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Se eu fosse uma estação, não seria o verão. Não seria a estação de que todos gostam e pela qual todos esperam. Não seria o período de pausa, de descanso, de viagem. Nem a felicidade, a esperança, o passeio... Não seria a praia, a piscina, os amigos ou a família, nem o calor, o fresco, a bebida com gelo ou os calções, porque isso não é o verão. Seria a sede, a fadiga, o calor excessivo, o aborrecimento. Seria as expectativas não correspondidas de um verão como aquele de há tempos atrás. Seria o suor, o desconforto, os mosquitos e as moscas. A preguiça, o meio-dia, a moleza... Não seria a inspiração, a criatividade, o tempo livre, nem o churrasco de família no quintal. Seria o sono, o dormir a más horas, o tédio e a ansiedade pelo outono.
Se eu fosse o outono, seria a bipolaridade do tempo, que ora chove, ora está sol. Seria a mudança, a adaptação. As folhas caídas e as poças. Seria as galochas, os cachecóis e os gorros. A chuva, o sol e o vento, todos misturados. Seria o conforto de casa e os episódios especiais de Halloween. O fim das férias, um novo começo. O rever os amigos e professores, o brincar... Mas eu não seria o outono. Eu seria as primeiras constipações, a primeira tosse, os primeiros espirros e dores de cabeça. Eu seria a desilusão do fim do verão e do recomeço do trabalho. Eu seria a mudança; ninguém gosta da mudança...
Com certeza, não seria o chocolate quente especial que a nossa mãe faz numa tarde mais fria e que nos adoça o resto do dia. Em vez disso, seria o pão seco de todos os dias, pelo qual ninguém é grato. Seria as roupas rasgadas e esburacadas num dia ventoso. Seria o casaco esquecido e a pele de galinha. O frio e o desconforto que vão aumentando gradualmente à medida que o verão se afasta. Seria o frio do inverno, mas não seria o inverno. Não seria a cama quentinha, nem a lareira, nem o abraço da família.
Seria o dia chuvoso, nublado e nunca apreciado, a ouvir do outro lado do mundo que lindo e solarengo dia está. Seria o sem-abrigo, o pobre, o malvestido. Nunca poderia ser o filme de Natal nem a ceia. Não seria os foguetes de Ano Novo, nem o champanhe. Seria as passas rugosas deixadas em cima da mesa, enquanto se comem uvas frescas ao ritmo das doze badaladas. Afinal, ninguém gosta de passas. Seria a frustração dos objetivos não cumpridos e a ilusão de que este ano tudo vai mudar. Não seria a esperança, mas sim o passado a pesar nas costas. Seria a janela aberta e o nariz a fungar. Não seria a sopa, nem o café, nem o banho quente ou o pijama. Seria as dores no corpo, tão profundas que chegam aos ossos, o sapato furado, as meias molhadas, a cara pálida e o cabelo encharcado.
Não seria as bolachas acabadas de fazer, nem o cheiro agradável da chuva. Muito menos seria o cheiro das flores na primavera. Não seria as folhas, nem os frutos. Não seria as andorinhas a chilrear de manhã e a voar junto às janelas. Eu seria as alergias, o pó... Os bichos e os insetos que ninguém ama. Não seria a cozinha arejada, nem o arroz de primavera, o equinócio, nem as auroras. Não seria os olhos azuis de oceano, de safiras e do céu. Não seria o céu limpo da manhã, nem o pôr do sol. No máximo, seria o céu estrelado, que se via refletido nos meus olhos castanhos e cheios de lágrimas e que me olhava sem resposta quando lhe perguntava: onde foram os meus sonhos? O que faço comigo mesma agora que percebi que não valho a pena?
Nessa noite, quando falei com o universo e o olhei diretamente nos olhos, pedindo-lhe que me guiasse, como fez com os navegadores em alto-mar de antigamente, e que me aconselhasse, talvez me faltasse o esquadro, a bússola, o astrolábio ou simplesmente o talento para ler as estrelas. Ou, talvez, mesmo elas, donas da eloquência, tenham ficado sem palavras. Era noite de chuva, mas uma chuva diferente. Era uma noite especial; por isso, nesse dia, não chorei sozinha. O céu fez-me companhia. Algo que eu também não seria.
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Queria escrever. Mas não apenas escrever por escrever. Não queria inventar histórias, compor poemas, nem canções. Queria escrever uma reflexão, desabafar. Pôr tudo o que sinto e penso para fora, prender a minha dor numa folha de papel e deixá-la lá. Libertar-me dela. E durante esta semana inteira, trancada em casa, no escuro e sem fazer nada, queria escrever. E anseava pelo momento perfeito, em que as ideias na minha cabeça se alinhassem e as palavras começassem a fluir para fora do meu corpo, pelas minhas mãos, pela minha boca... E, no entanto, aqui estou eu, sentada em frente á minha secretária, mais uma vez, a olhar para uma folha em branco. Queria escrever algo melancólico, tocar em temas sensíveis e frustrantes, refletir sobre a morte, a vida, sobre a busca inútil de um significado, sobre a procura de uma felicidade que nunca poderá ser alcançada, sobre as contradições da nossa existência... Queria escrever sobre a tristeza, o sofrimento, o aborrecimento e a solidão — condições da vida, que não podem ser evitadas, apenas adiadas. Queria questionar tudo: Deus e a moralidade, a humanidade, a mim mesma... Mas agora, já não quero.
Finalmente, desprendo-me da cadeira e pouso a caneta. Queria escrever mundos e desabafar até não me restar nada, mas agora já fiz o almoço, já tomei um banho e abri as persianas para deixar entrar claridade em casa. Já limpei a casa, bebi um café e abri as janelas. E está um lindo dia. Queria escrever até me esvaziar por completo e refletir até me preencher outra vez. Mas agora, só quero dar um passeio. E, mesmo que ainda nada faça sentido, hoje já não quero escrever.
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