lado dos outros no espaço; mas ele se organiza exatamente como se fosse uma chave de gêneros e espécies. Quer dizer, está todinho articulado do mais universal ao mais particular. Bem, se o universo não é só uma exposição plana de objetos colocados uns ao lado dos outros, no mesmo plano de tudo, tendo a mesma modalidade de existência que nós chamamos física; e sendo portanto distintas uns dos outros exceto no espaço. mas, ao contrário, o universo vai ser composto de seres hierarquizados por
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gêneros e espécies, então todos eles estão ligados entre si. Não estão separados. E daí é que entra a Ressonância Magnética - que não age só no ser corporalmente separado no tempo e no espaço- mas ao agir sobre um, age sobre a espécie à que ele pertence.
Dentro da operação alquímica, vimos que uma etapa importantíssima era aquela representada pelo fundo da alma. O fundo da alma é representada pela superfície da água pela qual você vê por um lado o fundo, as pedras, o chão. E, por outro lado por reflexo, você vê o céu. O céu representa o conjunto dos princípios de ordem metafísica que não são visíveis, sensíveis; Mas são tão rigorosos e necessários quanto à realidade física. O fundo do lago vai representar a própria natureza da psique como um espelho. Quer dizer, por um lado é um vidro e, por outro lado, é um espelho como qualquer vidro. Pelo vidro, você pode olhar pelo que está atrás dele. Ou mudando o ângulo de visão você vê o que está atrás de você. O vidro é ao mesmo tempo um espelho. A superfície do lago também é vidro para você ver o solo; e é espelho para você ver o céu. Então, esta é a verdadeira natureza da psique: ser vidro (através do qual você vê o mundo físico. E preste atenção que nós não captamos nada, nada, nada do mundo físico a não ser por meio psíquico. Não existe sensação puramente física.
Aliás, sensação puramente física não é nem sentida. nós sabemos que deve existir.
Mas toda a sensação que nós pegamos nunca é sensação isolada. É sensação dentro do quadro que nós chamamos percepção. Ora, se a sensação está dentro da percepção, ela jamais é puramente física, mas existe o elemento psíquico que a organiza. Neste sentido, a psique é o vidro através do qual vemos o mundo físico. Não o vemos diretamente porque ele nem existe diretamente. Por outro lado, é no próprio funcionamento da psique que você verá as Leis supra-psíquicas que ordenam a realidade. Como funciona isto? Por ex.: para eu saber que 2 + 2 = 4, eu tenho que pensar nisto. Então, como é que eu fico sabendo que existe números e estes números estão conectados uns aos outros por leis que presidem as suas relações rigorosamente de acordo que 2 + 2 nunca vai dar igual a 5. Como eu vou saber que existem estes números, que existem estas relações se não pensando neles? Isto quer dizer que eu não capto, propriamente o números, mas a minha idéia de números. Mas, quando eu faço a conta eu não penso nos números, mas estou pensando aquilo que eu penso sobre os números. Pensando signos que representam os números. Porém, eu sei que para além destes signos existe, objetivamente, estes números e estas relações. Eu só chego a perceber que 2 + 2 = 4 através daquilo que eu penso a respeito. Mas eu sei que 2 + 2 = 4 independentemente de eu pensar nele ou não. Então, é por aí que você vê que a psique vai, além de si mesmo. Aliás, a psique só serve para isto. Para que serviria um vidro se não fosse para você ver através dele ou ver o reflexo? Então você imagina um vidro sem espessura, ideal. Ele em si mesmo, não é nada. Ele é apenas uma superfície de transparência ou de espelho. Então, a verdadeira natureza da psique é esta. Ela ser uma transparência através do qual se aparece a realidade do mundo físico e ser o espelho através do qual se percebe dentro de si algo que transcende você mesmo. É um veículo. É menos que um veículo. A idéia que a psique é um espelho é uma das idéias mais velhas do mundo. Na mitologia você tem o espelho de Netuno que tem no fundo do mar onde aparece o mundo inteiro. E
exatamente o mesmo simbolismo do fundo da alma. Quando você encontra este espelho, você finalmente chegou na realidade. A conquista desta etapa, ela é prévia à operação alquímica. É aí que tudo começa. Mas já é uma conquista alquímica.
Podemos dizer informalmente que a chegada neste fundo da alma é Alquimia.
Formalmente não é. Formalmente a transmutação começa a partir daí. A Psique sempre esteve nos mostrando o mundo físico e o mundo espiritual; o mundo supra-físico. Ela não é nem física nem supra-física. Mas, ela é apenas o espelho pelo qual nós vemos um lado e ou outro. Isso quer dizer que o esforço total da disciplina que vai caracterizar o processo alquímico é exatamente a diminuição da atividade
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psíquica; diminuição e simplificação. Por isso que você vê que uma verdadeira psicologia a alquímica iria a contra corrente de praticamente toda a psicologia do século XX. Quanto mais você remexer naquele negócio, mais você vai agitar a água, e menos a psique vai aparecer com aquela translucidez que ela deve ter. É exatamente que quer fazer as doutrinas antigas; que é para parar o pensamento, abdicar do ego etc.. É um modo de designar esta necessidade de encontrar o fundo da alma. Quanto mais você remexe nos sonhos, pior. Porque o sonho o que é? Através do sonho você vê 2 coisas: ou você vê a realidade espiritual ou você vê a realidade física. Agora, se você ficar vendo a própria psique, você não está vendo nada. É o espelho do espelho do espelho do espelho. É o espelho que espelha a si mesmo de milhões de maneiras e não sai disso. É uma masturbação mental em toda a extensão da palavra. Este espelho, a natureza dele é ser translúcido e reflexivo. Isso é tudo: não há mais nada o que saber dele. Então, se nós seguimos o caminho contrário i.é; formos inflando a psique, achando que ela é a única coisa interessante. a psique é tanto mais importante quanto mais modesta ela for. Por isso que a superfície da água não é água nem não-água. Ela é uma película sem espessura. É exatamente essa película que é um nada mas no qual aparece tudo. é isso que quer dizer o chinês com o tal do Yin.
O Yin é tanto mais grandioso quanto mais ele consente em não ser nada. É por isso que é sincronizado com a vaca, por ser um bicho paciente, obediente. A psique está lá para obedecer, não para ter vontade própria. O Yin é exatamente esta Psique em face do espírito. Porém na medida que o psíquico reflete o espiritual, ele está refletindo algo que abarca o mundo físico. Abarca e transcende. Então ele tem um poder sobre o mundo físico. Então, está feita a hierarquia do negócio. Que é o famoso Wong: O céu, o homem e a Terra. Terra é o mundo físico. O céu, o mundo metafísico e o homem é a psique. E a psique aonde ela está? Esta no encontro de céu e da Terra. E você verá que todas as disciplinas espirituais do mundo vão existir sempre numa espécie de individualidade psíquica. Na simplicidade desta psique e não na complicação. Se agente presta muita atenção na Psique, é como querer agarrar uma fumaça. não tem nada ali: Quem olha muito seus sonhos fica semelhante às suas sombras. No livro: Passagem para Índia de Forster usa este ditado hindu como epígrafe do livro. Forster era sem dúvida um sábio: um homem que enxergava as coisas como elas são. A problemática toda daquela moça do filme foi um fosforescência. A mensagem é que você deve esquecer os seus sonhos. Se você nem mesmo tem certeza da coisa, então não importa. A mensagem é claríssima: é aquela caverna cheia de coisas que não são nada. E no fim, a realidade era muito melhor; era um homem indiano bom, simpático e que só estava querendo ajudar. Isso não quer dizer que o mundo psíquico seja inexistente, mas ele só existe se você quer. Agora, a Terra e o Céu, a sujeição do nosso corpo material existem; e por outro lado o mundo meta-físico também existe porque as leis do princípio de identidade. tudo isso presida a realidade com mão de ferro. O mundo meta-físico é mais duro que o mundo físico. Mais implacável que o mundo físico. Muito dos conselhos de ascetismo dever ser entendido neste sentido.
Não adianta nada você ficar sem comer. Se você não comer, você fica delirando. É
melhor você comer e parar de inventar coisa. É na verdade mais um ascetismo da alma do que do próprio corpo. A psique não podendo atuar sozinha, ela pega alguma coisa no concreto. Então vai partir de necessidades corporais e vai ampliar formidavelmente. Qualquer necessidade corporal que você comece a pensar muito nela a psique amplia de tal maneira a que não há o mais o que te satisfaça. Qualquer coisa que você se acostuma a querer. corpo tem um limite do que ele precisa. A psique não! Quantas vezes você precisa comer, quantas vezes você precisa de sexo. Aí a psique se volta contra o corpo. As práticas ascéticas tentam cortar o pretexto de que a alma se serve para ampliar as necessidades. Eu não acredito muito nisso: o que eu acredito é nesse negócio aristotélico do meio-termo. E eu acho que quase todo mundo
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acredita nisso sem saber. Como diz Aristóteles. A virtude é o meio termo entre 2 vícios.
Você está com um vício aqui, pega o vicio contrário e acha o ponto de equilíbrio. Por ex.: a ambição e a preguiça. A ambição é recompensada pela preguiça e vice-versa.
Então não precisa ter virtude nenhuma; basta ter todos os vícios e jogar um contra o outro.
Esse fundo da alma, uma vez alcançado, por um lado ele é o começo da obra alquímica. Por outro lado ele é um coroamento, uma conquista. Esta conquista representa o estado adâmico alcançado. Você virou gente. Assumir que você é gente significa o que? Olha, hoje em dia o homem pensa muito em direitos etc.. Mas, o homem verdadeiro não tem nada disso. Que direitos tinha Adão? Ele nunca pensou nisso. Não é o respeito que os outro têm por você que vai te dar um estado humano.
Ao contrário, ninguém pode te dar o estado humano.. A conquista do estado humano é a conquista de uma centralidade. E neste sentido que se deve entender o simplismo do geocentrismo. Quer dizer: o que está no centro do universo não é a Terra. É o homem? E essa centralidade. primeiro temos que entender o sentido vertical para entender depois o horizontal. E o sentido vertical significa que o homem é exatamente o mediador entre o mundo físico e o mundo espiritual. Quer dizer que entre o conjunto de leis que rege este mundo espiritual e este mundo físico só tem um ser no meio que capta os 2 lados por eqüidistância e compreende a relação entre um e outro.
Explicarei melhor baseado no princípio de identidade: vamos supor que no desenho o mundo físico é o mundo dos Porcos. Por ex.: entre um mundo e outro só tem uma único ser capaz de conectá-los. Porque, como nós (seres humanos) temos um corpo, nós também padecemos das mesmas contingências que aqui estão sujeitas os porcos, as galinhas etc.. Só que nós podemos além de perceber o que se passa conosco, podemos perceber o que se passa com eles. E eles não. O porco só entende de porco.
Os animais para não falar das plantas- se desconhecem uns aos outros. Em primeiro lugar, existem espécies animais que nunca se viram a não ser quando do homem juntou-os no zoológico. Pergunto eu: quando o primeiro urso polar ficou sabendo que existia uma girafa? Além de estarem separados geograficamente, os animais ainda estão separados pelas suas respectivas esferas de percepção que um não abarca o outro Por ex.: as formigas sabem que existem tamanduás que as comem? Não, provavelmente as formigas sabem que existe morte. Mas, quem as mata só nós sabemos. O único ponto de junção de toda a natureza terrestre é o homem. É o único que está informado de tudo. Por isso que o homem é a única espécie que não tem um habitat específico. Todos os bicho precisam de um certo clima, de certas condições. O
homem praticamente se adapta à tudo. Ele tem essa mobilidade horizontal que os outros bicho os vegetais e mineiras não têm. Mais ainda o homem é o único bicho que pode mudar as coisas de lugar. Por ex.: hoje em dia a superfície da Terra está cheia de minerais que foram retirados de dentro da Terra e postos em outro lugar. E isto pode ter conseqüências terríveis; mas mostra o poder que ele tem. Esta esfera das leis metafísicas, ela determina o que se passa em baixo mas não é afetado por nada. Esta de baixo só sofre determinação e não apita nada. O único que sofre e age é o homem!
Não existe nenhum outro ser que faça estas 2 coisas. Mesmo se você falar da anjos.
Anjo é um modo de você dizer uma ação celeste. Então, o anjo também não padece ação alguma. Ele não pode padecer a ação de Deus porque ele é a ação de Deus. É
como o raio do Sol está para o Sol: o raio do sol não sofre ação do sol; ele é ação do Sol. O anjo, a mesma coisa: Ele é uma aspecto da inteligência divina. Agente pode colocar a coisa como agente e ação: o agente é Deus e ação é a do anjo. Então você tem uma esfera da ação e uma esfera da paixão. O homem tem uma vida corporal, um ser biológico vivente e ao mesmo tempo ele tem uma inteligência capaz de abarcar o conjunto dos seres que o rodeia e agir sobre eles. ao mesmo tempo que ele sofre a ação do Cosmos. Então o que ele é? Ele é gente. Esteja onde estiver, tenha nascido aonde
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for. Ao mesmo tempo, ele tem um corpo que se move. Mas ele não se limita a se mover e sofrer o impacto do mundo. Ao contrário, ele consegue abarcar de certo modo a sua inteligência no conjunto dos seres viventes e agir sobre eles. O único bicho que faz isso chama-se homem. Com todas as suas diferenças. A não ser que você vá fazer de diferenças acidentais, diferenças específicas: Ah, mas tem 1,20 m. eu não acredito que eu vá ficar mais assustado quando eu ver um Extraterrestre do que o primeiro pretinho da África ficou quando viu o primeiro português. Imagina um pigmeu preto vendo um homem branco, parecido com um fantasma, de 1,80 m de altura. E me diga aonde que está escrito na definição de homem que ele tem que nascer na Terra. O
homem é um animal racional venha de onde vier. Então, essa conjugação da animalidade que o sujeita à existência material e da racionalidade que lhe permite ao contrário agir sobre a condição material; é exatamente isso aí que define o homem. O
que significa alcançar apenas condição humana? Significa agir sobre aquilo que está sujeito à sua ação. E padecer a ação sobre aquilo que está acima de você. Portanto, invertendo, seria não padecer a ação sobre o que está abaixo de você nem tentar agir sobre o que está acima. É simples. Na Bíblia no Gênesis, quando Deus cria o homem tem: você vai mandar nesse negócio todo e vai me obedecer completamente. Quer dizer: não adianta você tentar agir nesta esfera espiritual porque você não alcança.
Então, o homem tem que obedecer à Deus querendo ou não, sabendo ou não. E lá em baixo? Bom, com relação ao mundo material, o certo é você mandar lá. E se você não mandar? Ninguém vai te obrigar. Nem o próprio Deus. Alcançar esta centralidade de chegar no fundo da alma significa se tornar inteiramente soberano dos fatores que são vegetais, minerais, animais, fatores de ordem natural. E, inteiramente submisso à fatores de ordem espiritual. É esse exatamente o ponto de equilíbrio desta película que qualquer sopro, qualquer agitação da alma balança e ser perde. A alma agitada se torna presa ao mundo físico em vez de dominá-la. Então é mais ou menos fatal que o homem nunca permaneça neste mundo da alma. Assim como a água nunca permaneça calma. Ela fica calma por alguns instantes depois volta. Mas uma vez que você descobriu que isto existe, você não quer mais sair de lá. Mas justamente para se instalar neste fundo da alma, nesta película, este ponto de equilíbrio é que existem todas as disciplinas de concentração. Essa concentração é simbolizada exatamente pelo forno do alquimista. Você vai acumulando um calor interno. Este fogo significa de certa maneira o coração. O coração, é o meio do homem em cujo meio está este o ponto de encontro na vertical, na horizontal, este funda da alma. Neste sentido, o verdadeiro símbolo astro-alquímico do coração é a Lua., não o Sol. O Sol por vezes é considerado também o símbolo do coração e também faz sentido. Este fundo da alma que é o centro do homem é que ao mesmo tempo designa a poluição intermediária do homem no cosmo é um simbolismo de ordem lunar. Aí tem uma das coisas mais lindas do simbolismo universal que é justamente a relação entre o sol e a Lua. Se você pegar o planeta Terra, a Lua e o Sol. Eles estão colocados exatamente assim nesta relação. A lua está no meio. Aonde está o homem? O homem não está na Terra, está no meio: o homem está só como o pé na terra.. A Lua tem o mesmo mecanismo de inchar e desinchar que tem o nosso coração: sístole e diástole. O que o coração faz em 1 minuto, ela faz todo o mês. Ao mesmo tempo, você vê que tudo aquilo que incha e desincha na superfície da Terra, acompanha os movimentos lunares: marés, digestão, processo de engordar e emagrecer. Mas o que dá a medida do tempo desta coisa? É justamente a relação entre a Terra e o Sol. São os movimentos recíprocos entre Terra e Sol. O movimento da Terra em torno do Sol é que determina para nós as direções do espaço. Está em sentido absoluto, para a Terra; e cria uma moldura dentro do qual você pode ver e medir os demais movimentos. Então, agente tem aqui um dos simbolizamos mais óbvios e mais sutis: o espírito, a mente e a psique,.. O
espírito é aquilo que baliza a mente. Ele demarca o território por onde a mente pode
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ser mover. O espírito demarca o quadrante para que o ponteiro (a mente) possa se mover ali. O espírito é exatamente a luz, o sol em particular. Então é evidente que o Sol não é o coração. O coração é a Lua. Porém tão logo você chega no centro do homem , você verá o reflexo do espírito. Então você verá a luz do Sol. O sol representa aquele conteúdo espiritual ideal que se reflete no coração; e que preenche o coração.
Se o coração fosse o Sol, o coração jamais poderia estar na escuridão. Se ele pode ficar escuro, e se obedece à um movimento cíclico, então ele não é o sol, pois este está sempre iluminado. São os corpo visíveis que estão ora iluminados, ora escuros conforme os seus movimentos recíprocos. Mas o Sol tem que estar iluminado 24 horas por dia. São os movimentos do Sol que demarcam este espaço dentro do qual se poderá observar a Terra o conjunto dos movimentos celestes; particularmente o movimento da Lua. Daí que vem o zodíaco. Zodíaco é a demarcação do espaço em terno do movimento do Sol. Um dos grandes filósofos do início da humanidade que foi. Ele capta a relação entre o intelecto puro, o logos e a razão que é a própria mente humana. O espírito demarca os movimentos possíveis da razão e a razão se move ali dentro. A razão significa o próprio coração. A razão é o pensamento humano. Isso quer dizer claramente que os princípios que determinam a razão não são guiados por ele própria. O principio de identidade não é uma criação da razão; ao contrário: ele determina e escraviza a razão. A razão pode mexer dentro dele.
Desenho
Aqui você tem a determinação, o círculo todo das possibilidades, as leis eternas. Aqui você tem o corpos, dos seres criados sobre os quais estas determinações incidem. E
aqui você tem o conhecimento da relação entre uma coisa e outra. O que será essa invenção do homem chamada ciência? Ciência é o estudo dos fatos (aqui em baixo) à luz dos princípio (aqui em cima). E a ciência está aqui no meio. Ora, isto nunca termina e nunca dá completamente certo. Porque a natureza do coração humano se move ciclicamente. Isso historicamente falando. Mas o indivíduo pode de certo modo alcançar uma centralidade permanente. Ou seja, uma consciência permanente de centralidade. E é justamente aí que tem todas as disciplinas espirituais que existem no mundo. Na verdade este é o único assunto que interessa no mundo. O resto é conversa mole. Não é bem conversa mole porque sem este resto também não se chega a este assunto que interessa. Lembra que eu falei que o manual básico de Alquimia era a Física de Aristóteles? Como é que vai fazer para chegar a entender a Física de Aristóteles? Precisa de toda uma cultura, aquisição de conhecimentos, para chegar lá.
Mas se chegar até aí e não ver que tem para cima das ciência uma sabedoria não adianta. Ciência sem sabedora é como um esporte qualquer por mais utilidade prática que tenha.. Tudo aquilo que não diz respeito ao destino eterno do homem só tem importância ocasional. Mesmo um acidente que fosse curar durante toda a sua vida, mas que só curasse no final da sua vida não terá importância alguma.. Uma vida humana que dura 90 anos, ela só vai importar durante 90 anos. Se é uma coisa que não vai importar para a eternidade, 90 anos é igual a 90 segundos. Agora, e aquilo que durasse apenas 90 segundos e tivesse um conhecimento da eternidade? Bom aí começou a ficar importante.
Alcançada esta centralidade isso aí significa uma certa liberdade do homem com relação às determinações do mundo físico; não pode ser uma liberdade completa por causa de sua própria natureza. Seria mais auto-contraditório que o homem se tornasse totalmente livre das determinações físicas. Porque para isso ele precisaria não ter corpo nenhum. Aí seria um espírito deixaria de ser homem, viraria um anjo.
Isto quer dizer que mesmo o sujeito que tenha alcançado a mais alta realização espiritual ele está inteiramente submetido à todas as determinações que tem aqui em baixo. Elas só não terão poder sobre a sua psique. Veja como é absurdo certas pretensões de disciplinas espirituais que acreditam que você se liberta do seu destino,
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da ressurreição física. No Corão, o profeta Maomé por 2 vezes sofreu atos de bruxaria que o atingiram. Então, nenhum profeta está fora da bruxaria. Ele pode se livrar de coisas. Porque? Porque esta será uma ação que será desencadeada por meios psíquicos na ação física. Então ele vai acertar. Vai acertar tanto quanto o outro acertaria uma bala na cabeça. Que, pode se libertar é a psique. O corpo não pode se libertar da usa própria condição. Isso significa que o esforço humano não é para ser anjo, é para ser gente. E ser gente significa assumir a condição corporal na sua inteireza para que a alma se liberte dela, não para que o corpo se liberte. O que significa a alma se libertar? Significa não que você não vá sentir dor, tristeza. você vai sentir tudo só que isto não mudará a sua convicção, porque ele sabe isso. Por ex.: se uma pessoa fica brava, ela fala tanta besteira; ou ela simplesmente vai falar aquilo que ela não falou calma? Isso é uma diferença brutal. É a diferença entre o imbecil e o sábio. Então o que falou o que pensou mesmo estando bravo, ele não é um sujeito que está possuído pela raiva: ao contrário ele é um sujeito que tem raiva. Ele tem tanta raiva como qualquer outro. Só que a raiva é dele. Ele tem a soberania na esfera cognitiva. Não significa que não terá acesso de cólera. Veja o quanto é errada esta idéia de que o homem sábio é aquele cara que nunca se altera. A liberação é um liberação da consciência. A consciência não está não está sujeita à flutuações: aquilo que você sabe você sabe. A sua mudança de estado não muda o que você sabe. Mas você muda de estado do mesmo modo. Quer dizer que você enquanto indivíduo vivente, está sujeito à todas as flutuações emocionais como qualquer outro. Só que estas flutuações emocionais afetaram somente os aspectos inferiores das psique não as superiores; mais precisamente não afetou a parte cognitiva. Quer dizer que você não vai ver as coisas diferentes porque você está bravo. Isto quer dizer que a grande mutação que existe a partir daí é que as próprias emoções dos indivíduos começam a ser órgãos cognitivos. Quando Cristo diz assim: na verdade há mais do que devia se odiar. ele está querendo dizer: você deve odiar aquilo que é odioso. E amar aquilo que é amável. Não conseguimos fazer isso porque a água mexe e você confunde tudo. Se o homem chegar a este ponto, e ele odiar uma coisa é porque esta coisa é odiosa mesmo. Não é mias subjetivo. É isto que é a verdadeira imparcialidade. Imparcialidade não é pairar acima das coisas feito um passarinho e ficar num nirvana idiota. É você não vai ver um único sábio que viveu neste estado de Nirvana que seria uma verdadeira anestesia. Pode até alcançar um estado de frieza que seria demoníaco. Para que serve as emoções e os sentimentos? Eles são repercussões físicas de conhecimentos que você tem. Representa sua resposta personalizada. Por exemplo: se uma pessoa te dá um presente. Evidentemente isto aumenta o seu patrimônio. Mas eu digo, isto é tudo? Se você dá um isqueiro à um retardado mental que não sabe o que é isqueiro, você também aumento o patrimônio dele. Se você dá um presente para um morto também aumentou o patrimônio dele. Mas acontece que o homem reage personalizadamente. Ele fica contente. Ele fica afetado. Por isso que a emoção se chama afeição ou afeto. A emoção é a média da alteração que você sofre pelas coisas que acontecem. Você sempre será afetado e alterado. E se parou de ser alterado significa que você não reage mais personalizadamente. Ora, seria isto uma perfeição?
Não a perfeição é exatamente o contrário. A perfeição é quando a sua alteração reflete exatamente o que está acontecendo. Ele se tornou a media correta: Porque se esse homem odeia o que é para odiar e ama o que é para amar. Ele não é indiferente. Os valores das coisas aparecerão na alma deste indivíduo. Por isso mesmo que eu acho um absurdo esse negócio de que a ciência não pode entrar em problema de valores.
Ora, se não entrar não é ciência. Porque a ciência mesma se baseia numa valor que se chama veracidade; e num outro que se chama conhecimento. Tirar estes 2 valores acaba com a ciência. O que o cientista não deve fazer é projetar valores sobre as coisas. Mas se ele puder perceber os valores que estão lá, melhor. Daí pode parecer
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algum engraçadinho: Mas Kant demonstrou que os valores estão na nossa mente e não nas coisas. Bom não é nada disso: Kant não entendia nada sobre este assunto.
Agora, tem um segundo sentido em que Kant era muito profundo. Se você ler toda a obra de Kant, não como teoria, mas como obra de ascese que era o que Kant queria mesmo porque ele era um carola você verá que ele concorda com tudo isto aqui. Mas isso é outro assunto. Eu não vou demonstrar isso aqui mas é claro que os valores estão objetivamente nas coisas: o Bem e o Mal existem objetivamente. Eles são enormemente confusas. E é precisamente esta confusão que define a nossa condição existencial. Se o bem e o Mal estivessem devidamente separados, agente estaria num ou estaríamos no outro. Isso quer dizer que se eu estou no bem, eu não vou nem ver o Mal. E se eu estou no Mal, eu não vou ver o bem. Ou sou anjo ou sou capeta. Isso não seria uma maneira de resolver o problema; mas seria uma mentira de eliminar o sujeito que tem o problema: você cortou o homem, ficou só os anjinhos. Mas, se existe esta mistura do Bem e do Mal e se o homem está no meio desta mistura tal como ele está no ponto de interseção entre o céu e a Terra? Também é evidente que a distinção do Bem e do Mal não coincide com esta aqui. Porque aqui (na Terra) não tem o mal, e em cima (no céu) não tem mal. Só tem aqui: o Bem e o Mal estão nesta dimensão horizontal. O Mal está para um lado e o Bem está para o outro. Mas note bem que isso só existe para nós. Do ponto de vista de Deus não tem mal nenhum. Nem o capeta é mal;. se ele faz o que Deus quer. Isso quer dizer que o Bem está embaixo, está em cima, está no meio. E o mal está só no meio e só para um dos lados. O Mal está na condição existencial do homem. O Mal existe objetivamente par o homem. Quer dizer, na condição vital que ele está colocado. Mas não é só na cabeça dele.
Os melhores interpretações de Jó formam feitas por William Blake. Jó tinha alcançado a centralidade mas não a sabedoria. Jó passaria do homem verdadeiro para o homem transcendental (nos termos chineses). Transcendental quer dizer: o homem não somente está no meio mas ele enxerga bem em cima. Uma coisa de estar aqui no meio é alcançar a potência disto. Mas não é tê-la realizado. Então entre o começo do livro de Jó e o fim, você tem toda a operação alquímica. Mas só que quando começa, Jó já está no centro. Ele vê aquilo que ele pode ver. Ver como é em baixo e em cima.
Ao mesmo tempo ele vai ver o Deus e vai ver a profundeza do inferno. Ele vai ver tudo.
Como Dante; Dante vai ver a escala inteirinha. Quer dizer, você alcançou isto equilíbrio, essa horizontalidade da água, agora você vai mergulhar para depois subir.
Você vai ver o que está abaixo da natureza humana e o que está acima do próprio céu.
Este céu não é bem Deus. Também não é bem o espírito santo. É a ação do Espírito Santo. É a asa do anjo. Bom, mas atrás da asa tem o anjo, atarás do anjo tem quem mandou no anjo. Então, é aí, que agente tem a passagem dos pequenos mistérios para os grandes mistérios ( você alcançou a centralidade e agora nós vamos te mostrar tudinho). Os pequenos mistérios é o conhecimento da realidade sensível da Terra e das leis metafísicas que as determinam. E os grandes mistérios significam conhecer Deus. Não é um teste que Deus está fazendo. Trata-se sim, do que Platão chamava de A Segunda Navegação: você completou uma viagem, agora vamos conhecer outra maio ainda. Essa outra não é obrigatória. Pode chegar como não chegar. Então em toda a história ou você está falando de uma iniciação de pequenos mistérios que é o mundo da alquimia propriamente dito Ou você está falando de uma segunda Alquimia mais elevada que vai levar ao conhecimento do que é o espírito mesmo. Aí já entre a no mundo do inimaginável.
O mundo físico não tem mal porque ele é só obediente. Se ele não age, ele não tem mal. Se tem um terremoto o que a terra pode dizer? Não fiz por má intenção. Este é o mundo da inocência. Lá em cima também: é a inocência da sabedoria e a inocência da ignorância. Mas tem um negócio aqui no meio que é a nossa parte: a parte que nos cabe neste latifúndio. É o papel que o homem está desempenhando neste conjunto. E
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é um papel que por definição não pode estar totalmente determinado de antemão. Por ter uma condição intermediária, o homem não pode ser nem escravo, nem inocente por ignorância nem inocente por sabedoria. Então, ele tem Por excelência um papel ativo. Mas ativo em relação à Terra e passivo em relação ao mundo celeste. Essas divisões, elas não são rígidas. Porque tudo o que se refere à simbolismos de mundos, você tem significado sucessivo: a coisa prossegue. Não é um a pluralidade no sentido contraditório. É tudo coerente. Mas a coisa pode ser vista em várias dimensões (é como uma cebola). Então, você consegue enxergar até um certo números de etapas.
Daí para diante você não enxerga mais: daqui para diante tudo pá mim é céu. Então na parte dos mistérios dos céus aí a coisa se complica mais ainda. Tem mais andares que o homem não tem nenhuma obrigação de imaginar. Tem uma história do Dante que é a do Papa que escreveu um tratado das hierarquias evangélicas. Morreu, foi pró céu e lá ficou sabendo que não era tudo aquilo que havia escrito estava errado. No Paraíso do Dante tem isso. Isso quer dizer que em vida ele não tinha alcançado os grandes mistérios.. Então, o que tem que tratar é aqui: é a finalidade da condição humana: Torna-te aquilo que és. A conquista dos bens terrestres sejam eles de natureza material, sejam de natureza espiritual é muito relativo. Por ex.: você vai conhecer as artes. Se você for capaz de convergir este conhecimento para a sua finalidade, ótimo. Tudo, qualquer bem ou conhecimento, alegria ou tristeza, tudo é ambíguo. Porque pode contribuir para te levar para lá ou para te tirar de lá. Só uma coisa determina: que é você mesmo. Não importa muito o que aconteça. Qualquer coisa que aconteça o negócio é você tentar virar a coisa para resultar neste tipo de benefício. Este é o caminho reto, caminho do meio: tem que chegar lá. Você estudando a vida dos grandes profetas, você vê uma conquista de uma tamanha objetividade ante o real que não precisa nem antecipar o que vai acontecer. Muitas das capacidade proféticas não implicam nem mesmo uma mensagem celeste especifica que tenha ensinado à essas pessoas isso aqui. Mas às vezes o simples exercício normal das faculdades humanas, você chega lá. O único profeta sobre o qual temos uma documentação extensa é Maomé. A gente se baseia nesse mais ou menos para saber o dos outros. É difícil você distinguir nele o que é uma coisa que foi mandado pelo céu e o que é uma simples consenso dele. Uma coisa que está meio limítrofe à outra. A vida de qualquer modo seja humana seja divina é sabedoria. O limite é que você não sabe.
Agora, ele o profeta, sabe. É por isso que eu acho infame esse pessoal que fica tentando fazer psicologia de santo, de místico tentando explicar por complexo de Édipo assunto de natureza completamente diferente. É o sujeito que tem a psique tosca e fica tentando explicar, analisar os outros. É claro que ficará projetivo. Agente só pode explicar o que está para baixo de nós: aquilo que você já viu, já viveu, uma experiência já absorvida. Mas, se tem uma experiência que está além aquilo tudo que você já passou, você vai imaginar o que? É as mesma coisa que você pergunta para um garoto de 3 anos o que ele acha da vida sexual do papai. Até se você falar em suruba para um adulto, a maior parte dos adultos nunca passaram por isso e nem sabem o que é as implicações psicológicas que isso tenha.
Um dos principais dados que nos alcança no senso de eternidade. Toda a tendência da cultura moderna é o contrário: é prender o sujeito numa espécie de temporalidade imediatista tal que ele não consegue imaginar o dia de amanhã. Quer dizer que coisas que aconteceram para ela há 6 meses, um ano tem para ele uma distância incompreensível, uma nuvem negra de esquecimento; ele já não entende mais nada, muito menos o futuro. É isso que o René Guenón chamava de contra-iniciação: ele vai ficar cada vez mais burro mas ele tem a impressão que está ficando mais profundo. Nenhum sábio tem a impressão de ser sábio. É o senso de obviedade versus o senso de obscuridade: ele imagina que na sua obscuridade está ficando mais profundo. Mas toda a nossa luta é para alcançar o óbvio. Tudo que a gente sabe
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mesmo, tudo o que agente conquistou efetivamente, você entende que não poderia ser de outro modo; então passa a ser óbvio. Ele reconhece que aquilo que ele aprendeu todo mundo sabia menos ele, que ele é só mais um.
O senso de eternidade é nosso assunto de amanhã; é a mesma explicação de hoje mas sob o ponto de vista de consciência de tempo.
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SEXTA AULA (24/01/96)
Já percebemos que alquimia enquanto gênero, não se distingue de modo geral da mística ou do esoterismo. E enquanto espécie ela se distingue da ênfase que ela vai dar no corpo humano como centro das operações. É uma prática espiritual que toma como centro o corpo humano (não incidentalmente como outras disciplinas podem fazer mas, essencialmente!). Mesmo que você esteja realizando experiências alquímicas no forno, a operação essencial não está acontecendo lá, mas no seu corpo mesmo. O que é corpo? Corpo é a cristalização existencial do tempo e no espaço. É
uma espécie de cruzamento no tempo e no espaço: tudo aquilo que existe de uma maneira espacial e temporal é precisamente o que nós chamamos de corpo (espacial e temporal simultaneamente).
Se você quiser ter uma idéia entre as operações internas e externas do corpo, tem um livro muito bom do Armando Barbault, O OURO DO ALQUIMISTA. Há na biblioteca da Astroscientia um resumo deste livro (que são vários volumes). Existe uma fase alquímica que se chama Ouro Potável. Para obtê-lo é necessário vários litros de mas daí você tira vários sub-produtos os quais dão origem à Espagiria que é uma medicina alquímica (exatamente como em outras disciplinas espirituais). Está claro que no curso do processo alquímico (tanto na matéria exterior quanto no seu próprio corpo) se passará por 1 série de mudanças corporais bastante profundas; que poderão resultar em uma decadência física e depois uma restauração completa; Mas tudo isso aí é o folclore da coisa; não tem muita importância; o que importa é o aspecto interior.
O trabalho alquímico então é restaurar uma parte da natureza; é devolver à certos materiais da natureza a nobreza do seu estado originário e portanto a plenitude das suas possibilidades. Isso quer dizer que na perspectiva alquímica a queda não se refere apenas ao aspecto moral do homem mas também ao aspecto ontológico. Não tem a queda de Adão? Isso não quer dizer que maldade por de castigo. Quer dizer que o ser humano tem uma forma de existência que é mais consistente e mais plena de algum modo; isso aí permite então a queda. E todas as operações alquímicas visam a restaurar este estado originário. É fácil perceber que vivemos a maior parte do tempo num estado de dispersão espiritual; que é o da absorção completa de alguma fantasia que nos ocupa naquele momento e, que para nós nos parece o supra-sumo da realidade. Qualquer coisa que esteja lhe acontecendo ou, o que você imagina que está acontecendo, ocupa a tela inteira da sua mente e você não pensa em mais nada. É
como se você estivesse desligado de todo o universo. Este estado é ilusório pois, você não pode se desligar da realidade nenhum minuto. Essas pessoas não estão usando suas faculdades cognitivas para perceber o real e sim para inventar certos esqueminhas que as prende e as hipnotiza (como a estória da cenoura e do burro ou a estória do cachorro perseguindo o seu próprio rabo). Temos outra história da cachorrinha que estava amarrada a um poste pelo laço e ia para trás a toda hora para alcançar o laço. Ela tinha que ir para frente. Mas a sensação de estar presa absorvia completamente o círculo de atenção dela e ela não conseguia ver de onde vinha aquele negócio. Se ela conseguisse parar para analisar a situação, talvez conseguisse. Mas, nenhum animal tem este recuo reflexivo. Os seres humanos em geral estão vivendo deste modo i.é; abaixo de suas capacidades. Por que não faz? Isto aí é uma quebra no estatuto existencial do homem. Isso pode acontecer individual e coletivamente. O que às vezes chamamos de realidade é a fantasia mais boba que existe. Por isso que eu não acredito em revolução, governo melhor etc.. Isso às vezes dá certo ou dá errado por pura sorte. Você vai ver que as propostas mais absurdas dão certo por sorte: A história é o conjunto dos resultados impremeditados das nossas ações. E essa estória de tentar dirigir o desenvolvimento social para uma certa direção é a idéia mais maluca que já vi. Às vezes as coisas dão certo não por aquilo que você estava
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pensando; dá certo por causa de outro fator. Você veja: qual é o país que no mundo inteiro representa a forma de governo mais democrática do mundo? É os EUA, não é?
Bom, mas nos EUA, 70% da população não lê jornal, não participa da política, não vota. E a coisa dá certo justamente por causa da não participação! Então, quando a coisa dá certo é por motivos que ninguém previu e, quando dá errado é pelos mesmíssimos motivos. A capacidade que o homem tem de prever alguma coisa antecipadamente é muito limitada. Você pega qualquer historiador que tentou fazer qualquer projeção de cultura e você vai ver que raramente deu certo. Isso nos dá uma idéia de impotência humana. E esta impotência humana é uma das características advindas da queda. Por um lado você vê que o homem está assim. Por outro lado, às vezes, ele não está assim i.é; às vezes ele tem a capacidade de enxergar as coisas como são e conduzir as suas ações de maneira muito correta. Se deu certo uma única vez significa que pode dar certo e que não é impossível. Significa que o homem tem a possibilidade real de alcançar um estatuto melhor. Mas se ele tem porque que ele não alcança? Este algo que impede é que se chama A Condição do homem depois da Queda. Ou seja, não é que ele perca as capacidades intelectuais etc.. é que ele passa a ser um ser mais desprezível; na escala ontológica ele não é tão importante. Na maior parte dos indivíduos verificamos que o ser humano ainda é um bicho vivendo abaixo de suas capacidades. Isso não acontece totalmente com os outros animais. Se dissermos que 98% das vacas não estão dando leite, diremos que é uma espécie em extinção. Quando um animal não cumpre a capacidade para a qual foi destinado, é porque tem algo errado com ele. Agora, se o homem tem a tal da capacidade de ser o centro da criação, de ter consciência, ter retidão, agir consistentemente etc., porque ele não consegue? Porque ele não consegue sempre ou quase sempre? Não existe este tipo de dificuldade - de manifestar suas próprias capacidades - na espécie animal.
Mas para o homem existe. Por isso mesmo que cada vida humana quando começa, é um conjunto de esperanças, e quando termina é um conjunto de frustrações. Hegel diz que quando contemplamos a história, a primeira coisa que vemos é um amontoado de ruínas: tudo o que foi feito foi destruído e temos que continuamente refazê-lo. Tanto individual quanto coletivamente o homem está sempre abaixo do que ele pode. Porém, nem todos os homens. Uma vida bonita é quando o homem fez tudo o que ele queria fazer e se tornou quem ele queria ser. Então o que faz o homem não realizar aquilo que ele vislumbrou? É um fator de dispersão qualquer que faz com que em vez de ele estar consciente do lugar onde está, do seu encaixe no meio, ele não enxergue mais onde está. Ele está obcecado, hipnotizado naquela coisa como a cachorra estava presa na corda. Agora não é só o homem que baixa. O homem baixando, começa a tal da degradação ambiental. A degradação ambiental não começa com revolução industrial. Eu falei que o animal não fica abaixo de suas capacidades.
Mas, se você fizer a conta do número de espécies animais que foram extintas - não agora na revolução industrial- é um negócio assombroso! Quem sofreu a queda não foi apenas um homem chamado Adão, mas o modelo da espécie humana. Podemos depreender daí que a narrativa bíblica não se passa aqui na Terra; se passa no próprio Jardim do Éden o que é este Jardim? Não é a terra planeta. Quer dizer, todo este drama relatado pelo Gênesis é um drama de ordem espiritual. De certo modo tem a ver com o universo material: na hora em que o modelo da espécie humana cai, o universo inteiro se ressente daquela coisa. A obra alquímica visa colocar o homem dentro de um estatuto onde ele possa legitimamente se considerar centro da criação humana. Você veja: porque a cultura de 4 séculos para cá parece se comprazer em negar a importância do homem no cosmos? Ela diminuí o homem. Atualmente parece mais verossímil que ele seja um amontoado de átomos de carbono do que ele ser um modelo do cosmos! Isso parece ser adequado à condição presente do homem, mas não à sua condição essencial.
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Moisés foi um cara que levou 40 anos para que alguém acreditasse no que ele falava. Como é que ele fez para manter suas opiniões durante todo este tempo? Isso quer dizer que as questões de frustrações e felicidade para ele já estava muito aquém dele. O isolamento moral é muito ruim para nós. Colocar um sujeito numa situação desta é o que se chama numa indústria de Operação Salame: você vai cortando os canais de comunicação do indivíduo com o seu meio. Se ninguém entende ou acredita no que ele fala, ele não pode agir. Cannon ganhou um prêmio Nobel por um trabalho que fez sobre reações corporais no pânico e na raiva. Qualquer sujeito colocado numa situação desta, em 99% dos casos ele morre. Morre porque isso cria um desequilíbrio na circulação capilar, paralisa todos os órgãos do corpo isso é estudado num livro do Lévy-Strauss - Antropologia Estrutural- É assim que se mata o sujeito por bruxaria: total isolamento moral, aí ele não agüenta e morre. É claro que isso só funciona numa comunidade homogênea aonde todo mundo trata o sujeito do mesmo modo. Moisés agüentou isso 40 anos e saiu inteiro; é claro que com isso ele adquire um poder maior que de toda a comunidade junta! O ser humano na sua plenitude é um bicho capaz de fazer isso. O ser humano não precisa de ninguém: ele não precisa que a mãe dele goste dele, que a mulher ou o cachorro gostem dele etc.. Por que ele tem uma comunicação direta com a verdade, ele sabe o que é. Então ele não se preocupa mais com essas coisas. Isto ele pode fazer. Tanto pode que já fez. Agora, o ser humano em geral, ele não resiste a nada, nada, nada. Se sente o tempo todo ameaçado. Então quando você vê a impotência, a incapacidade de agir, o hipnotismo, o limite, você verifica que algo está errado. É a perda da condição ontológica. Não é só a perda de uma capacidade. É que ele se torna um bicho desimportante, um bicho que se pode substituir, que se joga fora e põe outro no lugar. Ele é substituível. Moisés se torna então insubstituível perante a comunidade e aos olhos de Deus. O ser humano foi feito para ter esta importância espiritual.
Toda obra alquímica foi feita para restaurar isto aí. Isto aí é que introduzirá o conceito de senso de eternidade. Este fenômeno da prisão do indivíduo é uma restrição do tempo ao momento presente. Quer dizer que o sujeito não consegue ver nem o hoje nem o amanhã. Ele perde o fio de sua historicidade: ele não sabe de onde vem nem para onde vai. Aquela situação de prisão é tão envolvente que cria uma situação de compressão do antes e do depois: o cara não presta atenção em mais nada. É assim com qualquer situação de perigo ou de angústia. Ela parece que naquele momento ela é toda a sua história. Mas como diz o ditado: A situação é perigosa demais para você se dar ao luxo de ficar com medo. É justamente na hora do perigo que você tem que enxergar! O medo é assim: é uma criancinha que tem quem a socorra. Mas se ela estiver sozinha, ela tem que perder o medo, porque senão é um luxo. É da mais alta conveniência que você mantenha um estado de consciência, que o perigo expanda sua consciência. Porque a tua salvação tanto física quanto hipnótica depende disto. Essa reação de corte de consciência, de compressão não se justifica nem mesmo numa situação de perigo real. Ela se explica mas não se justifica. Ela é sempre injusta, má e inútil, não vai fazer bem a ninguém: se um indivíduo numa situação de perigo entra em pânico, isso não vai fazer bem para ele nem para os outros. Não faz bem para ele porque ele não pode escapar da situação. Não faz bem para os outros porque os outros ainda vão ter que socorrê-lo. Os outros não têm obrigação nenhuma de te carregar. Se você tem medo, trate de ficar com mais medo porque daí você vai agir. Se você pegar um cachorro vira-lata e um com pedigree, a diferença entre ambos não vai ser tão grande quanto se você comparar um cidadão comum com Moisés. A diferença é incomensurável; então como pode pertencer à mesma espécie? O homem tem direito a conseguir um estatuto ontológico melhor. Só que ele não está colocado nesta condição melhor naturalmente; ele vai ter que chegar lá artificialmente, por sua própria iniciativa. E é justamente isso que quer dizer o
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ditado: Ganharás o teu pão com o suor do teu rosto. O pão é o símbolo das ações corretas. O pão é a esfera da moral. O vinho representa os conhecimentos espirituais.
O homem para agir corretamente ele vai ter que passar medo (é isso que quer dizer o ditado acima). Você não conseguir o seu estado anterior de nobreza de graça. É essa a condenação do homem passado. Mas veja, é uma condenação que não é eterna, é temporária. Se você quiser retornar ao estado Adâmico, já vimos que o homem pode.
Agora se você não quiser nada, você vai cair cada vez mais e mais e mais. Agora é claro que você vai ter pagar alguma coisa por isso, pode perder bens materiais Por ex..
Mas, qual é a diferença de você afundar num navio em 1 classe ou em 3 classe? Existe alguma diferença mas é irrelevante.
A sociedade que incute na cabeça das pessoas o desejo de uma Condição econômica melhor é monstruosa. Isso é pior do que a própria miséria. Pior do que a miséria é o desejo de sair dela. Porque se você não ligasse muito para ela, a coisa talvez até se resolvesse melhor; porque você teria miséria sem humilhação, você sofreria menos. Mas o pensamento de hoje é: se você está duro, você não presta. Mas, já não basta você estar duro e ainda ter uma condenação moral em cima de você?
Aquela ideologia que diz que quer que todos tenham bens iguais está provando exatamente que só vale quem tem. Quer dizer que tanto faz aquela sociedade que aprecia estes bens quanto aquela que a condena: são igualmente ruins. Porque ambas são baseadas em valores falsos. O certo é dizer para o indivíduo que essas coisas são muito relativas: se você conseguir juntar bens materiais, ótimo. Se não conseguir, dane-se! Tem coisa mais importante.
Este círculo do momento presente é que tem que ser rompido. E ele é rompido não pela revolta contra ele: porque quanto mais você se envolve com a situação presente, mais ela cerca tua atenção. Então isto será rompido pela concentração na interioridade, no que é importante. Existem no mundo milhões destas técnicas (islâmicas, budistas etc.) e que vão representar exatamente este trabalho do forno.
Esta concentração é que fará você perceber que todos os momentos anteriores e subseqüentes estão de certo modo no momento presente. Por ex.: você pode prolongar a sua memória tornando-a mais rica e mais exata. Os seus momentos passados estão no momento presentes fisicamente. Do mesmo modo os momentos futuros. Isso aí pode se prolongar para antes da tua existência física, cria uma espécie de consciência de momentos antecedentes, momentos históricos; O que se passou na Grécia ou na Roma Antiga está presente de algum modo. Aos poucos, todas essas faixas do momento passado, você começa a perceber a presença delas. Os momentos antigos, subsistem e determinar atos presentes. Não foram apagados. Quer dizer, tudo aquilo que ainda tem o poder de agir é porque subsiste. Uma experiência interessante é você pegar alguma idéia corrente que as pessoas falam e você rastrear a origem histórica dela. É uma espécie de ampliação de consciência do tempo que vai abarcar toda s sua vida e a vida da espécie humana inteira. Quando se chega na máxima extensão possível, aí começa-se a ter uma espécie de consciência da eternidade. O que é o conceito de eternidade? É que em cada um destes momentos esteja colocados em face de uma outra dimensão. Santo Agostinho diz que o tempo é a medida da mudança. E
no fundo esta medida é feita com a régua da eternidade, de simultaneidade de todos os momentos. Se você pegar a totalidade dos tempos passados e comparar com a dimensão eterna, as diferenças dos vários momentos do tempo é quase irrelevante. Se você analisar sua vida como um todo, você verá que todos os momentos são indispensáveis, não pode cortar nenhum. Isso significa que todos os momentos são iguais perante Deus. Essa consciência estendida de tempo, acaba te dando uma consciência de permanência. Permanência significa o seguinte: o mundo sempre foi real, a realidade sempre esteve aí. A experiência que nós temos do passado ter desaparecido, se tornado irreal e de que o futuro é irreal, essa experiência é ilusória.
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O passado é real e o futuro também será real quando acontecer. É somente a sua prisão imediata que dá uma impressão de irrealidade ao que foi e o que será. Mas esta impressão é evidentemente auto-hipnótica. Aquele momento do tempo que você está comprimido, aquele momento parece absorver tudo. Mas este momento não impedirá que momentos seguintes se sucedam. É absolutamente impossível que você pare este momento. Vai haver um futuro sim, necessariamente. E depois que você morrer as coisas vão continuar se sucedendo. E isto é a verdadeira realidade, não a sua impressão subjetiva. Os seus atos certamente terão conseqüências depois que você morrer, saiba você ou não. Você quer realidade ou você quer mente? Aquilo que é produto da sua mente chama-se mentira. Mentir é uma invenção da mente. Chega um momento na vida que você tem que optar: ou eu quero a realidade ou eu quero a minha mente. É por isso que diz o Cristo: Aquele que quiser salvar sua alma vai perder. Aquele que quiser perder, vai ganhar. Então você vai ter que sacrificar a sua mente e ver a realidade. Eu vou ter que admitir que mesmo aquilo que eu não vejo, acontece. Aquilo que eu não sinto pode ser real. Aquilo que eu não sinto é real. Aquilo que eu nem posso perceber, também é real. Bom, aí você começou a ficar em paz com a realidade. Você entende que é você que está dentro dela e que não é a sua mente que está agindo soberanamente ali dentro não! Mas hoje em dia todo o mundo é convidado a fazer o contrário: tudo o que ele pensa e imagina é que é o real. Mas isso é prisão no momento presente, é o supra-sumo do subjetivismo, é a total impotência!
Os homens adormecidos estão cada um no seu mundo. Os homens acordados estão todos no mesmo mundo (Heráclito). Aonde quer que haja um golpe militar no mundo, lá estará Júlio César porque foi ele quem inventou. Pois é este senso de realidade de tudo o que foi e de tudo que será é isso que se chama. O cara inventou um modelo de ação política e que os caras continuam copiando até hoje (tem a ver com ressonância também). Então eu posso dizer que Júlio César afetou a minha vida. Claro, foi ele que ensinou a essa gente toda. Então, ainda que eu não saiba quem foi Júlio César, o fato é que a ação do sujeito ainda está repercutindo. A partir da hora que você começa a considerar estas coisas, você começa a viver numa realidade cheia, numa realidade que é cheia de elementos. Ao passo que antes, estava-se vivendo numa realidade vazia, onde tudo o que acontecia só acontecia para o seu umbigo. Antes você vivia numa ilusão de que a sua mente era o centro da realidade. É a jornada do imbecil até o entendimento. Esta consciência estendida do tempo ela não é ainda o centro da eternidade, mas apenas um passo. Consciência da eternidade significa consciência de estar colocado dentro de uma eternidade. Isso significa, como diz a bíblia, caminhar diante de Deus. É saber que você está sendo contemplado; existe uma eternidade consciente que sabe de você. Caminhada é a sucessão de atos do ser humano. É a sua vida terrestre. Em qualquer evento de qualquer época - mesmo anterior à sua existência, mesmo anterior à existência do homem- você sabe que aquilo lá é atual e está presente. Isso é consciência estendida. Quando que os anfíbio saíram do mar para viver na Terra? Há muito tempo. Mas isso afeta a minha existência ainda hoje. O
fato de que uma coisa sumiu da memória não quer dizer que sumiu da realidade. Uma maneira muito fácil de ver isso é pela hereditariedade. Você nasceu com uma determinada constituição hereditária contra a qual você nada pode fazer. Seu avô, seu bisavô, toda esta gente está agindo em você. Você carrega tudo isto tanto pelo aspecto maligno quanto pelo aspecto benigno. Para você, este plano não está colocado no plano da atualidade mas sim no plano dos resíduos das causas anteriores. É mais ou menos como a bala perdida. Um não sabe de onde veio e o outro não sabe para onde ela foi. Para o atirador não existe vítima e para vítima não existe atirador mas, objetivamente, existe. Pois é este nexo objetivo que nos interessa para modelar a nossa mente - por esta idéia do nexo objetivo e não somente pelo o que nós imaginamos. Ou seja, eu sei que eu não vi mas eu sei que existe. Bom, até aqui vimos a consciência
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estendida do tempo. Mas existe também a consciência estendida de espaço: todas as coisas que estão acontecendo exatamente neste momento. Por ex.: se você está vendo um prédio com muitas janelas, com pessoas lá dentro que têm suas vidas. Quantas destas a tua imaginação consegue captar ao mesmo tempo? Bom, se você for Balzac.
Balzac compôs mais de 50.000 personagens. Mas na verdade, ele não inventou. Ele compôs aquilo com pedaços que ele viu. Isso não quer dizer que em Paris existe 50.000 personagens, existe muito mais! Ora mas, todo este mundo de Balzac é real.
Isso de fato é real é a riqueza do mundo. Ora então eu sou um imbecil na minha redoma e só vejo alguns palmos diante do nariz. Talvez o grande pecado do homem é ele entender que o conhecer é muito mais importante que o fazer. A capacidade cognitiva do homem é infinita mas sua capacidade de fazer é ridícula. Há uma desproporção entre a força cognitiva do homem e sua ação. Ora, se o homem foi posto no mundo por Deus para transformá-lo como diz Karl Marx- ele daria ao homem mais capacidade! Isso significa que o homem não veio ao mundo para transformar o mundo mas para ele ser transformado pela realidade! Temos que sair daquele ovo que agente nasce e começar a ser transformados por este conhecimento. Por isso que a vida contemplativa é melhor que a vida ativa. Por que a vida contemplativa pode se estender até o fim do universo; mas agir, não (estória de Marta e Maria). Na vida contemplativa, deixamos que a realidade molde nossa mente em vez de tentarmos inventar uma outra. Isso aqui é um gigantesco forno alquímico onde nós estamos sendo transformados. Claro que dentro destas transformações, algumas são frutos da tua ação, mas isso aí é muito pequeno. Basta você tentar mudar sua vida e você vai ver que alterações mínimas requerem esforço de anos! Vaca foi feita para dar leite, passarinho para voar. Nós que temos capacidade cognitiva muita acima da nossa capacidade de ação, portanto o conhecimento é mais importante.
Então, o primeiro passo seria a concentração e a admissão da realidade. Já vimos a consciência de tempo e espaço. O que é consciência de eternidade? É a visão de simultaneidade de todos estes momentos. Isso quer dizer que do ponto de vista de Deus, o momento que os anfíbios começaram a andar na Terra é tão atual quanto este momento agora. Para nós este momento parece mais importante; mas objetivamente este momento é só mais um dentro da seqüência. Isso quer dizer que em cada ato que temos deve haver nele uma consciência de eternidade. O ato que é feito com esta consciência ele é moldado pela eternidade. Se cada ato é feita com esta consciência, cada ato é eterno também. Basta que ele não pretenda ser o único. Na eternidade existe um script do seu papel que você desempenha ou não. Então, o que seria o ato melhor possível dentro de cada momento? É o ato que corresponde àquilo que na eternidade corresponde a seu modelo, à sua perfeição: a idéia que Deus sempre teve a seu respeito antes mesmo de fazer você. Voltamos ao tema inicial do bem supremo, a permanente concentração no bem supremo. Qual é o melhor ato possível? O ato que é plenamente significativo dentro da tua escala. O ato que eu posso fazer.
A fugacidade não existe objetivamente. A fugacidade é uma impressão: todos os momentos ficaram, nada se perdeu, estão sempre presentes. Não está presente na mesma modalidade porque seria auto-contraditório.
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ALQUIMIA E ASTROLOGIA (30/01/96)
Leremos 2 textos hoje: Um, não por coincidência, foi tirado de um livro de Alquimia. E
o outro, de um livro que não tem nada a ver com Alquimia. É um romance de Georges Bernanos (um escritor francês que morou no Brasil por muito tempo). Vamos ler o primeiro parágrafo, depois agente volta para comentar.
O SENTIDO ESPIRITUAL DA NATUREZA (por Julius Evola)
A relação do homem moderno com a natureza pertence à tradição hermética-alquímica.
Comentário: Porque ele usou a palavra ciclo entre aspas? Porque não existe uma divisão temporal clara entre uma época pré-moderna e uma época moderna. Mesmo porque, existem sociedades que ainda estão no chamado ciclo pré-moderno. Inclusive se nós perguntarmos: como é que o sujeito que está na época moderna pode saber destas coisas que foram escritas pelos antigos? Bom, existem três argumentos. O
primeiro é pela convivência com sociedades primitivas que revelaram alguma coisa à esse respeito. Em segundo lugar, através de documentos, pela reconstituição da história. Em terceiro lugar, pela própria estrutura da alma humana que é um microcosmo (não só no sentido cósmico como no sentido histórico). Isso quer dizer que qualquer experiência que tenha sido vivida pelo homem de qualquer época da civilização tem um análogo dentro de nós; e procurando direitinho agente encontra este análogo. Quer dizer, nós podemos voltar a sentir as coisas como outros homens se for escavada a imaginação. É claro que você vai vivenciar por momentos aquilo que para eles é uma experiência constante. Também é claro que essa experiência puramente imaginativa, reconstitutiva não vai ter a intensidade da experiência real das pessoas. Mas dá para gente saber do que se trata. Ora, precisamente no trajeto alquímico, o que se faz é uma reconstituição sistemática deste outro modo de ver a coisa. Você não somente tem a atitude do historiador que evoca imaginativamente as experiências anteriores deste povo mas você vai atualizar, resgatar as possibilidades perdidas através de um esforço sistemático que é justamente essa trajetória alquímica.
. A natureza esgota-se hoje fixadas unicamente por relações matemática.
Comentário: O que se entende hoje do estudo da natureza física, alquímica etc.? São ciência que procuram estudar da natureza somente os seus aspectos diretamente mensuráveis, matematizáveis. Quer dizer, é uma espécie recorte da natureza (onde vai pegar apenas os seus aspectos quantitativos mais facilmente captáveis e organizáveis no conjunto de relações). Relações que quando se revelam constantes, cíclicas, repetitivas, adquirem o nome de Leis. Lei científica é uma espécie de equação matemática que se verifica repetidamente estabelecendo uma relação entre fatos da natureza. A ciência hoje em dia é do tipo descritiva geométrica da natureza e que busca somente as repetições. Ora, o aspecto repetitivo e mensurável de um fenômeno, é evidente que é só uma faixa, um corte uma fatia por assim dizer. Se você pegar antes do ciclo chamado Ciclo Moderno que começa com a Renascença, você verá que a ciência Física se ocupava de muito mais coisas. E a questão do significado que ele coloca ali. O significado pressupõe uma intencionalidade. Ora, em todo o ciclo moderno praticamente toda a cultura universitária se baseia na idéia de que só existe intencionalidade no reino da intencionalidade humana e nada mais. Somente o ser humano possui intenções e portanto que age com um significado. Ao passo que todo o reino da natureza terá que ser explicado independentemente de significados. Ou seja, a ciência não se interessa prelo que a natureza fale a nós. Mas, apenas em descrever e
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medir o seu comportamento desde fora. Há um recuo. Evidente que esta concepção vem diretamente da divisão cartesiana entre a coisa pensante que é a nossa mente e a coisa extensa que são o objeto da natureza. No século XVIII, Leibniz vai mostrar que apenas o aspecto quantitativo, a medida, não bastava para constituir um conceito de um ente real; e que portanto o mundo estudado pela Física, não era propriamente real. Mas, um esquema matemático que coincide em certos pontos com o mundo real.
Podemos fazer uma analogia da seguinte maneira: imagine uma figura humana qualquer. Se você marcar determinados pontos nesta figura, você pode descrever todos os movimentos desta figura só a partir destes pontos. Aonde essa figura se movesse estes pontos se moveriam junto com ela. E a descrição dos movimentos destes pontos corresponderiam rigorosamente ao real. Só que não se parece em nada com a figura como um todo. Então, toda a operação que nós chamamos ciência física consiste em fazer isso aqui: marcar determinados pontos que são mais fáceis, os mais matematizáveis, e acompanhar o desenrolar deste aspecto da realidade buscando as simplicidades e as repetições. E a hora que você conseguir vincular este movimento aos conceito básicos como matéria, movimento etc., você diz que estabeleceu uma lei.
É claro que essa lei funciona. Você poderia estabelecer neste mesma figura, uma equação das distâncias máximas possíveis entre este ponto e um outro ponto conforme as várias posições do indivíduo relacionando são mesmo tempo uma certa distância com outra qualquer. Você pode denominar x, y, z. você pode fazer uma equação dizendo que a distância máxima de z a y varia conforme a distância de x a y.
E você tem aí uma formula que será inteiramente verídica em todos os casos. Você não pode dizer que isto seja irreal. Mas também não pode dizer que seja real. É um mundo, um tecido de relações matemáticas. E o reino da intencionalidade, da significação? Ele fica combinado pelo mundo da linguagem humana. Só o que pode fazer sentido para o homem da civilização moderna é a fala humana. (o resto não precisa fazer sentido. O resto apenas se comporta de uma maneira mais ou menos mecânica). Também é claro que este despersonalização da natureza traz como conseqüência um excessiva personalização do mundo da fala humana: porque o homem, vivendo num universo hostil sem significado, é lógico que ele se sente mal; e as suas necessidades de expressão e comunicação se tornam exacerbadas. Daí que ao mesmo tempo a ciência vai descrevendo um mundo cada vez mias impessoal. Você vai vendo na prática o processo inverso: um processo de subjetivação cada vez maior.
Por ex.: quando Shakespeare no século XVIII no período romântico, as pessoas começam a falar de suas emoções interiores das mais subjetivas que nunca o homem tinha tido em toda sua existência. Então, memórias de Jean Jacques Rousseau você vai ver o indivíduo pegando a sua vidinha a alminha se desdobrando nos mais íntimos detalhes para todo mundo ver. Isto aí é um reflexo de uma despersonalização da natureza. Então, é um espécie de excesso para compensar um excesso contrário. É
justamente desse processo da subjetivização da expressão artística concomitante à perda da comunicação com a natureza que você vai falar o Georges Bernanos no segundo parágrafo. Talvez fosse conveniente neste instante ir para o outro texto para depois voltar.
A PERDA DO SENTIDO ESPIRITUAL DA NATUREZA (por Georges Bernanos)
.
.. Como as cidades, através das pedras, senão para soltar nela o rebanho de suas mornas sensualidades.
Comentário: Ele começa a falar das vozes das cidades. Cada rua que você atravessa tem um tumulto específico e quando você sai daquela rua este tumulto ainda acompanha você. Até você encontrar um outro tumulto. Ele está falando de uma voz
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mas não é uma voz que ele deveria mencionar; porque somente as florestas. As colinas, o fogo e a água têm vozes exatamente no sentido que estava falando Julius Evola no outro texto. Ele diz que não compreendemos mais esta linguagem. O homem lírico é exatamente o artista subjetivista moderno. Onde ele fala das suas emoções individuais. (Ex; Jean Jacques Rousseau, Victor Hugo etc..) Ele diz que os poetas do romantismo acreditavam ter restaurado esta linguagem da natureza porque eles faziam poemas onde a natureza parecia acompanhar as emoções do homem. A paisagem virava pano de fundo para as emoções do homem (no Brasil agente tem o exemplo de José de Alencar). Porém, segundo Bernanos, isto não é linguagem da natureza. Isso é uma coisa que está sendo colada à natureza. Ele coloca este homem lírico no grau mais baixo da espécie humana. Diz ele que é o tipo mais inferior que existe. Porque este já não entende nada da natureza e ainda a prostitui colando sobre ela suas emoções subjetivas e oferecendo para a despersonalização da natureza um remédio que ainda é pior. Porque a ciência moderna não fala a voz da natureza. Mas o poeta, o artista, ele já não cala apenas. Ele coloca uma outra voz em cima. Leva a falsidade mais longe ainda. Ele diz que a poesia moderna, acreditando o ter restaurado a linguagem da natureza, não libertou a natureza das figuras míticas, elementais (duendes, etc.) senão para soltar lá o rebanho das mornas sensualidades do próprio artista.
.O mais forte deles já estrangulado pela velhice, enchia as ruas e os bosques com a sua infatigável duplicidade.
Comentário: Ele está dizendo que no fundo, a inspiração todinha é puramente erótica: são as garotas que não quiseram dar para o sujeito ou que quiseram dar para ele. É o erotismo subjetivo pessoal mais boboca que é no fundo a fonte de tudo isto. Em vez de ouvir a mensagem profunda da natureza, a linguagem dos símbolos alquímicos que é uma lição inesgotável sobre o próprio sentido da existência, ele faz o contrário: ele não repara a natureza senão para fazer dela um símbolo ou um elo da sua própria emoçãozinha.
Por trás dele. grotescos soluços ante a velhice e a morte.
Comentário: No fim, é a curtição do homem (amor quando você é jovem) depois quando você vai ficando mais velho e brocha é a melancolia (Ah, estou ficando velho e acabado). No fim, a inspiração destes caras todas não é nada mais do que isso aqui: falar o óbvio. Você não tem nada a aprender com as descrições das emoções amorosas, alegres ou melancólicas dos outros. São exatamente iguais às suas. E o pessoal adorava isso na época. Hoje nós não percebemos as nossas própria babaquices às quais serão evidentes para gerações futuras. Depois que a literatura se cansou deste desfile de emoções surgiu a escola parnasiana que fazia exatamente o contrário: puramente cerebral. Mas a reação à uma porcaria é outra porcaria. Ficam todas no mesmo plano e não conseguem ascender. A grande obra literária do século é The Waste Land de T. S. Eliot. O que Eliot vai fazer: Ele vai pegar este simbolismo das cidades, da terra que foi gasta e onde só sobrou as vozes humanas. Não tem mais mundo. Eliot entende a civilização como uma sucessão de camadas que vão se superpondo. E no fim, o ponto de partida já não é mais visível. Se bem, que todo este legado do passado continua aí só que soterrado. E aí você vai ter que escavar. E esta escavação da história da civilização (justamente para tentar encontrar algo soterrado).
É justamente o sentido da obra de Eliot. Eliot vai tentar encontrar por trás da civilização das máquinas, do capitalismo moderno a voz da natureza que é a voz de Deus. Mas ele não pode ir direto, você tem que primeiro descascar essa coisa toda.
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Esse parágrafo aqui, se pensarmos bem é toda a história cultural do ocidente neste último século.
.por trás a massa dos discípulos precipitou-se como quem come.
Comentário: quer dizer, todo mundo avançou, mas simplesmente como quem como, como quem vai à um restaurante
.à solidão sagrada no sonho abjeto de associá-la à suas cruzes à sua melancolia, decepção carnal.
Comentário: Quer dizer, cada um querendo usar a natureza.
O contágio, avançando passo a passo, estendeu-se aos antípodas. A ilha deserta recebeu seus confidentes e testemunhou seus amores.
Comentário: O que quer dizer ilha deserta? Seria o símbolo mesmo da solidão sagrada da natureza que seria uma ilha deserta na qual nunca ninguém foi. E até aí a massa inteira dos literários fazendo aquele barulho medonho já botou os seus amores, seus sentimentinhos etc.. Invadiram tudo. Você vai ver também, logo depois de Victor Hugo, vem Baudelaire que é exatamente o contrário. Baudelaire descreve as cidade com ferro, fumaça, a feiúra da cidade. Ele acaba se apaixonado pelo horrível e faz a poesia do horror. É um protesto mas acaba fascinada pelo mal. É a impotência da cultura moderna para romper com este círculo, este falatório que tampa a voz da natureza.
.nenhuma pradaria, jorrando luz e orvalho no candor da aurora, ele não se apodera do seu ritmo interior e sua profunda dominação.
Comentario: O ritmo interior que precisamente falava Julius Evola. Note bem que Georges Bernanos nunca leu Julius Evola e nem o contrário. São pessoas completamente diferentes; não só por cultura como por mentalidade. Mas que passam exatamente o mesmo fenômeno: que existe um movimento interior da natureza.
Exatamente este ciclos das transformações alquímicas. E que é ao mesmo tempo o movimento interior da nossa própria alma. E é justamente aí que o homem que impõe a usa presença na natureza não pode captar mais. Se você manda a natureza calar a boca e começa a falar em cima dela, com você ela não fala mais.
.todavia se está no homem impor à natureza a sua presença, e não responde senão à elas somente.
Comentário: Quer dizer que o canto da natureza continua. E esse é todo o nosso esforço: você vai ter que sintonizar para saber o que ela está falando. Seja o pessoal que está querendo aprisionar a natureza como relações matemáticas, seja aqueles que em reação contra isso, transformar a natureza no palco de suas emoções eles, vão ouvir mais nada. Quer dizer que as 2 grandes correntes da cultura moderna (que seria a ciência matemática e o protesto subjetivo do artista) essas 2 estão se afastando do que estava lá para trás.
.Não é assim com as paisagens de ferro e de alvenaria, construídas que são na dor e no suor?
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Comentário: Veja, as cidades, a civilização humana é as vezes colocada como o reino da liberdade. Nas cidade, o homem se libertou da sujeição da natureza. É o reino da democracia, do socialismo etc.. Então como que poderia ser um monumento da liberdade este negócio que foi construído na base da exploração do cosmos, da escravidão, Que liberdade tem nisso?
.
..a liberdade se são fortalezas. ante a rebelião das coisas e dos elementos Adão vencido?
Comentário: Como ela poderia renunciar a liberdade se elas são o abrigo onde Adão vencido pela rebelião das coisas, dos elemento foi buscar refúgio? Os elementos são exatamente a natureza. Adão passa a ter medo da natureza e foge para dentro das cidades.
.a vida essa morada transitória, guardiãs de nada mais que nossos ossos?
Comentário: A situação urbana é por um lado, a expressão de toda esta ciência técnica. E dentro das cidades surge um tipo de cultura que é especificamente subjetivista como compensação. Como as pessoas estão muito oprimidas ali, então todas as pessoas têm que exprimir os seus sentimentozinhos para sentir que são gente. Mas é uma expressão muito pobre e que vai corromper o sujeito ainda mais. O
que quer que venha de bom para a civilização humana, qualquer intenção humana, ela se superpõe à realidade, é demência mesmo. O empregado que tira férias e vai para montanha, ele acredita que está sonhando. E depois quando ele volta para o trabalho, ele acredita que voltou para a realidade. Mas é ao contrário: as montanhas, o mar são realidades que já estavam aí há milênios. Isso não que dizer que temos que acabar com a civilização, com as máquina; mas que temos que colocar as devidas proporções nas coisas. Os mares, as estrelas, os planetas existem mesmo e nós estamos há num mundinho pequenino de civilização colocando as nossas intenções.
Mas este não é efetivamente o mundo real. E somente uma forma de adaptação humana à um mundo real que já preexistia. A redução matemática que se faz da natureza é fácil entender que ele é uma reação causa da pelo mundo. Quer dizer, ela é uma espécie de refúgio intelectual no qual o homem, aterrorizado dentro da complexidade da natureza, se esconde dentro de uma versão simplificada que ele mesmo inventou. Isto é uma reação primitiva. Essa simplificação mental que é feita pelo homem para não ver a realidade porque você está como medo dela (vem vez de você estabelecer uma espécie de diálogo para você tentar entender do que está se passando) esta reação não é do mundo moderno; ela sempre existiu no homem. Tem um historiador de arte que observou isso aí: Quanto mais você remontava para trás na historia da arte, as formas de desenho eram mais simplificadas, esquemáticas e geométricas. Porque que o homem primitivo em vez de desenhar o que via, desenhava figuras geométricas? É simples porque ele estava no meio de confusão natural. Tendo medo daquilo, ele recuava para um mundo inventado, geométrico um mundo matematizável (dentro das possibilidades matemáticas que ele tinha). Quando você chaga mais ou menos na época do império greco-romano, você começa a ver que se alcançou aí um certo domínio da natureza que permite que o homem olhe de novo para a natureza, sem medo, e comece a gostar dela. Porém se você avançar mais, quando a civilização urbana cresce e tampa a natureza, aí você começa a idealizar a natureza dada vez mais: daí surge o romantismo essas coisas todas. É uma natureza, uma naturalidade inventada. Quando agente fala em naturalidade inventada, não é só a visão do universo natural onde você tem a introdução do artificialismo. Mas na própria expressão dos sentimentos humanos. Na época de Jean-Jacques Rousseau onde era moda ser sincero, ele inventa emoções que ele não tinha, inventa até pecados que ele não fez em nome de ser sincero. Isso quer dizer que até no contato consigo
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mesmo, não só com a natureza exterior mas com a sua própria natureza íntima), o homem substitui o inventado ao observado. A pesquisa histórica comprovou que muitas das sacanagens que Rousseau atribuía à si mesmo eram mais uma super-pose de sincero. O pessoal descobriu que ele não era tão ruim quanto ele dizia, quer inventado mesmo. Essa coisa de você tentar parecer pior do que é, essa sinceridade posada, é uma típica invenção deste terceiro estágio da civilização onde a civilização urbana já tampou completamente a natureza. Como você não pode chegar nela, você a inventa. Ora, na mesma medida que você inventa a natureza exterior (como já dizia a divisa alquímica: como é em cima é em baixo) na medida em que você se afastou completamente da natureza sensível e agora você tem que inventá-la você acaba se afastando da sua própria natureza interior e tem que inventá-la. Então você já não sabe mais o que se passa dentro de e você. Você pode inventar uma fantasia lisonjeira ou deprimente. Mas tanto faz, você pouco sabe a respeito de si: a imaginação está inventado tudo. Se você verificar as doutrinas modernas a respeito do inconsciente, existem tantas criações diferentes do inconsciente (Freud, Jung, Reich) que estou seriamente inclinado a acreditar que não tem nenhum santo. Porque ninguém pode observar tudo isto. E pergunto eu: será que um auto conhecimento autêntico seria tão diferente de pessoa para pessoa? Então eu teria um inconsciente freudiano, você teria um inconsciente Reichiano. Inconsciente dever ser mais ou menos igual para todo mundo. Quer dizer, estão tentando pegar a natureza interior do homem desde fora e com uma grade de conceitos mais ou menos inventada: exatamente como da a Física com a Matemática Tem-se que deixar a alma falar. A condição sine qua non para a alma falar é entender que ela não vai falar nada de acordo com a divisão dos conhecimentos que nós inventamos. Quer dizer, a natureza não vai dar hoje para você uma aula de Física, uma aula de química depois uma aula de gramática; ela não vai fazer isso. Então para começar a entender é preciso admitir em primeiro lugar que as nossas divisões universitárias do conhecimento forma inventadas por nós mesmos.
E que a natureza é uma só e ela só pode falar de tudo junto. Você é que tem que depois separar e classificar. Mas se você espera que ela fale em qualquer das linguagens, que nós concebemos, para isso, ela não vai falar. Ela vai ter que ter uma linguagem própria que é prévia, que é anterior, que é mais básica do que todas estas divisões. Mas precisamos entender esta linguagem que é a linguagem simbólica. A Ciência Natural (no tempo que os filósofos ainda eram capazes de interpretar algo da ciência natural) era simultaneamente uma ciência espiritual. E os muitos sentidos dos símbolos remetiam os diversos aspectos do conhecimento mesmo. Agente só vai entender a Física de Aristóteles se entender isto aqui. A física antiga podia ser ao mesmo tempo uma teologia e uma psicologia transcendental. O que é psicologia transcendental? É a psicologia dos aspectos superiores, cognitivos do homem. Ora, para o nosso conceito atual de ciência física qualquer consideração de ordem teológica ou de psicologia, transcendental é totalmente extemporânea (porque a física só se ocupa de medir relações matematizáveis: ela entende disso como ciência natural).
Bom, por um lado tem uma ciência natural por outro lado tem o estudo da natureza que é por um lado a física, a matemática; e por outro lado existe o estudo do homem que é história, sociologia etc.. E os aspectos espirituais da própria natureza, aonde fica? Não ficam, não tem lugar para eles. Eles não podem ser captados nem pela Física, nem pelas ciências naturais, nem pelas ciência humanas? Porque é mais básico do que essa divisão do natural e do humano. Ela é intrinsecamente inseparavelmente natural e humana.
É justamente essa síntese do natural e humano no divino que caracteriza este ciclo pré-moderno. Se você pega a linguagem humana, alguns dos símbolos humanos então é ciência humanas (astrologia história, lingüística etc.) Por outro lado, você tem uma linguagem cósmica (que é a ciência da Física etc.); mas não é bem uma linguagem; é
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um conjunto de esquemas). Mas quando junta isso aqui? No mundo cartesiano porque a mente e o corpo a coisa extensa não junta. Ora, isso aí é simplesmente uma divisão do saber.
E absurdo que essa divisão do saber coincida exatamente com a divisão da realidade. Porque estas 2 coisas não estão realmente separadas. Aonde está o mundo humano (o mundo histórico, da línguas etc.) está dentro do Cosmos chega à nosso conhecimento se não através das estruturas dos conceitos, da linguagem que nós mesmos inventamos para captá-la? Esse é o máximo problema do conhecimento do século XX que seria onde você captava a linguagem comum da natureza e do homem?
E onde está esta linguagem? Bom, por um lado ela está na imensidão da natureza visível. E acima, está na esfera puramente metafísica. É em cima que nós vamos ter que juntar a linguagem humanas e cósmica na linguagem divina. Se existe a ciência da interpretação da linguagem divina, é exatamente estas bases complementares da alquimia que nós estamos falando. Quer dizer que se, de cara, nós abolíssemos da ciência as considerações das chamadas causas finais, as finalidades nós não vamos entender coisa nenhuma. Se nós acreditamos que nas ciência física tudo pode ser explicado apenas pela causa eficiente (por aquilo que provocou o acontecimento e não a finalidade pelo que acontece) não vamos entender nada. Ora, o presente número 1
do método cientifico da Renascença é abolir estas causas finais (abolir a finalidade e estudar somente as causas eficientes). Por outro lado, se existe uma intencionalidade natural, ela não é uma intencionalidade no sentido humano porque senão nós vamos cair de novo no Romantismo (quer dizer, a chuva que cai, vai falar da namorado que ele largou ontem) Ou seja, se a natureza fala e tem intencionalidade, o que ela fala deve ser uma coisa completamente diferente daquilo que se fala no mundo exclusivamente, na sociedade. E o que ela fala também deve ser muito diferente do que captamos na natureza quando observamos de fora como mero tecido de relações matematizáveis. Para complicar mais a coisa, aconteceu que este estudos alquímicos, metafísicos etc.. bem como as tradições que ser tornaram portadoras deste conhecimento, se tornaram objeto de interesse das ciências humanas. Então hoje existem estudos históricos, antropológicos, sobre alquimia e ritos que tentam encarar todos estes conhecimentos apenas sob o ponto de vista da linguagem humanas. Aí é que a confusão chegou no seu máximo. Estudos sobre o esoterismo seria na verdade uma esoterologia (na verdade seria um estudo sobre o que certas culturas falaram sobre os conhecimentos esotéricos; os quais nunca são enfocados como tais, mas apenas no seu reflexo cultural) Por ex.. agente pode explicar que tal cultura acreditava em duendes. A antropologia pode verificar isso aí. Agora a antropologia não pode verificar se o duende existe ou não. Agora, se eu não sei de uma determinada crença reflete algo da realidade objetiva ou não, como é que eu vou entender esta crença? Por ex.: você acredita que você assistiu esta aula porque você esteve aqui.
Agora, amanhã ou depois o sujeito vai estudar sua psique e vai querer os fundamentos da sua crença nesta aula sem levar em conta que a aula realmente aconteceu. Outro ex.: na América não havia cavalos (os espanhóis que trouxeram). Daí depois que os índios viram cavalos eles passaram a acreditar em cavalos. Agora explique a crença dos índios em cavalos sem levar em conta que os espanhóis trouxeram cavalos para a América. Aí você podia dizer na cultura indígena existia alguns símbolos que explicava, a crença neste tipo de seres. E você vai ter que achar uma explicação antropológica para aquele negócio; Mas não tem explicação antropológica para aquele negócio; não tem explicação antropológica alguma! O
sujeito acredita em cavalo porque ele viu cavalo. Por outro lado uma cultura também pode implicar a crença em coisas que não existem, algumas maluquices de fato? Só que antropologicamente nós não temos como distinguir as duas. Quer dizer que uma crença sensata ou uma crença insensata, antropologicamente valem a mesma coisa.
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Então você não tem condição de distinguir se uma cultura está todinha louca ou se ela está instalada na realidade.
Aluna: E os mitos?
Prof.: O mito sempre teve sua função na sociedade. Mas este mito é verdadeiro ou falso? Por ex.: se o sujeito acredita que Jesus Cristo foi crucificado e ressuscitou no terceiro dia. Você pode dar uma explicação histórica para isso: que foi uma igreja que disseminou esta crença numa reação contrária à religião antiga etc.. Só que tudo isso esquece a pergunta principal: O homem ressuscitou mesmo? Quer dizer que em vez de você verificar se o fato na narrativa é verdadeiro ou falso, você encara apenas esta narrativa como criação cultural. Mas então é tudo criação natural. Os pensamentos verdadeiros são pensados pelo homem e os pensamentos falsos também.
Psicologicamente funciona mais ou menos do mesmo modo. Se você está convencido de uma coisa você se comporta de acordo com esta coisa (quer ela seja verdadeira ou não) Se com isto o seu comportamento, à sua vida está vinculado à realidade ou você está fugindo da realidade não dá para saber só por meios psicológicos. Agora vamos supor, eu pego um quadro de Paul Gauguin. {Paul Gauguim tem um quadro chamado Cavalo Branco. Quando você vai ver, o cavalo é azul e verde-água. Porque colocou o título de Cavalo Branco? É simples, o cavalo branco está bebendo água num regato do meio do mato e o reflexo da paisagem em torno azulam o branco de sua pele. Bom, isso acontece mesmo na natureza ou é tudo invenção de Paul Gauguin? Eu só vou entender a pintura de Paul Gauguin na medida onde eu consiga estabelecer a relação entre ela e a percepção sensível que eu tenho de um cavalo. Existem muitas maneiras de você pintar um cavalo e uma delas é essa: em vez de você olhar um cavalo como uma figura isolada você o desenha como um reflexo da luminosidade em torno. Eu sei disso porque eu sei que existe cavalo, sei que existe luz, seu que existe mato. Tenho que dar uma referência objetiva com a qual eu posso comparar o quadro. Se eu faço abstração destes dados objetivos tudo o mais que eu posso dizer sobre o quadro é tudo maluquice. Isso quer dizer que os produtos culturais só fazem sentido em face da experiência real humana. Outro ex. de maluquice: Os índios mexicanos acreditavam que seu Deus tinha passado por seu mundo mas que um dia iria voltar. Quando chegou um espanhol maluco e começou a matar todo mundo, como é que os índios interpretaram? Quando desembarcou o seu inimigo de uma tribo estranha , de uma outra raça, de uma outra cultura que veio para lá para acabar com eles, eles entendem que é o seu Deus que está desembarcando ali. E existe obviamente uma conduta tão insensata que 200.000 índios mexicanos foram dizimados por 60
espanhóis que não eram capazes de se defender porque não estavam entendendo o que estava acontecendo). Esses índios estavam totalmente idiotizados, acreditando em história de Carochinha. Do mesmo modo, quando os holandeses chegaram aqui em Santos e começaram a matar todo mundo, os portugueses foram todos para igreja rezar para N.S. do Monte Serrat em vez de se defenderem. Porque eles acreditavam que Deus só poderia estar do lado deles, porque eles eram católicos; não lhes ocorreu a hipótese que Deus poderia estar do lado dos protestantes. Estavam com a cabeça no mundo da Lua. E você pode ver isso pela adequação da resposta. Quer dizer que se o mito no qual o sujeito acredita lhe permite se instalar na realidade e ter uma reação adequada, então este mito está funcionando, é a tradução da realidade. Agora, se o mito aplicado tem o resultado oposto aí o mito não funciona. Outra estória: Duas crianças se meteram no meio do mato no Alto Xingu. Você sabe que índio não se mete muito dentro do mato apenas alguns índios o fazem. Então, todos foram procurar as crianças de depois de um tempo resolveram consultar o Pajé que localizava qualquer pessoa ou coisa desaparecida. O Pajé entrou numa oca reunindo toda a tribo e disse: vamos ficar por aqui, quando terminar a reunião, as crianças
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estarão aqui na porta. Parece maluquice mas aconteceu exatamente assim e as crianças apareceram. Isto aí é um mito. O rito é baseado em mitos tanto quanto o comportamento dos índios mexicanos. Só que um o mito funciona. outro não. Tem mágica que funciona e tem outras que não. Agora, antropologicamente não há diferença. A Antropologia me parece assim como uma ciência que fosse estudar o casamento fazendo abstração das diferenças sexuais. Faça a abstração das diferenças reais entre os sexos e explique o casamento. Então se você faz a abolição de um dado objetivo, as instituições culturais que você está estudando ficam boiando no ar absolutamente inexplicáveis. E é tudo uma invencionice terrível. A diferença de sexo é uma dado natural (não antropológico, mas biológico) e as instituições todas que o homem criou em cima deste dado pressupõe a existência dele. E não pode ser explicada sem eles. Isso quer dizer que do ponto de vista exclusivamente antropológico e sociológico que faz abstração de um dado real só vai produzir maluquice. Porque os índios do Xingu acreditavam no rito do Pajé que traz as crianças de volta? Porque de fato ele traz as crianças de volta! Então a crença aí pode ser explicada simplesmente pela experiência. Porque os índios do México acreditavam naquela maluquice? Bom, aí você tem achar outra explicação. Você não pode dizer que era simples experiência que os havia persuadido. Podíamos explicar que era um povo tão carregado de angústias e de culpas que só podia conceber um Deus sob forma de um ser terrível que vinha para matar todo mundo. E de certo modo, eles estavam pedindo para vir um Deus e acabar com eles. Quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece. Isso chamava-se auto-enfeitiçamento) Bom isso aí nos permitirá estabelecer uma certa diferença qualitativa entre culturas. Ah, mas diferenças qualitativas em antropologia não existe. Então, o mundo de símbolos e mitos é um modo de instalação na realidade num cosmo físico.
Existem modalidades que funcionam e que não funcionam. Ou seja, Alquimias reais e existem falsa alquimias, mitos reais e mitos falsos. Uma coisa que me espanta muito é a popularidade que atingiu a Epopéia de Gilgamesh. Todo mundo está lendo isso e não percebe que é a Epopéia do fracasso espiritual. Gilgamesch se dá muito mal. Ele é uma espécie de anti-Moisés. Ele vai lá atravessar o mar vermelho e morre afogado.
Para eles a Epopéia de Gilgamesch é mitologia primitiva como qualquer outra. E o fator qualitativo: ora tem imagem que funcionam e outras não. Essa diferença para a ciências humanas não existe. É a mesma coisa que se você fosse estudar a Física dos séculos passados em distinguir as leis físicas que funcionam e as que não funcionam.
Como Por ex.: a geração espontânea. Então é como se hoje pegássemos um livro de biologia e estudaríamos a teoria da geração espontânea e as contestações como se fosse ambas verdadeiras. Isso é demência. Historicamente do ponto de vista histórico das ciências humanas, tanto a doutrina da geração espontânea quanto à sua refutação por Pasteur, são ambos produtos culturais de uma mesma era. Só que antropologicamente, sociologicamente, historicamente, tem o mesmo valor. Isso para mim é a maior prova de que estas ciências são curada na base. Quando você fala ciência humanas, bom mas isso é ciência do homem desligado da realidade, do mundo da linguagem humana como se tivesse boiando no vazio. O livro mais interessante de antropologia do século é de Edgar Morim Le Nature de La Nature; aonde ele faz esse apelo: olha se agente não encontrar um ponto comum aqui, nós vamos ficar tudo louco. Quer dizer, se não se encontrar um elo entre o homem e o Cosmos, a ciência vai tudo para o lixo. Só tem esse elo se você descobre o que há de humano na natureza que é o próprio homem. Ou seja deve haver algo na natureza que de fato nos fala e ao mesmo tempo dever haver dentro de nós certos processos naturais que permitem que se estabeleça este diálogo. E é exatamente este ponto de confluência onde a alma humana passa por processos naturais (que repetem tais e quais os processos da natureza) é justamente disso que fala a alquimia. E a rigor, é disso mesmo que fala a Astrologia. Quer dizer que a astrologia é um pedacinho da doutrina alquímica. E se a
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astrologia for separada do sentido alquímico, ela não faz o menor sentido. Quer dizer, se você for estudar símbolo planetários fazendo de conta que ele não tem nada a ver com simbolismo terrestres correspondente? A começar pela ligação dos planetas com os metais. Quer dizer que estes metais seriam simbolizados pelos planetas. E onde estão? Estão no seu corpo mesmo. Voltemos para o primeiro texto, segundo parágrafo.
..Estas possibilidades recentes. comunicação. imagem lua e ao mesmo tempo um especial e poderoso tom emotivo.
Comentário: Donde vem este significado e este tom emotivo? De acordo com esta expectativa dualística moderna, qualquer significado só pode ter sido acrescentado pelo homem. Ou seja, a natureza seria uma máquina neutra no qual você projeta arbitrariamente o que você quiser. Então entendemos que toda a cultura pós-renascentista é baseada no pressuposto não declarado da inexistência do simbolismo natural. Baseado na idéia de que a natureza nada nos fala; nós é que atribuíamos à ela intenções que ela não tem. É claro que o homem de fato faz isso: inventa e atribui. Mas será que todas são inventadas por nós? Será que não tem um jeito da gente escapar deste duplo engano? Por um lado esta natureza nua e crua constituídas de relações matemáticas. E opor outro lado este falatório humano projetado? A esperança de encontrar isso é se abrir para possibilidades de uma linguagem natural diferente; e sobretudo que tenha como principal característica esta abrangência e múltiplos significados ao mesmo tempo. É isto que diz a leitura alquímica. Isto quer dizer que um fato natural, ele fala alguma coisa. Mas ele não fala em nenhuma linguagem específica. Ele não fala para um indivíduo em particular. E
nem para alguma classe particular. Ela está falando ao mesmo tempo para todos os homens, qualquer que seja o tipo de interesse que este homem esteja olhando. Cada um olha para um lado, mas a natureza está falando para todos ao mesmo tempo.
Portanto é necessário que o signo do indivíduo tenha a possibilidade de ter todas esta significações ao mesmo tempo e organizadamente. Por isso que a leitura alquímica consiste em você tomar os símbolos não como uma alegoria ou invenção humana mas como uma espécie de plenitude da literalidade. Ou seja, cada símbolo significará tudo aquilo que ele pode significar para todos os homens que buscarem para qualquer ângulo que seja incluindo nisto até as significações embutidas projetadas. Isso que dizer que para o poeta romântico, a chuva pode significar a melancolia da natureza porque ele perdeu a namorada ontem. Talvez ele não esteja totalmente errado. Talvez significa isto também mas só significa para ele. Visto de um outro ângulo pode ter um significado totalmente distinto. Pode representar Por exemplo a fecundação do solo, milhões de coisas. Juntando todos estes significados, obtendo o núcleo que é a chave do todo simbolismo ligado à chuva, aí você pegou o que é o sentido alquímico da coisa.
O significado essencial é aquilo que de fato, não poderia deixar de significar no fundo para qualquer homem. Ou seja sem a qual a diversificação de significados subjetivos não seria possível. Neste sentido é que só existe alguns simbolismos que são muito básicos e inequívocos. Por ex.: a luz que é o símbolo dos símbolos. A luz nunca pode significar trevas, ignorância (isso aí é a teoria da tripla intuição). É quando o homem primitivo um dia percebeu que havia luz. Ora, como é que ele percebeu que existe sol sem na mesma hora ter percebido a distinção entre enxergar e não enxergar? Ou seja este é um dado externo da natureza que não pode ser percebido sem a percepção simultâneas de algo que está se passando dentro do sujeito. Os demais dados da natureza não são assim. Por ex.: eu posso perceber que existe lobo, árvore, urso tudo isso eu posso perceber de fora mas a luz eu não posso. Perceber luz é me perceber. E
de maneira indissolúvel e inseparável. E esse símbolo ele vira a ligação triangular entre sujeito, o objeto e o ato de conhecer.
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Esta ligação é a base da nossa linguagem, do nosso raciocínio. Nós não falamos, não pensamos e não tiver este triângulo. No caso da luz a identificação do sujeito com o objeto é inseparável. Nos outros objetos não; nós não vimos os outros objetos diretamente mas nós os vemos pela luz que toca neles e chega até lá. O que é ver um objeto? é ver o reflexo da luz refletida neles. Se sumir a luz, os objetos somem também. A verdadeira presença do mundo externo é dada pela luz e não pelos objetos. O simbolismo natural do sol é incontestável. Mas tem outras coisas que você pode demonstrar também que são simbolismos naturais Por ex.: a Lua. Como é que você faz para perceber a Lua? Se cada vez que ela vem ela está com uma cara diferente É impossível você perceber a Lua se você não perceber que no mesmo objeto pode haver várias formas. Não tem jeito de você perceber Lua a não ser juntando a unidade da substância com a diversidade das aparências. Agora, tem alguma outra cosia no mundo que seja assim? Nenhuma. Nada tem um ciclo abarcado no tempo onde tem uma sucessão de aparências que depois se repete. Só Lua.
Ciclo é sucessão de mudanças que oculta uma permanência da estrutura. O sol.
muda de aparência mas esta aparência não é cíclica (conforme o tempo esteja chuvoso o sol pode estar mais ou menos brilhante.) Mas não tem o ciclicidade; esta mudança é irregular). Quando a pessoa percebeu a diferença entre luz e treva percebeu automaticamente a diferença entre enxergar e não enxergar. Ele não o fez por raciocínio desenvolvido no tempo na mesma hora. E com a Lua? Não pode nem ter sido na mesma hora e nem por um sujeito sozinho. Precisa de um testemunho porque é uma coisa que se desenvolve no tempo. Pode ser esquecida, precisa ser anotada para que se torne um patrimônio coletivo. Então a descoberta da Lua implica em consciência da temporalidade, consciência da ciclicidade, da coletividade, consciência de causa e feito. Então a descoberta da Lua já tinha algo a ver com toda a armadura lógica desenvolvida. Ao passo que a descoberta da luz não, ela se tema a ver coma a estrutura básica que permite fundamenta o pensamento lógico do homem. Mas é um fundamento simultâneo. No meu livro Astrologia e Religião, no capítulo Lógica e Astrologia vocês podem ler sobre isso. O pensamento humano no mundo dos símbolos não é separado da natureza. Ao contrário, a natureza está ensinando à ele a pensar logicamente. Através deste luminares no céu. Platão diz que: através do Sol, Lua e estrelas é que o homem capta a noção de número, ordem e sucessão; enfim as categorias lógicas básicas.
Marcel Mauss antropólogo dizer que todas as categorias lógicas são apenas expressões da estrutura e social. Você monta uma lógica que imita a estrutura social. Bom, mas se você pode ter uma lógica é porque a coisa é lógica. E donde você tirou essa lógica.
E a burrice letrada! Agora, se você articula o símbolo da Lua com o do sol, você vê que você já tem aí toda a armadura dos sistemas das categoria lógicas. Aonde está a raiz dessa linguagem humana, deste mundo do pensamento humano? foram o Sol e a Lua que nos ensinaram. Assim como ensinou o índio. E é justamente esta obviedade que acaba se perdendo. Agora, se depois você usa o próprio pensamento par tampar esta realidade elementar que é a base do seu próprio pensamento bom então você está serrando o galho no qual você sentou. Mas sempre existem homens como Georges Bernanos que por motivos os mais diversos, se empenham em desenterrar estes conhecimentos (porque senão nós já estaríamos numa sociedade louca). O pessoal pensa que progresso significa mudança. Progresso é mudança com a conservação do estado anterior. Senão não é progresso, é apenas substituição de uma coisa para outra. E aí se você tira uma coisa para colocar outra não melhorou nada. É um passo para frente e para trás. Todo lucro se baseia numa acumulação: se você ganha 20 mas perde 10 você não progrediu nada. É um movimento insano: vai e volta sem motivo algum, quer dizer conservar o conhecimento é primordial.
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arteriaemchamas · 2 months ago
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QUARTA AULA (17/01/96)
.O bem supremo, trata-se de você imaginar uma vida melhor do que essa. No entanto, se você não tem uma no corpo o melhor do melhor do melhor, você perde a visão por escala do que está se passando aqui e agora. Aí é um problema da Tímese Parabólica.
Tímese é avaliação. Parabólica é aquilo que descreve uma parábola. Então, você tem que avaliar pelo melhor que se possa conceber.
A tímese é uma faculdade cognitiva especificamente humana: só o homem pode fazer isso. Nenhum bicho pode imaginar ou conceber para ele mesmo uma situação muito melhor que a que ele tem. Note bem que isto não é razão. Todo animal participa da razão. Mas, a tímese não é raciocinar a partir dos dados mas da pura concepção de algo supremamente melhor. Quer dizer que toda nossa cultura, conhecimento, especulações, elas valem muito pouco se forem amputadas desta referência a este melhor que nós só conhecemos idealmente. Mas que nós sabemos que é uma possibilidade efetiva; pelo simples fato de que nós podemos pensá-la. Daí a necessidade de pensarmos continuamente no melhor do melhor do melhor. Porque somente isso que vai dar para ela a escala exata do que está acontecendo. Porque se você só comparar um acontecimento com outro acontecimento i.é; um mundo real com outro real, você nunca tem a medida; a não ser provisória: você efetivamente não sabe o que quer, os seus julgamentos estão todos errados. Isso quer dizer que a tímese parabólica é a própria pedra angular da razão. A razão sem a tímese não valeria absolutamente nada; porque a razão pode ser como uma balança. A balança só compara uma coisa com a outra. Mas, qual é exatamente a medida que você está usando para ver este peso? Quer dizer é uma balança de quilos ou de toneladas?
Então, você pode pesar uma coisa com outra mas dentro de uma escala que seja co-proporcional às duas. Porque às vezes, para você avaliar certas coisas, você precisa de uma balança de maior capacidade. E é exatamente isso que é a tímese. Então, se não tem a tímese, a razão fica que como uma faculdade solta. A tímese é mais ou menos uma coisa que aferisse a razão. Aliás, ela é um critério supremo da razão. Dá idéia de liberdade. Como é que você vai ter o critério da liberdade a não ser por uma verdade ideal. para você dizer que uma coisa é verdadeira ou falsa, você está dizendo que uma atende e outra não atende um certo ideal que você vê na verdade. Quer dizer, nós não conhecemos a verdade somente pelo aspecto empírico, pela experiência que temos da verdade; mas também por uma expectativa que nós temos e que às vezes não se cumpre. Você só vai entender o que é verdade se entender que ela é um ideal, e não uma realidade. A verdade é uma coisa que você espera que os seus pensamentos tenham; e quando não têm, você se sente frustrado. No que consiste precisamente esta expectativa? É você acreditar na verdade como um ideal, como um valor. Se o cara não pensa continuamente sobre isso, o senso da verdade dele foi para as cucuias.
Ele não conhece propriamente a noção de liberdade, ele conhece verdades. mas a noção de liberdade foi para as cucuias mesmo! Então, a exclusão da consideração de valor nas ciências é uma monstruosidade, isso impede o funcionamento da razão.
Hoje em dia todo mundo diz: as ciências não devem se basear nos valores. Claro que deve! Isso é a principal coisa! Porque a ciência toda se baseia num valor que se chama veracidade. Como a veracidade é um valor que você pretende alcançar, então você só pode conhecer as verdades que você já tem. Então, a ciência não pode ajudar. A ciência se dirige idealmente em uma direção à uma conexão complexa de todas as verdades que ela conheça; formando uma verdade maior do que aquela em particular.
Por ex.: os fatos que uma ciência conhece, eles não são verdadeiros no mesmo sentido que será a teoria final explicativa que vai abranger todos estes dados. Quando você pega vários fenômenos: o trovão, a faísca que sai quando você esfrega uma planta. e você chama isso de eletricidade, você está querendo dizer que esse conceito de
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eletricidade é mais verdadeiro do que essas várias denominações que você dá às diferentes aparições do fenômeno. Quer dizer, por trás deste fenômeno existe uma verdade chamada eletricidade. Toda a ciência raciocina assim. Então, ela não é só a verdade dos fatos mas sim um ideal de veracidade maior que a dos fatos que ela pretende alcançar. Ora, se você excluir como é que se vai fazer ciência? É balela esta estória de excluir problemas de valor. Não só é falso como inconveniente. Porém, no nosso caso que é uma ciência prática de transformação da matéria para a alma humana, é somente a tímese parabólica que nos vai dar a idéia de algo que nós temos, íntimo. Por ex.: nos julgamentos diários que nós fazemos sob as pessoas, está subentendido que nós sabemos algo do bem e do mal. Mas, raramente nós pensamos a respeito disso. Então, se você perguntar: é mal porque? você vai ver que a maioria das pessoas não sabem. Sabem apenas que é uma convenção. Mas, se o julgamento do bem e do mal é uma convenção, porque que você passa por uma emoção tão intensa ao condenar o mal? Quer dizer, no fundo você tem uma explicação do bem só que está inconsciente, você nunca pensa nela. Condenar o mal é menos importante que saber o que você mesmo pensa do bem. Por exemplo: o que seria para o indivíduo o homem perfeito? Se você nunca pensa nisto, a sua visão do bem é completamente nebulosa. E os julgamentos que você faz dos indivíduos são completamente aleatórios.
Você está habituado a receber um modelo pré-determinado do bem através de alguma figura histórica ou mitológica: Jesus Cristo, Buda etc.. Você recebe isso pronto. Mas receber pronto não adianta se você não pensar nestas figuras. Uma coisa é você conhecer estas figuras nas escrituras e outra é tê-las na cabeça. Então, meditar continuamente o bem particularmente na forma de virtude humana i.e.; saber o que você realmente pensa disto, é até mais importante que receber os modelos prontos.
Porque estes modelos são inteligíveis se você não pensar neles. Então pensar no que você concebe como o supremo bem na escala do humano, já é uma condição indispensável para poder entrar no destino de. Agora, cada um vai pensar de um jeito; mas não importa porque todas essas coisas que estas pessoas vão imaginar diferentemente, elas se referirão à um mesmo ideal. Claro que cada um vai enfatizar mais uma lado que outro, conforme as diferenças pessoais. Mas, como dizia Teilhard de Chardin, tudo o que, converge. Se você está pensando no supremamente bom, as diferenças entre os que as várias pessoas pensam, vão se neutralizando aos poucos.
Na verdade, o bem, a virtude são simples. Os vícios é que são complicados e muitos.
Uma conta de 2 + 2 = 4, só tem um resultado certo. O resultado errado são todos os outros números. Então esta faculdade da tímese, ela é até mais importante do que o próprio exercício da razão.
No caso da nossa ciência de transmutação e como essa transformação em grande parte é interior- de fato você tem que saber para onde você está indo e aonde vai chegar. Chegar no termo final que é simbolizado pelo ouro. Essa curva parabólica é utópica, ideal porque é uma curva que tende a ser reta mas nunca chega a ficar totalmente reta. É assintótica.
Falamos também em símbolo na aula passada. Aqui, como se trata de uma ciência prática, não existe propriamente a teoria alquímica. Não existe nenhum livro de alquimia que seja teórico: na medida que você está lendo aquilo ali já é a prática de algum modo. E então é importante entender o que quer dizer a linguagem simbólica.
Simbólico costuma ter uma significação de uma coisa oposta ao ideal ou ao utilitário.
E nós não usamos neste sentido aí. Se usássemos neste sentido, nos afastaríamos muito da obras alquímicas. O simbólico tem que ser entendido como uma espécie de coisa hiper-literal. Hiper-literal quer dizer que cada palavra quer dizer exatamente aquilo que está dito nela. Mas, sem nenhuma restrição ou nenhuma separação abstrativa. Por ex.: Terra não quer dizer exclusivamente o planeta Terra nem exclusivamente um pedaço de terra nem exclusivamente o elemento terra da física
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antiga. Quer dizer tudo isso junto. Não é uma leitura abstrativa e sim concretiva. É
isso mesmo é que é o simbólico. A linguagem abstrata vai num sentido de separar um significado e lidar exclusivamente com aquele ; até para não ter confusão e você poder pensar em linha reta. É uma dedução lógica que você faz: você estabelece o sentido e vai raciocinando dentro daquele mesmo sentido. Mas aqui, não dá para ir em linha reta. Aqui você anda um passo e dá um outro para trás. Porque você vai sempre esquecer algum significado lá para trás. E este contínuo retorno para recolher os significados que foram esquecidos, isto mesmo é que é a leitura alquímica. Porque a mente humana tende a ir obsessivamente no sentido da abstração por uma questão de economia de tempo. E também para você pensar mais, você reduz o significado.
Porém a leitura simbólica requer o contrário: que você recolha todos os significados.
Se você leu errado, você volta para trás porque você esqueceu uma acepção possível da coisa.
Neste momento, agente tem que distinguir o que é leitura simbólica do que é leitura alquímica. A leitura simbólica é só uma etapa, uma condição prévia. Mas passando da simbólica para a alquímica, nós não só recolhemos todos os sentidos mas nós conseguimos presentificá-los ou seja, conseguimos reconhecer aqueles significados não em imaginação, mas concretamente. Quer dizer que quando eu estiver lendo Terra, o que vai ser evocado por isso não é a imagem, nem o conceito de Terra, mas a terra mesma, a terra tal como está no seu corpo. Cada um dos símbolos alquímicos (a terra, o chumbo, o ouro etc.) primeiro têm que ser lidos simbolicamente com plenitude de significado. Segundo têm que ser lidos alquimicamente com plenitude de presença física das coisas simbolizadas e não apenas mental. Então, quando se fala em Mercúrio, temos que dirigir a atenção não só para o símbolo, ou o conceito, mas também para o Mercúrio que esteja efetivamente presente em você naquele momento. Por ex.: Mercúrio é uma substância dissolvente. No momento da leitura alquímica, algo em você está fazendo a operação naquele mesmo momento.
Algo está dissolvendo crostas de sujeira de esquecimento, etc.. A leitura alquímica, ela tende a ser de certo modo cada vez mais lenta. É como se para cada ente referido ali no texto, você tivesse que trazer algo. Mas a leitura alquímica tem um número finito de símbolos. Por ex.: a operação puramente mental que você faz de remover uma crosta que tem em torno de seu entendimento, uma crosta a que o impede de ver algo. isto aí tem um concomitante físico naquele mesmo momento. Outro ex.: eu estava assistindo uma aula do Dr. Müller sobre o tema Lua, e eu não estava entendendo nada. Aí Dr. Müller me deu umas gotinhas de Argentum metallicum. Dez minutos depois eu tinha entendido tudo. Nessa hora eu entendi qual era a relação que podia haver entre mente e corpo. Para mim, todos nós somos cartesianos incuráveis.
Quatro séculos de pensamento cartesiano nos levou a pensar em corpo e mente como coisas separadas. Mas tudo isso é evidentemente uma coisa só. É uma diferença de ângulo. É como cara e cora. Se você obtém a cara, você trouxe a coroa junto. Mente e corpo são abstrações. O que existe efetivamente é o chamado composto humano indissolúvel como dizia Aristóteles. Recapitulando, se um metal podia produzir repentinamente uma síntese simbólica na minha cabeça é porque era o corpo que estava pensando. Quem é que pensa? É o próprio corpo! É que quando você vai saindo da esfera das percepções sensíveis e indo para o pensamento abstrato, você tem a impressão que aquilo não é corporal. Mas é sim! Por ex.: se eu falo para você imaginar um indivíduo humano. você está me vendo corporalmente. Agora, se eu falo para você: uma multidão. Agora você já não vê com tanta precisão. E se eu digo para você: a humanidade. Aí já vira um conceito genérico, aparentemente incorpóreo. Mas, na realidade a humanidade existe corporeamente tanto quanto o indivíduo! Então, quando vamos subindo na direção dos conceitos abstratos, agente tem a impressão de que se afastou da corporalidade. Mas, ao contrário: a humanidade tem muito mais
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corporalidade que um indivíduo sozinho. É só somarmos pesos. Então, quando pensamos genericamente, cria-se um efeito ilusório. Eu posso conceber uma árvore sem pensar em terra. Mas, quando faço isso, eu estou fazendo uma separação, uma abstração. Agora, quando eu penso a árvore não isoladamente, como se ele estivesse boiando no ar mas, como uma árvore que brota da terra, me aproximei mais da realidade. Estou tendo um conceito mais real. Por isso mesmo que CONCEITO vem de CON + CEPTIO = Ceptio vem Cepire, que quer dizer agarrar, captar. Quando nós pensamos numa coisa estamos tendo apenas uma idéia. Mas, se esta idéia agarra alguma realidade nós chamamos conceito. Lamentavelmente em inglês, Concept significa qualquer coisa que você pensou mesmo que não exista. O Conceito é uma idéia que agarra uma realidade e diz o que ela é efetivamente. Agora, uma idéia é apenas uma atenção que permite reconhecer a coisa. No conceito eu me aproximo do real. Ora, para eu me aproximar do real, eu tenho que enxertar um ente individual Por ex., dentro do conjunto dos seres. Isso quer dizer que eu vou ter que falar de mais seres e aumentar a escala do que eu estou falando. Ora, na medida que eu aumento a escala, eu me afasto da percepção sensível. E daí, eu tenho a impressão que eu estou indo para o ar, estou ficando cada vez mais abstrato e é exatamente aí que eu estou indo para o concreto. A cavalidade Por ex.. não é um conceito; é apenas uma idéia. A espécie cavalo é que é um conceito! Agora, se você falar a qualidade que distingue a espécie cavalo, ela só existe abstratamente. Agora, a espécie existe materialmente. O
que é a espécie cavalo? É todos os cavalos que existiram, mais todos os espermatozóides em número finito que estão dentro de todos os testículos de todos os cavalos existentes e mais os espermatozóides de cavalos que poderão brotar destes.
Até completar todos os cavalos que existam. Isto é material! Muito grande mas é material. É limitado, finito. Agora, a cavalidade é a qualidade separativamente considerada que você verá em todos estes cavalos. Agora, nossa mente tem uma dificuldade de perseverar no concreto usando instrumentos abstratos. Quando ela se desliga da percepção sensível, ela perde o concreto. Não podemos confundir concreto com sensível. O sensível também é abstrato. Prova disto é que você só pode perceber fisicamente uns quantos aspectos da realidade. Por ex.: neste momento eu só percebo esta sala, mas eu sei que esta sala não está boiando no ar; que ela está dentro desta casa. Eu não o sei sensivelmente, mas eu sei disto. Este é que é o concreto.
Então temos que distinguir o que é o concreto da realidade e o que é o concreto do conhecimento. Uma coisa é a realidade concreta. Outra é o pensamento. E a realidade concreta, por incrível que pareça, agente só pega por pensamento abstrato. E é aí que está a dificuldade. Por ex.: você não vê uma árvore se alimentando do sol. Mas você sabe que ela está fazendo isso. O conceito verdadeiro de árvore é uma forma de vida que brota do solo se alimenta dos minerais dela. Então eu só consigo ver a forma exterior dela. Isso é abstrato. Esta forma exterior não existe em si. Agora, o pensamento concreto seria aquele que lidasse apenas com os dados percebidos: não iria muito longe. É um pensamento que não se afastaria muito da realidade sensível.
Em outras palavras: o pensamento concreto é aquele que se ativesse àquilo que foi percebido de imediato. É um pensamento que se guia pelas aparências. Então todo o pensamento é de fato abstrato. Mas esse abstrato é um instrumento para você perceber a realidade da sua concreção. O concreto é o que as coisas são efetivamente dentro da sua concreção. CON + CRESTIO = é aquilo que cresce junto. Ou seja; é o conjunto das condições reais que permitem que aquele ente exista. Então árvore sem terra não existe: nós sabemos disto mas nós não percebemos isso. Portanto só podemos captar esta noção através do pensamento abstrato. Porém, é este pensamento abstrato que permite que agente agarre a concreção real daquele ente.
Quando você pensa em conceitos abstratos, isto não quer dizer que você esteja lidando
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com realidades abstratas. Para você captar a realidade concreta, é só através do pensamento abstrato.
aluno: Porque esse negócio de realidade concreta e abstrata? A realidade não é uma só?
Prof.: A realidade é abstrata apenas no seu modo de conhecê-la.
Voltando à questão da leitura simbólica e alquímica. A leitura alquímica então, é um contínuo retorno e por isso assume já o significado de uma meditação. E por isso mesmo que a leitura alquímica já é uma prática. Então, cada vez que você ler um texto alquímico, a tendência é ler e continuar lendo. Para fazer isso agente reduz a esfera de significados de cada palavra, pega-o e passa adiante. Quando você terminar a frase, você volta lá lembre os outros significados, volta de novo e de novo. Isto é que é o Lege, relege. Ler, ler, reler e encontrarás que é a regra máxima do alquimista. Você vai ler 1.000 vezes a mesma coisa até que você veja com os olhos da cara, não com os olhos da imaginação. Ela vai ter que passar por uma fase conceitual, imaginativa e depois perceptiva. Então, quando você lê um romance qualquer. Este romance se refere à emoções que você nunca teve, em situações que você nunca viveu. você não vai entender, ou vai entender de uma maneira morna, sem vida. Bom, teria um jeito de produzir um análogo desta emoção de modo que você venha a entender? Tem: pela ingestão de uma substância correspondente àquela emoção (exatamente como no caso da minha aula da Lua com o Dr. Müller). No fundo toda a homeopatia se baseia nisso.
Se você pegar toda a matéria médico-homeopática, o conjunto daquelas substâncias minerais, vegetais, animais que você usa ali, aquilo ali é um dicionário de sensações.
Tudo o que o ser humano pode sentir, imaginar, agente tem o equivalente material. Na homeopatia existe um remédio chamado Silicea. O sujeito que precisa de Silicea tem uma dificuldade em concretizar as idéias. Por isso é um indivíduo hesitante: ele não sabe o que quer porque ele não sabe direito o que pensa. Ele é inseguro porque as idéias dele são de borracha. Tomando Silicea parece que as coisas congelam, se esclarecem; aí acaba a indecisão! E como é que você faria para obter a mesma coisa por meios puramente verbais? Ele levaria 2 anos! Muito bem, na leitura alquímica, você mesmo fará isso: você puxará no seu corpo as recordações, emoções etc. que estão ligadas àqueles elementos alquímicos de que fala o texto. É por isso que os textos alquímicos freqüentemente introduzem a seguinte noção de: O Nosso Mercúrio.
Ontem, nós vimos que visitar o interior da terra significava estar lá efetivamente.
E que o interior da terra significava o próprio corpo. Então, é para entrar com atenção no interior do seu corpo. Esse hiper-literal é que é o simbólico. Ele é hiper-literal porque ele não é abstrato, ele é concreto: não privilegia um significado em especial mas usa todos os significados compactados. Isso quer dizer que se sua atenção reflui para o interior do seu corpo, ela está entrando no interior da matéria, na terra mesmo.
Esse corpo aqui é terra e não outra coisa. O pessoal aqui da astrologia já sabe que o Saturno astrológico é algo a mais que o Saturno astronômico. Só que na alquimia tem mais ainda; porque ele se refere a tudo isto tal como acontece também dentro do nosso corpo. Quer dizer que lá dentro também tem um saturno. Este Saturno pode ser determinados órgãos que a astrologia associa à Saturno; mas não só isto, tem mais e mais e mais. Mas também tem certas funções e relações associadas à Saturno. Então Saturno alquímico é tudo isto indissoluvelmente. O Baço no corpo humano está associado à Saturno: é o órgão que dá o extremo limite do seu corpo. Quando você corre não é o baço que dói? É porque ele não está agüentando fazer as transformações que ele tem que fazer. Então ele pára o corpo inteiro. Mas, agente vive bem sem baço. Mas isso não quer dizer que podemos viver sem limites. Agente vai ter que fazer isso através de outros órgãos, outros meios; não é só o baço que está
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associado à Saturno. Nos tratados de astrologia, o fígado às vezes está associado à Saturno, às vezes à Júpiter e às vezes aos dois juntos. Considerando, então que temos que juntar todos os significados na leitura alquímica, concluímos que a prática da alquimia trata da instalação do indivíduo na realidade. É um esforço da pessoa se situar dentro do tecido de relações reais no qual ele está naquele momento. E o efeito que isto tem na personalidade como um todo é um negócio brutal. Primeiro que as distinções entre perceber e imaginar, são na vida diária um dos temas. Por ex.: basta você imaginar que o indivíduo te ofendeu para você se sentir ofendido. Basta você imaginar o perigo que você já sente medo. Esta confusão entre sentir e imaginar é constante. Com um pouco de prática alquímica agente já elimina isso para sempre.
Você saberá sempre se é imaginado ou se é sentido. Se está presente ou se é hipotético. A alquimia vai ajudar a distinguir o real do imaginário. É porque o corpo humano não distingue entre o perigo imaginário e o perigo sentido que é possível a hipnose. Quando você hipnotiza o sujeito, ele vai ter todas as reações corporais que o hipnotizador sugerir. Quer dizer, o cara vai imaginar que está passando por certas situações e o corpo dele vai reagir na exata medida. Ora, o sujeito que está hipnotizado ele pensa, ele raciocina, ele sente, ele recorda, ele tem todas as funções; só não tem uma: ele não julga. E é só este julgamento- que tem o seu ápice na tímese parabólica- é que nos permite discernir entre o imaginário e o real. Daí você pode saber se o sujeito te ofendeu ou foi você que se sentiu ofendido. Porque neurologicamente é a mesma coisa. Imaginativamente é a mesma coisa. No plano das emoções é a mesma coisa. Por aí você vê que a falta de cultivo do hábito de julgamento, imbeciliza as pessoas. A faculdade cognitiva que mais se aproxima da tímese parabólica seria a jupiterina.
A imaginação deve produzir uma reação neurológica semelhante ao dos estímulos reais mas só que diminuída. Deve porque esta é a função dela. Se você puder balancear as reações de maneira que, ante o perigo real, você tenha uma emoção equivalente à x. e no caso análogo - porém imaginário você ter a mesma reação, mas muito diminuída e atenuada, você estará com o pé no chão. Isso não acaba em absoluto com os artistas. Se você pega Goethe, Shakespeare, todo mundo sabe disso aí. Agora, hoje em dia agente tem um subjetivismo atroz. O indivíduo só fala daquelas coisas que afetaram a sua alquimia numa determinada circunstância que só aconteceu à ele; e casualmente aconteceu à outros indivíduos da mesma cultura. Só que, passam alguns anos e aquilo ali não significa mais nada para ninguém. É por isso que você vê que a arte hoje em dia, ela envelhece muito rápido.
Porque é subjetivo: só quem compartilha daquela referência é que pode ter emoção análoga. Agora, se você penetrar na esfera do simbolismo universal. aí você não tem muito como escapar. É isso que vai diferenciar emoção real da emoção artística. Por ex.: se você vê o quadro da Crucificação, onde aparece o Cristo todo ensangüentado. A reação que você tem ao ver o quadro é diferente do que se você visse realmente o Cristo ensangüentado! Qual é a diferença? A diferença é que no quadro, o Cristo é imaginário, interpretado. E aquele impacto não deve se dirigir aos seus sentidos; mas sim à sua capacidade de julgamento. É isso que é emoção artística. Caso contrário, seria emoção real. A emoção real, ela tem um impacto físico direto: não tem mediação.
A emoção artística, se dirige à sua imaginação: ela dá um intervalo, um sossego para você poder pensar e julgar. Então, ela se torna um elemento de valor intelectual-espiritual coisa que a emoção direta não tem. Aliás, a emoção direta te impede de julgar. Portanto a arte, ela ajusta o que é o imaginar, o sentir e o julgar; coisas que na vida diária estão separadas. Por isso que a arte ajuda a entender o mundo. O evento artístico, se você não entende, você não sente nada. E os acontecimentos da vida diária? Bom, se você não os entender, você sente do mesmo modo. A arte transmite experiências e emoções inteligíveis e que estão ali montadas exatamente para isso.
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Agora, para ela fazer isso é preciso que a emoção imaginativa esteja muito atenuada.
Histeria é exatamente a total confusão entre a emoção imaginada e emoção real. O
histérico finge que está sendo ameaçado e fica apavorado; finge que está sendo ofendido e fica mortalmente ofendido. E não tem meio de você explicar para ele que aquilo não aconteceu. A emoção imaginária toma o seu corpo e você não entende; quer dizer existe uma diminuição da inteligência. Mas na emoção artística atenuada, a inteligência continua funcionando; então você entende aquela emoção. Por isso que a emoção artística não é violenta; mas no fundo ela é mais comovente: ela tem significado. E numa obra de arte que você não atine o significado, você não entenderá e, portanto não sentirá. E portanto, é na arte que você vê essa junção do sentir e do entender- que na vida diária não acontece. Na vida diária quanto mais você sente, menos você entende: quanto mais violenta a emoção, menos você entende.
Concluindo: esta ida do homem do seu interior subjetivo para o vasto mundo real, isto é a Jornada do Imbecil até o Entendimento. Quando somos pequenos, somos idiotas: só acreditamos naquilo que nós mesmos imaginamos. Depois acordamos para o mundo real e constatamos que ele é maior do que imaginamos; e acabamos gostando dele. A criança se protege no mundo subjetivo: o que faria mal a ela, ela faz de conta que não vê; e esquece. daí que surge os traumas, as neuroses. É a mentira esquecida na qual você ainda acredita. Essa idiotice é como a casca de ovo na qual você pode se proteger durante algum tempo; mas não adianta, depois você tem que quebrar a casca do ovo. E agente passa o resto da vida quebrando a casca. Então, este tipo de meditação que vai tentar presentificar as coisas até que você veja umas que estão de fato presentes e outras que você só imaginou isso aqui tem um impacto tremendo sobre a personalidade. Isto aqui é como se fosse uma curva que vai no sentido de uma perfeita conformação com o real: uma reconciliação com o real. O sujeito vai desde uma revolta subjetiva até um sim que ele diz à tudo que acontece. É aí que ele está com o pé no chão. Aí chega-se na condição humana. A condição humana é quando você pode ver um cenário imenso, que você não escolheu, que você não conhece de antemão, e que praticamente você não pode mudar; exceto por uma pequena esfera de ação pessoal que na melhor das hipóteses, se você for um homem muito poderoso-abrangerá a vida de uns quantos outros seres humanos. Então, você não vai mudar a estrutura da terra, a órbita dos planetas, o fluxo dos tempos, o curso da história, você não pode mudar nada disso. Então, nós não viemos aqui para mudar, nós viemos aqui para saber o que é. Aí você vê que a verdadeira missão do homem é conhecer e não mudar; é esta a transformação, a sua transformação. Você não veio aqui para transformar mas para ser transformado. E quando você morrer, acaba o seu ciclo de transformações; e pior, pode ser que você passe pela vida e nem entenda, nem perceba o real, a operação alquímica. Esse mundo é um forno alquímico onde todos estamos sendo transformados. A onipotência é até certo ponto necessária, como as ilusões infantis; porque senão você não agüenta: a casca de ovo quebra de repente e você fica um pouco assustado; porém temos que lentamente quebrá-la e ver que nós aqui não estamos fazendo absolutamente nada; estamos sendo feitos. Você pega um homem extremamente poderoso como Napoleão Bonaparte: Quanto sobrou da obra de Napoleão? Todos os seus reinos foram desfeitos, à exceção da Suécia. Isso Napoleão, agora imagina você! A nossa ilusão do agir, do fazer, é enorme. A nossa ação existe mas é tão pequenininha, que ela só começa a fazer sentido na hora que você a encaixa dentro do processo do mundo mesmo; você está sendo feito: o melhor que você tem que fazer é colaborar com isso mesmo. Relaxe e aproveite. Isto chama-se obedecer à Deus. Você vai ser transformado naquilo que Deus quer te transformar. Porque tem esta margem: você pode colaborar ou não. Se você não colaborar a obra não sai bem feita. Chega-se à perfeição. Perfeição quer dizer completo, inteiro, por igual em todos os sentidos. É o sentido do caixão do defunto. O caixão de defunto é uma forma
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sextavada que significa as 6 direções do espaço: o indivíduo foi nas 6 direções e está completo nelas. Às vezes fica faltando alguma coisa, não completamos o trabalho.
Mas, idealmente, todos nos formamos uma forma sextavada: evoluímos no sentido para frente, para trás, para esquerda, para direita, para cima e para baixo. Esta Contemplação é exatamente o objetivo da obra alquímica. Heráclito dizia: os homens que dormem, estão cada um no seu mundo; os homens acordados estão todos no mesmo mundo. Quer dizer que esse negócio de ficar no seu mundo subjetivo. Só na cabeça do sujeito é que ele está no subjetivo: Ele pode pensar que está no Palácio de Versalhes, mas ele está é no hospício. Todo mundo enxerga, só ele que não. Seria bom que ele soubesse para depois ele ter a chance de sair. Nós vivemos cada um no nosso hospício privado, no nosso ovo. O objetivo desta coisa é tornar-se humano. O
cara tem que saber que ele é só mais um: tem uma infinidade de gente que veio aí, passou pela mesma coisa, nasceu, passou por todas estas transformações, estes dramas, teve que um dia romper sua casca e enxergar a realidade. está todo mundo no mesmo barco há muito tempo. Porque que Saturno é o último? Veremos isso com mais detalhes na próxima aula: existe uma seqüência geocêntrica (Terra, Lua, Mercúrio,Vênus, Sol., Marte, Júpiter e Saturno). A travessia da última esfera (Saturno) vai representar a completação da forma, da perfeição humana. Isso no esoterismo islâmico é associado à sucessão dos profetas que foram sendo enviados à humanidade. O Corão tem 144.000 profetas. Agora, para nós estes 7 profetas representam não só uma sucessão de mensagens que marcam a evolução da história; mas também a travessia da alma individual neste processo da transformação alquímica. Mas, note bem, tudo isso aí é o que se chama de Os Pequenos Mistérios.
Os pequenos mistérios são os mistérios da condição humana aonde o homem vai conhecer a si mesmo. Depois que ele chegou na culminação da condição humana, aí começa os mistérios divinos: aí que você vai conhecer os anjos etc..
Vamos ver agora a esfera lunar. A Lua representa o primeiro e o último profeta.
O primeiro profeta é Adão. E o último profeta é Maomé. É ali que começa a história humana; e é ali que ela se perfaz ao uso da mensagem do Corão. A esfera da Lua representa a mensagem no fundo da alma: a água.
Neste recipiente vemos as pedras no fundo, a água acima e mais acima o ar. E no meio, temos as formas viventes. Quando assentou toda a sujeira limpando a atmosfera, a água calma forma um espelho: do qual você vê o céu ou vê o fundo.
Então, isto aqui é que é o estado de perfeita conformidade: é o começo da obra alquímica. Quando você chega no fundo da alma, você vê as coisas como elas são. Isso é representado por Adão, que é o primeiro homem a quem Deus revelou o verdadeiro nomes das coisas. Então, a mensagem Adâmica é: o que as coisas realmente são. É
também, representado pelo último profeta que perfaz a mensagem; Ele tinha uma prece que ele rezava todo dia que era: Deus, mostrai-me as coisas como são! Este estágio é representado pela Lua. Alcançar o fundo da alma é alcançar esta água plácida na qual você pode, olhando por um certo ângulo ver o fundo: o mundo material etc.. Olhando de um outro jeito você vê o reflexo do céu límpido. Adão quer dizer: homem são.
A próxima esfera é de Jesus Cristo. Jesus, é o logos, a linguagem, a inteligência.
Essa inteligência é aquela que cria, a ação e a restauração das criaturas. A mensagem do Cristo é essencialmente a mensagem da criação e da salvação. É basicamente a mensagem da cura, a restauração da forma perdida, a medicina, o resgate dos pecadores. É a esfera de Mercúrio.
Depois você tem Vênus que é a esfera de Moisés. A mensagem de Moisés é o mundo da imaginação, dos símbolos, onde as coisas umas se transformam nas outras: a serpente que se transformava em cajado, os milagres etc.. Então é o tecido simbólico do mundo.
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Depois chegamos na esfera do Sol. A esfera do Sol é dada pelo profeta Enoch ou Idris. É o correspondente ao que seria Hermes Trimegisto que é o portador de todas as ciências cosmológicas; entre as quais a astrologia. Depois retornaremos às demais esferas.
Para chegarmos ao fundo da alma se deveria, em princípio, concorrer todas as disciplinas religiosas. A remoção e limpeza constituem-se de duas esferas diferentes: seria a esfera das nossas emoções etc.; e também das idéias, dos pensamentos. Então você teria a doutrina real que correspondem aos valores, aos sentimentos reais. O que não quer dizer que a funcione neste sentido. Mas, uma coisa que você vê muito no meio islâmico é um certo realismo terra a terra e uma certa incapacidade de se deixar enganar pela imaginação: um certo desinteresse pelo que é puramente imaginado. Às vezes parece um para quem vê de fora. Quer dizer, há um certo apego à realidade imediato: há uma certa falta de malícia. Por ex.: no meio islâmico, se você for falar mal de uma pessoa, dificilmente você encontrará quem o escute. Para você falar mal de uma pessoa, ela tem que ser notoriamente ruim. Eles não tem interesse primeiro porque eles não vão poder fazer nada; e segundo porque ele não tem como saber se é daquele jeito ou não. Quer dizer, existe uma certa recusa em pensar sobre aquilo que não vai ter resultado visível. É uma certa recusa em conjeturar. Isso não precisa ir muito longe não. Você pega qualquer crente aí e ele vai agir de maneira igual. E às vezes, agente toma isto como uma certa pobreza de imaginação. Claro que às vezes isso implica numa certa limitação intelectual também. Porém, se pegarmos a média dos seres humanos, nós veremos que a possibilidade de desenvolvimento intelectual deles é muito pequena. Eles falam muito sobre centralidade, um realismo brutal.
Quer dizer, para o sujeito falar exatamente aquilo que pensou, e não maliciado. Vocês se lembram do tremendo impacto que teve o Cacique Juruna quando descobriu que os brancos mentiam habitualmente? Mas, o realismo terra a terra vai produzindo também uma série de soluções práticas para problemas humanos, que às vezes nos parecem até cínicas. Existe uma tribo de índios na qual está mais ou menos institucionalizado o seguinte: você quer comer a mulher do vizinho. Então, você espera que todos saiam para ir pescar. leva ela para um matinho, transa com a mulher e volta. Quando a população retorna e chega o marido, todas as mulheres da cidade vão lá contar para ele. Daí ele pega a mulher, leva para dentro da oca, finge que bate nela e ela grita. Daí está salva a honra. E sempre tem dado certo. É obvio, tem que ter uma solução prática. Outra estória do mesmo gênero é de Maomé. quando o exército saía e voltava para a cidade ele não deixava o exército entrar na cidade na mesma hora. Eles ficavam ali tocando tambor para todo mundo saber que eles haviam voltado. Porque? porque aí os caras iam pegar suas mulheres na cama e iam se matar.
Mas o negócio funciona. É esta espécie de sabedoria simplória que você vê muito nos meios religiosos arcaicos. São soluções práticas para problemas práticos que estão na medida do ser humano. Isso não é santidade, não é elevação espiritual; é simplesmente o fundo da alma de ver as coisas como são. Sem acrescentar a emoção moral, a repugnância, a condenação, que seriam o agitar das águas. Deus aprova o ser humano pelo simples fato dele ser humano. Então, basta alcançar a condição humana, que já está mais do que bom. Lembra aquele negócio daquela tribo de um filme que se chamava Os Seres Humanos? Aquilo gira em torno desse negócio aqui: pão, pão, queijo-queijo. Viver num mundo imaginário, o cara vira uma besta-fera; porque ele não tem mais limites. Nós é que temos limites. Qual é o limite? A realidade terrestre de um lado e o céu do outro. Agora, o cara que vive no imaginário não tem limites, ele pode fazer qualquer coisa, não dá para confiar, é uma força maligna.
chamar eles de seres humanos. Então, Por ex., todas aquelas regras de guerra. O
índio americano tinha uma norma que diz assim: se você chegou perto do seu inimigo o suficiente para tocá-lo, então você já ganhou. você está lá no meio do exército do
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inimigo e o cutuca. bom você já ganhou! Já provou sua coragem, acabou! Para o índio é incompreensível porque o branco matava a distância, com tiro: porque em princípio, um ser humano não quer matar um ser humano. Interessa vencer e não matar. Neste sentido o índio está muito mais centrado na realidade: esta que é a idéia do ser humano, tal como Deus o criou. É a esfera adâmica. Imaginar é uma ponte de acesso ao que você não pode ver. Agora, se o imaginário em vez de ele entrar no invisível, ele começa a entrar aqui no visível, já começou a falsear as funções. Aí começa a ter uma ação entrópica, de destruição. Agora, a humanidade, ela vive numa imaginação desenfreada; não tem mais a menor idéia do mundo físico. A Física que se ensina no ginásio. aquilo é uma destruição total do respeito que se tem pela aparência em si. É
aquele negócio de dizer que uma pedra não é uma pedra, é um aglomerado de átomos.
Ora, isso é uma pedra mesmo, quem é que não está vendo? Mas, essa pedra sobre certos aspectos, ela se compõe de partículas que se movem de uma certa maneira isso é que deveria ser dito! Mas isso não quer dizer que estas partículas são mais reais que a pedra sólida. Por ex.: todo o sistema do cosmos é relativo. Esse negócio de dizer que é geocêntrico, heliocêntrico etc., vai depender do ponto de referência. Se você estiver na estrela Vega, ele não é geocêntrico nem heliocêntrico. Qual é o mais legítimo? Se tivesse que escolher um seria até o geocêntrico porque é aonde nós estamos. É claro que se você entrar na esfera do espaço e do tempo, você não tem a referência absoluta, é absurdo. Absoluto só pode ter num inferno puramente metafísico que abrange a totalidade dos seres na eternidade.
Aquela musiquinha de Xô Satanás, não tem nada de satânico, é apenas uma alegria maluca de carnaval; é simples, é apenas um direito humano de ficar maluco.
Isto aí se aproxima muito de ver as coisas como elas são. Qual será a reação do indivíduo perante o carnaval? A tendência dos últimos anos era de tornar o carnaval em uma coisa agressiva e depressiva. De repente virou para uma alegria inocente, uma alegria de maluco, isso é o carnaval de fato; a coisa volta a ter a proporção que ela tem. O maluco não quer fazer mal para ninguém; aliás ele nem sabe que existe os outros. O maluco é inocente; então piada de maluco tem que ser inocente, não pode ser uma premeditação. A essência da coisa satânica é querer que as coisas não sejam como são. A palavra satânica, Por excelência, é o NÃO. O Não é a recusa. Você pode não querer o satã. Mas a negação da negação é a afirmação. A dupla negação é a essência da dialética. A mentira é o não. Existe a dialética para você restaurar a verdade. Isso é propriamente o destino humano: fazer um trabalho contra a negação.
Deus não faz isso, Deus só tem o sim. Negar a negação, que é o pensamento, a dialética, isso é próprio do homem. Deus diz sim e o Diabo diz não. Mas estas 2
entidades não estão na mesma categoria. Quer dizer, em relação aos seres humanos, o poder de cada um é tão descomunal que nós não vemos a diferença; nós equalizamos.
Mas isso é um erro. Metafisicamente falando, em termos de eternidade, Satanás nem existe. O Diabo só existe em relação a nós. A origem do diabo é a reação que um determinado anjo teve à criação do homem; não gostou da criação do homem: a partir daí ele se transforma em diabo. Você vê a partir daí que só existe capeta para o homem: ele é inimigo nosso, ele não é inimigo de Deus. Ele não se revolta contra Deus, ele se revolta contra um ato de Deus. Ele pensou assim: Como é que essa criatura carnal, temporal, vai saber aquilo que nós criaturas eternas sabemos? É
como se fosse um ciúme. É também mais ou menos como se você pegasse a sua mulher compartilhando segredos com um gato. Deus se entende com o diabo. Mas estabelece limites para o diabo: tem lugares em que o diabo não pode perseguir o homem, como a casa do senhor Por exemplo. Então, a atuação do diabo é condicional. Então, tudo aquilo que seja a esfera da necessidade natural, da natureza, o diabo não entra; só entra onde existe a liberdade humana i.e.; quando você tem uma opção de agir de uma maneira ou de outra, ali o diabo pode entrar naquilo que não
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está predeterminado. O que está predeterminado? Bom, tem a necessidade natural (de baixo) e tem a ordem celeste lá em cima. Então o diabo entra aonde? Ele entra aqui na água e no ar. A água é o mundo das emoções, da psique humana; e o ar é o pensamento abstrato, as idéias. Mas existe aqui uma esfera infra-natural aonde ele entra: existe uma esfera de fenômenos preternaturais. Preternaturais é aquilo que não está previsto na ordem da natureza mas que pode acontecer. Preter quer dizer quase.
São efeitos que acontecem que não tem causa natural nem sentido sobrenatural: tipo assim, você fica resfriado e morre no dia seguinte.é uma piada demoníaca.São coisas sem saída, que não dão mais margem para ação humana. Essas situações sempre acontecem artificialmente, são montadas, tem uma vontade maligna. Tem um filme que chama O Mago. É a estória do exército nazista que invadiu uma cidade grega e prendem 4 pessoas da Resistência amarrando-as num poste. Também prendem a população inteira num estádio de futebol. Dá para o prefeito uma metralhadora e diz: Ou você fuzila esses 4 na frente do povo ou nós vamos fuzilar o povo. Tem saída isso aí? Faça você o que fizer, é mal. Então, uma situação em que todas as alternativas são más, elas nunca existe naturalmente e nunca no desenrolar normal das ações humanas. Ela só acontece quando alguém monta com este propósito: Isto é caracteristicamente demoníaco. Se existe um intenção, tem uma inteligência atrás e portanto não é um processo natural. Você acaba ficando preso entre a comicidade e a angústia. Não é como a angústia natural da vida. Porque na vida, o que é triste é triste; o que é alegre é alegre; ou você ri ou você chora. Nesta situação não dá para rir nem para chorar nem para não fazer nada. Este desconforto sem saída, cria uma agitação da alma e derruba você.
A igreja católica (vide S. Tomás de Aquino) nunca falou em sexo só por procriação; sexo é você fazer uma deleitação no corpo do outro. E S. Tomás de Aquino diz que a finalidade é essa; é um direito humano: deleitação no corpo amado. Tem povos inteiros como na Austrália que ainda acreditam em sexo por procriação.
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