amongstbeards
Between Me and Myself
148 posts
I thought about thinking, I thought about not thinking. I decided to stop thinking.
Don't wanna be here? Send us removal request.
amongstbeards · 3 years ago
Text
Um dia qualquer. Ela abre os olhos que relutam em receber a claridade tênue que passa pela janela, mas se levanta firme e determinada e enfrentar mais um dia. Estende os lençóis e arruma a cama tão logo. “A minha sempre mantenho bem esticadinha”, diz ela.
Com os olhos ainda um tanto enevoados e a costumeira aparência de quem tão cedo se levanta, ela atravessa seus corredores em direção ao futuro café da manhã, que afinal não vai se preparar sozinho. E não é porque agora ela está só, como tanto desejara por todos esses anos, mas apenas pelo fato de que sempre fora ela a provedora, a cuidadora, a mãe. A mãe...
De repente estamos frente ao espelho, ao lado de seu altar particular. Com o terço na mão ela reza fervorosamente com toda fé que há em si. Deus há de prover. Mas ao fim da reza, quando seus olhos - enfim despertos - cruzam com os olhos de sua própria imagem, suas mãos caem lentamente ao lado do corpo enquanto a vida passa em frente de seus olhos num relance.
E cá estou aqui eu, pensa ela, tão miudinha e enrugada já. Agora pouco contava de minhas travessuras de menina, e aqui já v��o não sei quantos anos para que finalmente esteja aqui me vendo de novo. É engraçado como a gente esquece da gente enquanto a vida vai passando e colocando seus fardos em nós... Mas acho que é isso mesmo. Pra alguns essa passagem é cheia de aventura e descoberta e travessuras não só de menina, mas pra outros é o que dá pra ser. É varrer o chão todos os dias, é passar o café, é cuidar dos pais e dos irmãos e não deixar faltar, e não SE deixar faltar. E os sonhos vão ficando pra trás. O estudo, o trabalho, as viagens... Como é que vou sair por aí se precisam de mim aqui?
Acho que a vida acaba ficando com esse sabor mesmo. Eu mesma escolhi deixar de fazer planos quando vários dos que fiz não deram certo. Vou vivendo o que Deus prepara pra mim, mas ainda bem que ele me permitiu ter essa casinha e essa paz que finalmente tenho.
Será que já é tarde pra começar a aproveitar essa experiência única que é a vida? Será que não dá mesmo pra começar agora a viajar, e ter o estudo, e realizar o sonho do pai? E será que neste parágrafo ainda redijo indagações da mesma mulher de que tratava ainda agora?
Bem sei que apesar dos prazeres das contemplações filosóficas que ocorrem cotidianamente nos espelhos mundo afora, já me vou indo, pois o café não vai se preparar sozinho.
1 note · View note
amongstbeards · 4 years ago
Text
Não saberia precisar o momento específico em que aconteceu, em que a chave foi virada, mas hoje já é tarde demais para voltar atrás com a história.
No começo foram mudanças sutis, pequenas alterações na rotina, leves incômodos cotidianos. Um leve torpor antes de levantar-se pela manhã, um dissabor corriqueiro com um conhecido, uma pequena insatisfação com um ambiente vazio. A mente atormentada, condicionada à continuidade, à conformidade, ao ritmo inexorável da dimensão não vista, burra em sua inteligência eficiente, não percebe o mal que se assoma paulatinamente. Resolve o que está em frente aos olhos, não vê o que vem mais adiante, não vê o que está ao redor. Ocupa-se apenas do que é premente, não deixa o interesse profundo emergir para plenamente dispor seu aviso apocalíptico.
De pouco em pouco a doença evolui, tomando tudo à sua volta, transformando e subjugando o fulgor e a vitalidade à forma neutra, escura e fria. Os cercos se alargam, os caracteres se corrompem. Avolumada ela é imparável, absoluta, incombatível. A mente se preocupa com o estado geral da situação, apercebe-se de que o problema é mais amplo do que os menores desafios que se apresentam subsequentemente, mas ainda não sabe parar para conscientizar-se do todo, de tudo, do foco. Ela mesma se corrompe, é afetada, partida e abatida pelo umbro. Ainda burra, ainda incapaz, embora nunca tenha sido e talvez nunca fosse capaz.
Hoje tudo é diferente, irremediável. As paredes que eram lar, agora são prisão: não deixam a cura entrar, não deixam a doença sair, não me deixam ir embora. As pessoas que eram conforto, agora são inquietação, são intriga, são pesar, cansaço mental. A morte se apresenta em vestígios, em sinais perniciosos. Ela me rodeia e brinca com minha mente adoecida antes de me abater por fim, se é que me abaterá afinal ou me deixará a lembrar e lamentar por tudo que havia e se perdeu. Não há como seguir em frente pois não há mais rumo que não esteja bloqueado. Todas as portas estão fechadas, todos os queridos estão mortos, todos os demais estão mudos, e tudo está frio, duro e pesado.
É curioso que o que se manifesta em pequenas proporções vindo de dentro dos que vivem, afinal, é apenas a projeção diminuta do estado geral do universo. O que existe é canceroso, tudo que há está fadado ao fracasso. Entender que a busca onírica do poeta nunca passou de uma vã empreitada rumo ao abismo que há no fim de tudo, apesar de esclarecedor e triunfante à sua maneira, não traz conforto. Nada traz. E nem o fim derradeiro trará, pois o que se está morrendo ainda é passível de salvamento, mas no mundo em que caímos, o grande segredo é que tudo já está morto.
1 note · View note
amongstbeards · 6 years ago
Text
Não pertence
Porque tenho me perguntado amiúde o quanto é possível uma pessoa ferir a outra ou qual a verdadeira extensão ou a profundidade qual essas feridas possam alcançar.
Tenho considerado incorreta a classificação de tais dores como “cicatrizes”, qual o faz a maioria dos poetas e discursistas sobre o amor e os sentimentos que se lhe pareçam, pois tal resultado é característico dos cortes que já se fecharam, dos quais apenas a memória permanece. E estarão seus cortes realmente fechados? Não basta apenas um leve esbarrar para que toda a dor, todo o sangue, todas as lágrimas voltem a aparecer?
O tempo, em seu ofício de melhor cicatrizante reconhecido por todo aquele que já disse passar por aflições tamanhas que sejam incomparáveis às de qualquer outro aflito, parece-me, em verdade, o pior dos remédios. Que é quando você resolve acariciar o local machucado para verificar se há melhora após uma generosa dose de tempo aplicada, e descobre que a ferida ainda dói como se surgida na noite de ontem. E então aplica-se uma camada maior ainda, e o ciclo se repete à mesma maneira.
Talvez o melhor a fazer seja acostumar-se à constrição, dar-lhe um nome irreverente e abraçá-la como nova moradora permanente deste corpo. Quem sabe um dia ela se canse de perambular por aí e vá embora enfim, talvez deitemos juntos à cova quando chegar o dia derradeiro. É insondável seu destino, é inescrutável sua sanação.
Mas, ainda assim, seguimos trocando os passos.
0 notes
amongstbeards · 6 years ago
Text
Abro os olhos e levanto-me. Nada especial neste gesto corriqueiro que é repetido tantas vezes mundo afora e por tantas outras gentes, sejam dignas ou não de exercê-lo, exceto que não estivera dormindo, não estivera deitado, não estivera sequer com os olhos fechados. Não obstante, sinto que abri os olhos e levantei-me.
Talvez já o tenha feito há tempos, embora apenas agora me recaia a consciência de tê-lo feito, sabe-se lá qual torpor me acometera. Talvez tenha realmente acabado de abri-los e o átimo que se desenrola entre o fazer e o pensar tenha se estendido infinitamente. A despeito de que escolhas ser mais apropriado (pois, afinal, importa?), prefiro prender-me à repentina sensação do vento em meus braços, acariciando gentilmente os pelos emaranhados, ao calor do sol em meu rosto e seu brilho que me faz cerrar gentilmente as pálpebras em tentando proteger as pupilas cansadas que olhavam mas não viam.
Algo tilinta em minha memória, a sensação de já ter ouvido que têm-se esse estranho tipo de euforia contida quando se percebe que há mais em algo do que os olhos podem ver. O decantar lento e constante da percepção de que se estivera olhando tempo demais para o mesmo lugar que se escapara a lembrança de que aquilo não é tudo o que há. E é tão vasto, é tão verde...
-//-
Após incontáveis eras de admiração, ele resolvera voltar a andar. Seguiria pelo caminho errático em meio à vastidão da vegetação a sua frente - já estivemos aqui antes, você sabe. Nunca tivera curiosidade em virar-se para ver a devastação que deixara detrás de si, e que levaria consigo, incauto e inocente. Suas mãos sujas e mecânicas se revoltariam contra o que quer que fosse que lhe trespassasse o caminho, embora nunca soubesse ao certo a empreitada que assumia.
Seu redemoinho voltava a girar. Seus terrores voltariam a surgir.
0 notes
amongstbeards · 6 years ago
Text
A boca seca motiva o passo trôpego à fonte, onde quer que esta esteja. A alma seca dispara o vagar trôpego à satisfação, qualquer que esta seja.
A água jorra, farta e ligeira, fresca ao toque, provedora, saciante. A boca se umedece ao passo que o líquido almejado perfaz o vazio que se completa. A necessidade passa, instantânea, corriqueira, desimportante. A água ainda corre, e continuará a correr por tempo bastante que se queira saber.
É o eterno girar de uma roda d’água que chega vazia ao córrego e logo se enche, se completa, e dali segue uma carga d’água faceira em sua completude. Do alto de sua aguidade, ela se mostra às outras pás, majoritariamente vazias, refestelando-se em ser completa, em alcançar seu objetivo sonhado (?) de um dia encher-se da água que corre e poder sentir o frescor, a umidade e a energia. É claro e certeiro o destino de suas colegas que a seguem, qual seja o de se completarem igualmente, de encherem-se tal qual a companheira orgulhosa de outrora. É claro seu destino, é cristalino, pois em meio a tanta água que passa é certeiro que algumas gotas - por mais desatentas que estejam em seu ofício de buscar o desaguar - estão fadadas a serem capturadas pelas impassíveis pás da roda. Não há rejeição, e não está escrito.
Mas olhe lá, como vai descendo nossa pá doutra vez contente, pois não contava com o peso que sua tão amada água lhe traria, não contava com as forças sobrenaturais que agora a empurram para baixo, forças essas que se situam além da compreensão limitada das pás. Em meio à derradeira descendente, ela já sabe o que aguardar do tempo vindouro. E podes imaginar como ela tentaria agarrar-se à sua água para que esta não lhe escapasse, podes imaginar qual desespero lhe acometeria de pensar na iminente perda e nada poder fazer a respeito, e podes pensar até mesmo que algumas das gotas que ali se encontram tivessem vertido da própria pá, em seu pranto de certa forma característico, mas devo admoestar-lhe de que não prosopopeie sobre pás, ora pois. Ou personifique como queiras também, pois que sentido atribuímos à vida senão este de empreender fantasiosas expedições a mundos insondáveis, tal qual o de nossas pás cirandeiras?
Não obstante o que decidas, caro leitor, vê que segue a água em seu fluxo rumo ao mar, e nossa protagonista, agora do outro lado de onde começamos esta narrativa, agora vai vazia, gotejante, porém leve e ligeira, pois o que sobra da aventura cíclica da pá de uma roda d’água é o vazio, que lhe há de acompanhar pela maior parte de sua jornada, até que iniciemos uma vez mais esta empreitada. O que sobra é o vazio, é a boca que torna a ficar seca, é a incompletude e a esperança de que se possa tornar ao córrego. Não lhes acomete entretanto - digo das pás - que tais empreitadas são fúteis e incoerentes em seu objetivo, que sua plenitude talvez já esteja estabelecida, mas não encontrada em meio à sobreposição de um destino imposto que se é obrigado a assistir pela frente. Para tua volta, aquieta-te minha filha.
...
Pás e águas aparte, pergunto-me que terá acontecido à alma que deixamos lá para trás.
0 notes
amongstbeards · 6 years ago
Quote
You think I’m scared of being alone. I’ve done it a million times, and I’m fucking great at it. How many times have you been alone?
0 notes
amongstbeards · 6 years ago
Text
Havia um rosto pelo qual uma lágrima solitária descia vagarosamente, relutante em seguir seu caminho natural traçado por forças muito maiores do que se podia imaginar. Outrora cheia e completa de seu amargor salgado, a cada segundo que passava uma parte de si era deixada para trás, um rastro úmido por sobre a pele de seu criador, uma lenta destruição de sua unidade, um silencioso desvanecer. Curioso é que, refletida em seu exterior, estava outra destruição, muito maior do que se podia imaginar.
Havia um homem parado à beira de um precipício, à encosta de uma montanha. Ainda não era o topo, mas, durante o caminho árduo da subida, pelo qual pequenas partes de seu ser, de sua unidade consciente (e inconsciente, agora sei), foram deixados para trás em rastros umedecidos por milhares de lágrimas semelhantes à nossa protagonista anterior; durante o caminho algo chamara sua atenção.
Anos haviam se passado desde que ele deixara seu mundo para trás e partira, subindo em espirais pela encosta de uma inconcebível montanha rumo a seu distante cume, o qual sempre fora seu sonho. Em voltas e voltas, cada vez mais alto e mais próximo de seu destino, ele ainda podia avistar o que deixara para trás pois, em meio às árvores da floresta abaixo, entremeada com a vegetação, ainda era possível avistar a vila onde crescera e ver distintamente as casas, as ruas, as praças. Em sua mente, era como se cada um desses lugares brilhasse com uma cor própria, uma intensidade particular, um efeito criado pelas memórias ali construídas. Cada pequeno pedaço com uma história da qual ele lembrava todos os detalhes, até os mais banais, os mais difusos. Posso ter deixado tudo isso para trás, mas isso ainda me pertence, pois ainda sou de lá, ainda carrego comigo tudo isso e um dia ainda voltarei para pintar com novas cores todos esses sentimentos, pensava.
Eis que em uma dessas voltas algo lhe chama a atenção ao canto do olho. Era um dia no qual o sentimento de confiança e de esperança pairava no ar à sua volta, um dia claro, fresco, leve, um dia no qual não pararia para avistar a cidade e permear-me por sentimentos saudosistas; e justo nesse dia, aconteceu. As cores. Eram as cores que mais gritavam em seus olhos com vozes agudas e ríspidas, clamores inauditos que atacaram seus olhos com a pungência de mil lanças ao mesmo tempo. É laranja, pensou ele, é quente, embora não pudesse sentir o calor de onde me encontrava.
A cidade ardia em chamas, com labaredas famintas que devoravam ferozmente cada vez mais, eternamente insaciadas, eternamente livres. Os espaços onde outrora floresciam construções, estátuas... onde floresciam sonhos e expectativas, onde o leve cheiro da juventude esperançosa permeava por todas as frestas, agora negro, cinza, reduzido a pó. E quem sabe fosse nesse deserto que agora se formava onde muito tempo antes (pois nesses ambientes atemporais a ordem dos acontecimentos pouco importa) uma heroína das areias lutaria por sua vida. Os espaços sagrados desvaneciam em suas bolhas, retirando-se a um mundo ideal onde pacientemente aguardariam para novamente manifestarem-se, imponentes e carregados da energia inesgotável que portavam. As árvores balançavam-se, impacientes, preocupadas, ansiosas com o fim anunciado que se assomava sobre elas, embora nada pudessem fazer. Aquela seria uma terra de fantasmas.
E toda essa cena refletia-se na superfície da água, na parte externa de uma lágrima relutante que escorria lentamente pelo rosto de um rapaz que há muito tempo partira em uma caminhada rumo a um sonho distante, e que agora assistia à destruição de todo o universo que lhe era conhecido. O céu se foi, a terra se foi, o ar se desfez e ele se sentiu vazio, incapaz e eufórico, embora seu organismo fosse responsável em partes por tudo isso.
Apenas uma lágrima rolou, e ainda continua a rolar.
Eu, agora, sou um fantasma.
0 notes
amongstbeards · 7 years ago
Text
Mais uma vez me coloco diante do espelho na esperança de encontrar meu reflexo perdido que há tanto não vejo. Mais uma vez me deparo com o estranho que me fita com olhos dúbios e incomuns. Sei que já me reconheci nos olhos deste indivíduo que me fita, sei que já fui ele, que ele já foi eu, que, no fundo, ainda somos um, mas hoje não faço mais questão de conhecê-lo. E me tormenta a ideia de que, em verdade, eu sou o reflexo.
É latente a sensação diuturna de andar pelas ruas, em todas acepções que a palavra possa ter, de frasear as palavras a estranhos, a conhecidos, a estranhos que se tornam conhecidos e a outra via do mesmo desencontro. Parece real, porque, de fato, estou lá. Eu sou a sombra, eu sou o reflexo, eu sou a imagem que se forma bem no fundo dos olhos alheios. Mas eu não me sou mais.
Esse estranho que vaga em meu corpo e quebra as palavras que sempre disse, destrói as crenças que sempre disse ter, bebe das fontes que sempre rejeitei e toca em seres dos quais sequer me aproximaria; esse estranho que me observa todos os dias no espelho com seu sorriso escarnecedor (o mesmo que sempre habitou em meus pensamentos, mas que nunca esperei materializar-se), eu não o reconheço. Não quero conhecê-lo.
Talvez a sensação de dissolver-me por dentro de mim mesmo até desaparecer-me seja justamente decorrente de uma premissa verdadeira. Eu quero destruí-lo, mas eu sou ele, então quero destruir-me.
-Vocês não vão escapar de si mesmos, não é? - ele me diz, sussurrando em meus ouvidos a citação do velho livro que me constituiu, estampando em minha frente minhas próprias contradições, fazendo com que a própria liberdade torne-se a cadeia. - Eu sei que você me odeia. Todos nos odiamos. É isso que há, agora.
É isso que há, agora.
Não cessa de espantar-me a clareza da relação que se estabelece com todos aqueles aos quais não se compreende de imediato. Prometeu teve sua vez.
0 notes
amongstbeards · 7 years ago
Text
Seria um tolo em dizer que não sinto ela me espreitando, sussurrando docemente pelos cantos, se escondendo à plena vista em todo lugar em que eu esteja. Eu sei que ela está lá, me observando, apenas esperando pela mínima brecha na parede de minha ensimesmice para que ela possa entrar novamente, fluindo imparável para dentro, inundando todos os cantos de uma existência que insistia em tentar juntar-se, novamente.
E seria ela a espécie? Seria a espécie, esta figura disforme que me acompanha desde antes que eu possa me lembrar? Teria apelidado-a assim para que pudesse diminuir sua grandeza ancestral e assim poder compreendê-la em todas suas facetas instigantes? Como se fosse possível compreendê-la assim.
Gostaria de dizer que estou preparado para ela novamente. Gostaria de dizer que nos tornamos amigos e que conheço-a e sei convocá-la e dispensá-la à minha vontade, mas a verdade é que ela é a Espécie, e como tal continua a proteger o indivíduo de todas as formas que já fez e de todas as demais formas que ainda nem foram concebidas. E você não sairá daqui.
De qualquer forma, espécie, saiba que sinto-a e que sei que me espreitas desde o dia em que me desprendi de sua proteção. Este indivíduo talvez procure abrigo em sua maternal segurança na próxima curva desta estrada de exceções (que não tem mais sido exceções), mas, por enquanto, apenas saiba que te vejo e que, enquanto eu puder e minhas pernas aguentarem, estarei fugindo de você. Creio que já tenha passado da hora de mostrar-lhe como o indivíduo luta de volta.
Peace out.
0 notes
amongstbeards · 7 years ago
Text
Era na eterna briga entre o azul eterno e todo o resto que nos convencemos que existe que estavam, plantadas por menos de dois segundos antes de se moverem inabalavelmente em frente, duas bases ordinárias. Simples, franzinas, medíocres, bases que nada possuíam que lhes pudesse conferir estado superior ao que sabiam que lhes era cabível. Bases que eram privilegiadas pela bênção da carícia do eterno azul.
“Ele não combate, ele acaricia. Tenta alcançar eternamente, sem nunca conseguir por muito tempo.”
E seguiam em frente, uma depois da outra, governadas por uma consciência que se desvanecia no fluxo de caminhar, no fluxo de tentar alcançar e nunca ao certo conseguir, num fluxo de fitas multicoloridas que se desprendiam indefinidamente na direção de um destino que tanto mais rápido se afastava (familiar, não?). Um fluxo que fora, era e sempre seria constante em toda sua existência como bases, seja lá o que fosse que sustentavam ou viessem a sustentar.
“São fins que não podem ser encontrados, mas que vêm de encontro a quem quer que queira encontrá-los.”
E ouvia sobre fins. Sobre ter se perdido há tanto tempo que já não era mais possível perder-se novamente para assim retornar ao início. E ria sobre cataventos que já não mais significavam, sobre ciclos, os quais sempre se acreditou serem constantes, que nunca se repetiam em iterações.
“Mas perder-se não é mais do que afogar-se em si mesmo a ponto de ressurgir na superfície de onde nunca se percebeu estar nadando?”
E pensava em ser água, pensava em ser areia. Pensava sobre os avanços, sobre as entidades que avançam inquestionáveis até que se encontram e se atravessam sem nunca perceberem-se. Pensava sobre estar, sobre fluir, sobre como ser é fluir. Sobre como avançar é afogar-se sem nunca poder fluir.
“...”
E paravam as bases. Paravam as colunas e paravam todos os fluxos e avanços. E tudo se estendia indefinidamente na direção dos horizontes tangíveis e intangíveis.
Passavam mais de dois segundos. As bases enterravam-se para sempre na areia. As vidas enterravam-se para sempre na constância. O avanço enterrava-se para sempre na ignorância.
“Flutua em direção ao fundo. Afoga-se até ressuscitar. Encontra de novo tua vontade e recomeça a andar, cego que deixou de ver.”
1 note · View note
amongstbeards · 7 years ago
Text
Me disseram.
Finalmente me disseram, leitor. Eu viajei por alguns instantes, estive longe e perdido, crédulo de estar no caminho que sempre soube estar certo. Os instrumentos de navegação todos continuavam perfeitamente ajustados, o piloto automático seguia funcionando de acordo, notificando esporadicamente quando era necessário tomar o comando, momento no qual os mesmos ajustes eram sempre feitos e a vida seguia normalmente. A moral era aumentada, como ironicamente retratado naquele simulacro que tanto me proporciona alegrias, o novo pulso de energia era suficiente e nada fugia ao normal.
Não duvidei por um momento sequer de que as paisagens que eu via eram as que eu deveria ver. Não desconfiei em momento algum de que minha viagem estivesse em rumo diverso do qual deveria estar, muito embora nem eu mesmo soubesse qual rumo era este.
Foi o clima que, inconstante e desajustado, me levantou as primeiras suspeitas. Fora o vento, incoerente e desnorteado, que me certificou das revoltas águas que se seguiriam. Foram as pedras contra as quais meu barco fora arremessado tantas e tantas vezes, fazendo-me remendar minha embarcação às pressas antes da próxima colisão, conseguindo precariamente manter-me à superfície daquele oceano onde outrora outros barcos já tinham navegado, foram elas, ou melhor, nelas que encontrei escritos os sinais, os símbolos arcanos, as coordenadas proibidas que levavam aos caminhos corretos. Foram as próprias águas, avolumadas pelas enxurradas que se assomavam sem anunciação da própria capitania perdida, que me disseram.
Deixei de lutar contra o rumo. Deixei de governar o barco. “Não é assim que se deve navegar”, me disseram.
Se é o correto o conselho de navegação, no momento ainda me escapa a certeza, mas se alguém o tiver melhor, que lance sua mensagem engarrafada ao mar, pois há capitães perdidos em incontáveis barcos à mercê da fingida consciência que esperam ansiosos por olhar para seus marujos com a faísca da certeza de fazer o que é certo.
Incontáveis capitães que esperam que alguém lhes diga.
1 note · View note
amongstbeards · 8 years ago
Text
And we feel that pressure against our chest. We feel that impending dark cloud slowly pairing above everything that we know, everythig that we are. And it is a dense, deep, misterious feeling, it is something to explore, something to delve in and lose ourselves wandering through halls of unspeakaple wonders. 
Though we do not fully understand what might be happening, we do know that our hearts are set ablaze, seized by that feeling that puts us to question the core of pure existance. Some may call it sadness, some may call it sorrow, but none may have infered that this glorius experience might be, in fact, an unrecognizable assembly of happiness and joy inextricable condensed.
1 note · View note
amongstbeards · 8 years ago
Text
I have empty hands
I feel like I’m meant to have something in my hands.
I feel that it’s there, condensing around my skin, slowly gathering into my palms, like a faint feeling that I was holding something that I have forgotten somewhere, but I can’t seem to remember what was it.
I can feel the weight of it pressing against me, I feel the pressure that it exerces, I feel the gravity pulling it downwards and then, just when I’m about to grab it, to secure it with all my strength, it vanishes away as if it was never there, it slips like sand through my fingers - which has lately been becoming an inquestionable truth. Nevertheless, the feeling is still in there, and it seems to be settling down.
Confused, I look down to see what I thought was meant to be but never actually materialized there, and that heavy cloud of impending doom falls over me with all of it’s consequences, making me realize what I then whisper to myself in horror.
“I have empty hands.”
0 notes
amongstbeards · 8 years ago
Text
E mesmo além
               No marasmo de uma vida pela qual os dias escorriam vazios e desdobravam-se vastamente desprovidos de qualquer relevância, não havia de ser num especialmente diferente que aconteceria algum fim ou mesmo pontuação para aquela alma.
               Era simples como sempre fora a paisagem da infinita grama que se estendia até onde a vista conseguia alcançar e mesmo além, como era sabido que de fato existia. Era pacata a sensação da cadeira de balanço, com seus estalares confortáveis que se manifestavam constante e insistentemente no embalo do movimento pendular. Era calmo e sereno o olhar da mulher que fitava o mundo sem ver o que realmente nele havia, ocupando-se em concentrar a visão ao longe, num horizonte onde seus pensamentos materializavam-se na certeza de que havia mais para a vida do que apenas a submissa existência terrena. Era fria, não obstante misteriosamente convidativa, entretanto, a chuva forte que caía sobre o campo, deixando esporádicas poças onde o céu tocava o chão numa débil representação poética dos ciclos quaisquer que tanto apetecem a citação àqueles que pouco entendem de coisa alguma.
               Não apenas no olhar daquela mulher é que se encontrava a calma, a serenidade e a plenitude míticas de que se ouve falar nos épicos contos escusos que são repetidos apenas pela memória daqueles que ainda buscam tal estado, mas em todo o seu próprio ser era perceptível a ausência de mistérios pessoais que resolver, a inexistência de questões quaisquer que estivessem pendentes com o mundo ou consigo mesma, a nulidade da turbidez do pensamento. Sua mente era livre para voar pelas altas regiões filosóficas onde se encontram aquelas respostas que colocariam o mundo que conhecemos no perigo irremediável que é citado à boca pequena nos becos esquecidos das cidades inabitadas, e por essas e outras (mais por outras que por essas) é que ela resolvera afastar-se de qualquer sociedade que fosse, dedicando-se sozinha a apreciar sua tenra e verdejante grama que se estendia até onde a vista conseguia alcançar e mesmo além, dedicando-se sozinha a libertar suas reflexões para expandirem-se tanto quanto sua grama. E mesmo além.
               Naquela hora, porém, sem saber ao certo qual das fitas de seu pensamento multicolorido que se estucava indefinidamente por sobre os prados e mesmo além, qual dessas fitas tenha rebentado e retraído violentamente de volta à sua origem, trazendo consigo o impacto característico das epifanias brilhantes, naquela exata hora, surgira na mulher um desejo incontrolável de lançar-se ao campo, uma vontade de correr atrás do que quer que estivesse à sua espera além daquilo que ela já podia observar diuturnamente. Empossada do repentino pensamento, a serenidade de seu semblante transformara-se paulatinamente em estranheza e consideração, efluindo finalmente para uma antiga expressão que há tempos não tomava sua face, uma feição determinada e investida da capacidade de alcançar tudo o que fosse possível neste mundo, e mesmo além.
               Recolhendo de imediato suas demais fitas pensantes e guardando-as de novo onde podiam acomodar-se aos poucos em sua elasticidade pulsante, a jovem mulher levantou-se de sua cadeira de balanço, concentrando-se em recrutar novamente a vivacidade de seus músculos para que a ajudassem na tarefa que estava por vir. E, segundos depois, ela corria.
               A água da chuva que caía em gotas grossas condensadas alto em algum ponto no céu acima atacava-a impiedosamente enquanto ela corria. Seus longos cabelos ruivos ensopados não tardaram a pesar atrás de si e insistirem em agarrar-se ao seu rosto, tapando-lhe parcialmente a visão, mas ela não deixou-se incomodar por isso. Seu vestido vermelho de algodão com arabescos azuis e verdes, como se autoconsciente de algo que estava por vir, tratou rapidamente de sorver toda a água que lhe fosse possível, pesando infinitamente mais do que qualquer dia tenha pesado, mas a mulher não se incomodou de carrega-lo com o peso que fosse rumo ao oeste para onde corria. Nada podia pará-la, pois ela tinha em si a determinação de correr até o horizonte onde seus pensamentos outrora materializavam-se, e encontra-los e então decidir qual o próximo passo a ser tomado. Ela corria por si mesma e, pelo que nunca teve certeza de existir, continuou a correr.
               •
               Gostaria eu de saber que acontecera à jovem mulher dos cabelos vermelhos que corria pelo campo. Talvez esteja lá mesmo até hoje, correndo infinitamente rumo a um horizonte sobre o qual não é possível definir a alcançabilidade. Talvez tenha caído e se machucado, ou talvez alguma víbora a tenha atacado e paralisado com seu veneno e ela, em sua perene existência, esteja paralisada para sempre, caída em sua grama que se estende infinitamente até onde a vista consegue alcançar e mesmo além, interrompida no meio de uma corrida que resumiria sua vida, impossível de ser encontrada por alma qualquer que a possa tirar dali. Tivesse acontecido isso, tivesse seu rosto sido petrificado eternamente numa direção qualquer, achas tu que ela choraria? Achas que a serenidade e a plenitude um dia retornariam ao seu rosto níveo? Ou teria ela sido congelada em sua expressão determinada, tal qual um soldado morto em guerra?
               Decide tu o que melhor pensas que arremata a história. Como era no passado e como uma vez mais torna a ser, a mim só cabe inferir.
1 note · View note
amongstbeards · 8 years ago
Text
Janelas esverdeadas que se abrem para a amplidão da noite, iluminada por uma lua cheia pródiga em seu brilho que, a despeito de abundante, é engolido pela mata densa da floresta ao redor. “Ela” acorda. Ela.
Na sapiência profunda que se perde no vórtice verde de seus olhos cansados fulge um aspecto diferente. Ela tem consciência de que é chegada a hora de que seus hábitos diuturnos que há tanto já se enraizaram na essência de seu próprio ser, muitas vezes caracterizados pela rotineira falta de rotina, pelo avanço incontrolável e inconsequente na direção de conhecimentos profundos, profanos e escusos, pelo aperfeiçoamento e refinação de seu mimetismo espiritual, sua magia pessoal e sua técnica sublime, que é chegada a hora de dispor de todos eles, de banhar-se em águas diferentes e provar de novos frutos.
Mesmo com suas raízes correndo por insondáveis profundezas abaixo do solo, ela fora criada pelo vento, e sua leve e inebriante presença não podia ser amainada. Conhecedora dos segredos da água e adepta de seus conselhos, ela sabia perfeitamente de tudo o que deveria ser feito. Aliás, ela sabia perfeitamente da maioria das coisas, embora talvez não soubesse disso. Em sua concepção, ela apenas sabia, e isso lhe era longe de suficiente.
Desapressada e maneira, ela levanta-se enfim e passa por seus rituais de mudança, desapego, transformação. Apesar de envolverem sentimentos de notório afeto, ela sacrifica seus interesses imediatos pelo destino ao qual lhe fora dada a consciência de pertencer. A brisa da noite acaricia sua pele nívea enquanto ela se despe de seus pesados robes, um gesto de carinho de uma natureza que aprendeu a conviver com aquela mulher, que aprendeu a retribuir-lhe as benesses que dela havia recebido. A água pura e fria do rio onde ela aos poucos adentra, entretanto, em nada abranda a sensação súbita, comum e humana da dificuldade de expandir os pulmões quando se sente tanto frio, mas a maga não se abala em seu propósito. A água era mãe, e como mãe havia de ser impassível e educadora, e a própria mulher sabia disso, assim como sabia que era capaz de suportar a provação sem recorrer a meios quaisquer que lhe eram lícitos, e sabia também que, não importando o que acontecesse, a terra onde tinha suas raízes também era presente por debaixo daquela e de todas as águas. E na calada da noite, no meio de uma floresta em algum canto de algum mundo, uma mulher atravessa águas geladas de um rio impassível, e ninguém mais em qualquer mundo que seja sabe deste fato pois a ninguém mais é facultado saber.
Do outro lado do rio, com a pele arrepiada pelo frio e os pelos eriçados com a brisa que continua a soprar, agora não tão agradável quanto antes, a determinação daqueles olhos verdes de conhecimento profundo e universal esmaeceu por poucos segundos num grau ligeiramente perceptível. Ela estava pronta.
Sua jornada dali para frente seguiria por caminhos tortuosos onde não era possível precisar os desafios que lhe seriam apresentados, mas ela estava preparada. Ela sabia, no fundo de si mesma, na mais sólida base de seu próprio ser que, acima de tudo, ela estaria consigo mesma. Seus modos e meios refinados e sua sabedoria incompreensivelmente remota seriam incompreendidos por qualquer alheio; sua solidão era consignada como marca de nascença. Ela levava dentro de si os códigos, os tomos e os tratados que a constituíam, e neles residia todo o recurso necessário para que ela pudesse afirmar-se plena e suficiente sobremaneira. 
Como uma gigantesca cicatriz interna dentro de seus pensamentos fulgurava a certeza de que ela estaria só, mesmo que estivesse entre os demais, como aquele poeta um dia preconizara ser a mais profunda concepção de um fato que ele não sabia ser a origem da perdulária propriocepção.
A determinação voltou a fulgurar em seus olhos. Ela não se importava.
Ela estava pronta.
0 notes
amongstbeards · 8 years ago
Text
É assombrosa como a analogia de barcos e mares sempre acaba por ser apurada, e a constatação de tal fato me alegra ao pensar na poesia mágica das ondas sobre as quais tal alma radiante uma vez cantou.
Pois é no meio dessas águas revoltas, que se debatem quando o mar fica agitado, que segue uma pequena jangada. Um pequeno conjunto de bambus amarrados, algum apetrecho que conforte a viagem e um singelo mastro que ostenta uma bandeira branca feita de trapos, já um tanto surrada e encardida pelo tempo, e nisso segue a singela embarcação, desbravando corajosamente os mistérios náuticos dos confins do mundo, ou antes fosse. O fato é que todo barco e todo capitão, por quanto mais se adore a viagem ou mesmo a paisagem, todos esperam por encontrar terra firme onde aportar, e o pequeno capitão desta jangada à deriva não é diferente em nada de qualquer um deles.
Não penses, leitor, que esse oceano não é populado de forma alguma, ou que não há terra firme a nenhuma vista, pois muito pelo contrário. Há, até onde a curvatura do planeta permite observar, embarcações de todos os tipos e tamanhos e, igualmente até onde o horizonte de assoma, ilhas e ilhotas suficientes para que se instalem cidades e vilarejos nelas. O que importa neste universo, o que naufragou navios, destruiu ilhas, assassinou tripulações e até mesmo despertou criaturas ancestrais que aguardavam em repouso presumivelmente eterno debaixo das águas é nada mais do que a sensatez da capitania.
O capitão desta jangada acorda todos os dias sobre o balanço suave das águas por onde navega destramente - pois, a despeito do tamanho de sua embarcação, ele ainda consegue escolher os melhores caminhos, traçar os melhores rumos invisíveis por sobre o tapete azul que recobre tudo à volta - esse capitão acorda todos os dias para observar o destino dos navios que cruzavam ao seu entorno na noite passada. Primeiro, ele conta os navios que naufragaram na noite anterior, esperando o dia que seus capitães retornaram em novas embarcações; em seguida, ele observa aqueles que aportaram às ilhas quais ele escolheu evitar, pois ele sabe, pelo que se conta e pelo que se vive, que tais ilhas, tais frívolas sensações de terra firme, oferecem senão a efêmera impressão de que é ali que se encontrará um motivo para não se lançar às águas novamente, e ele anota os capitães que aportaram e suas naus, esperando o dia em que eles acordem, numa suja instalação de uma hospedaria qualquer, e, sentindo-se meio vazios com o luto de uma vida que não se consegue alcançar e chorosos ao perceber com seus grandes olhos dilatados que os cacos de sua existência quebrada talvez não se unam novamente com perfeição, decidam-se por voltar a navegar, resolutos com uma súbita determinação (igualmente efêmera) a voltarem a descansar apenas naquelas ilhas que não afundem em si mesmas; por fim, o menino-capitão apenas observa aqueles que ainda continuam a navegar, presumindo aqueles que aportarão às ilhas tão logo achem uma que lhes apeteça e aqueles que naufragarão dentro em pouco, seja pelo confronto com outras naus, seja pela sensata decisão do capitão ou mesmo pelo terrível motivo de ser esta a última opção restante à tripulação; ele não anota, mas ele sabe aqueles que observam sua jangada, que questionam seus motivos de não se contentar com ilhas efêmeras, que o ridicularizam por perseguir uma terra da qual não se tem notícia há eras e que não reconhecem suas acertadas decisões de navegação por águas calmas, mesmo que representem grandes desvios dos rumos comuns a todos. Ele observa os olhares distantes que estes capitães lançam em sua direção, o desdém a respeito das suas qualidades de navegador, a subestimação e as poucas expectativas que se tem a repeito dele, mas ele limita-se a guardar seu bloco de anotações e seu diário de bordo, ajoelhar-se à beira de sua jangada e lavar o rosto com a água salgada.
Já são idos os tempos em que ele decidiu procurar o continente, e é igualmente esquecida a época em que primeiro queimou dentro dele a determinação de confiar em si mesmo e seguir resoluto em seus propósitos. Todos os dias ele lamenta por não poder ajudar aqueles capitães que seguem sendo anotados em seu caderno, mas não há mais nada que ele possa fazer. Na declaração que aquela alma radiante certa vez fez, seguem eles prisioneiros de navios onde podem embarcar, porém não orientar.
Quando a água cessa de escorrer de seu rosto, seguindo apenas a sensação de frescor das gotas que lentamente sublimarão de sua pele, o pequeno capitão levanta-se novamente, volta-se enfim para o norte e ocupa-se de navegar, pois foi antes dos tempos que já são esquecidos que ele aprendeu a lição mais preciosa de todas as lições náuticas: é para frente que se deve navegar!
2 notes · View notes
amongstbeards · 8 years ago
Text
Naqueles mundos esquecidos onde coisas acontecem indefinidamente para sempre, onde há a espécie e sua proteção para indivíduos em suas curtas vidas limitadas e onde tanto mais existe e é dito porém não conscientizado, naqueles mundos há também um menino. Vagueando pelas ruas e estradas e escadas e caminhos por onde todos passam e hão de passar um dia, no rumo natural de tais navios embarcados e incontroláveis, nesses lugares corriqueiros e comuns, onde nada de extraordinário é esperado que aconteça, é ali que você encontrará este menino. Com olhos que expressão uma compaixão imensurável, com o peito constantemente em brasa pelo amor às coisas que se amam, trocando as pernas consciente de todas as referências a que esse simples ato se relaciona, sorrindo feliz e contente com sua ocupação de vagar, o menino anda e só. Em tempos, seu rumo é em direção à própria casa, onde ele descansará e terá a paz plena de poder deitar confortavelmente numa cama que nunca estará desfeita; em tempos, seu rumo é no sentido contrário, por caminhos escusos e tortuosos que nem ele e nem ninguém sabe onde acabarão, inexplorados e indesejados que são. Estranhamente, não obstante seu objetivo seja volátil e inconstante, ele sempre segue em frente, nunca fazendo retornos.
Os passantes do caminho o observam com seus sentimentos oblíquos e místicos. Aqueles irrequietos e entristecidos se aproximam dele com sua existência partida, convencidos a aproximarem-se pelo olhar convidativo com que o menino os observa (e sempre observa), e nele se agarram e levantam e, consertados o suficiente para que possam trocar as próprias pernas, por fim voltam às suas próprias peregrinações. Aqueles cuja existência completa já transborda por sobre os limites da própria consciência, magnetizados pelo andar confiante e pela solenidade da missão esperançosa do andarilho, aproximam-se para observá-lo, e sobre esses já há espetáculos que os descrevam bem o suficiente. Os estudiosos cartógrafos que caminham como desbravadores do próprio caminho, seres encarregados do autoconhecimento do universo, eles esbarram no menino vez ou outra em suas infinitas idas e vindas aos limites do mundo, e com ele descobrem as insondáveis e hediondas experiências que se tem quando o caminho não acaba. Ele próprio, entretanto, talvez nem perceba tudo o que acontece à sua volta e quantos dos outros peregrinos o seguem ou já o seguiram por um motivo ou outro, mas ele anda.
Este menino anda e continuará andando pelo tempo que for necessário, seguindo com sua missão imaginária de enfim chegar a algum lugar onde algo - ou alguém ou algo e alguém - o aguarda. Ele anda, corre, tropeça e se levanta para continuar a seguir, sempre com a mesma expressão e a mesma determinação de se chegar ao lugar final.
Ouço falar de suas andanças como uma grande lenda universal e espero um dia poder encontrar tal figura persistente, ouvir suas histórias e convencê-lo a descansar as pernas cansadas que já se movem por conta própria desde que entenderam a complexidade de tal fato, mas penso então que tais desvios talvez signifiquem sacrifícios inacreditáveis para ele, se é que algo realmente tem significância em sua igualmente curta e limitada vida de trocar passos. Realmente, no final do dia ele é apenas mais uma das criaturas características desses mundos por onde um dia todos nos encontraremos. E quem sou eu para inferir coisas sobre o menino, senão um cego voluntário que não consigo nem mesmo chegar a um destino qualquer antes da tarde desse dia que já se iniciou há infinitos?
Como criaturas dessa mesma fauna inexplorada, cabe a ti apenas dar-nos a maior honra que podemos esperar. Ignore-nos.
1 note · View note