alexantunes
Alex Antunes
54 posts
Jornalista, escritor e produtor musical
Don't wanna be here? Send us removal request.
alexantunes · 8 years ago
Text
Pós-verdade e esquerda
Tumblr media
 Uma vez aprendi com um xamã siberiano que, ao contrário do que supomos, o “rio da vida não corre do passado para o futuro, mas do futuro para o passado”. E por que? Porque, cedo na vida, estamos com todas as possibilidades de futuro abertas. Conforme o tempo passa, vamos nos apegando à nossa própria história, e reduzindo a percepção de possibilidades, que se afunilam rumo à morte. Ou seja, nascemos no futuro, morremos no passado.
Carlos Castañeda tem um esquema sutil para descrever os quatro inimigos do homem em busca de conhecimento, que de alguma maneira se relaciona com esse rio. O primeiro deles é o medo (de nos colocarmos em movimento); e, para Castañeda, o medo pode ser transformado num aliado, quando tomamos consciência dele. O segundo, a clareza – que adquirimos ao superarmos o medo e nos posicionarmos melhor no mundo. Porque a clareza é uma inimiga? Porque ela pode se transformar em vaidade, em isolamento, em desequilíbrio, no medo em um novo grau, inclusive.
Terceiro inimigo é o poder. Superados o medo e as dificuldades da clareza, algum tipo de poder é conquistado, e ele trará novas provas e tentações. O poder corrompe – não é nada difícil entender isso aplicado à política. O último inimigo é a velhice, e essa alcança a todos, tenham eles superado ou não os inimigos anteriores. A vitória contra a velhice – e aí esse pensamento converge com o do xamã – é não deixar seu espírito ser abatido. O corpo se curva à decadência física, o espírito não necessariamente.
Lembrei disso lendo um texto de Eliane Brum, O Amanhã Não Pode Ser Apenas Inverno, em que ela diz que o mal estar da humanidade atualmente projeta sofrimento e distopia. As escolhas políticas que são feitas, aqui e no mundo (Brexit, Trump), parecem traduzir muito mais receios do que otimismo. É como se estivéssemos coletivamente encalhados no nível do primeiro inimigo (medo), sem esboçar o menor empenho em passar ao segundo (clareza), muito pelo contrário.
Seria a época da pós-verdade, em que há muito mais demanda de certeza – mesmo que sejam certezas falsas – do que de espírito aventureiro. E como chegamos a esta época de covardes, infelizes e ressentidos, ansiando por soluções autoritárias e mesmo violentas (repressão, ditadura, tortura, enunciadas em vários discursos “vencedores”)?
A minha percepção é de que essa não é uma vitória da “direita” (ou seja, as forças crentes no primado do dinheiro, de deus, ou de ambos), mas numa profunda incompreensão de quem se julga de “esquerda” a respeito de seu papel. Que seria o de críticos dessa noção de crentes e de primados, mas que acabou virando algo parecido. Houve, no século passado, um momento muito interessante, na virada dos anos 60 para os 70, em que a esquerda de tradição marxista se sincronizou com um poderoso movimento de liberalização dos costumes.
Em seu texto, Eliane Brum lembra que a belle époque (que vislumbrava um futuro radioso) foi sucedida pela matança da primeira guerra mundial. Inversamente, foi a segunda guerra, e a derrota do projeto nazista (extremamente formal e regrado), que parece ter liberado as energias sociais que explodiriam no período da contracultura, na forma de música e outras artes, vida comunitária e imaginação liberada.
Claro que essa acoplagem de “esquerdas” não fazia muito sentido. Por que cargas d’água um cineasta revolucionário da narrativa como Godard se consideraria maoista – e isso bem no momento em que o regime de Mao aniquilava a oposição interna com a assim chamada Revolução cultural, de cunho anti-intelectual, e que incluiu até a morte de animais de estimação.
Ou a transformação de Che Guevara em herói mundial e depois em meme – isso enquanto o próprio se perdeu em movimentos cada vez mais voluntaristas, românticos e erráticos, tentando exportar o modelo da tomada de poder cubana em contextos em que ele absolutamente não se aplicava, como o Congo ou a Bolívia (com desdobramentos em várias guerrilhas, inclusive a do Brasil).
Guevara morreu melancolicamente encapsulado em sua fantasia revolucionária; o filme Che 2: A Guerrilha (2008, de Steve Soderbergh), mesmo que simpático a ele, reconstitui o caráter quase alucinatório desses episódios finais de sua vida, e o papel pateta e perigoso de um intelectual francês como Régis Debray, que mesmo assim continuou sendo considerado um especialista em revolução (ele assistiu de perto a mais um colapso socialista, o do governo Allende no Chile, antes de voltar, garbosão e teoricamente prestigiado, à França).
Claro que, na época da contracultura, esses paradoxos não pesavam muito – na verdade era tudo um mash-up bem descarrilhado de política, sexo, arte, ginga e magia. O que importava era a sensação de que havia uma utopia em plena explosão fractal. Da qual nem o socialismo real escapava, como no episódio da Primavera de Praga (devidamente esmagada pelo pragmatismo soviético).
O fato é que, mesmo após o colapso desse “socialismo real” (mais realista do que propriamente socialista), entre a queda do muro de Berlim em 1989 e a dissolução da União Soviética, em 1991, os ideais e conceitos ligados a ele se mantiveram. E se recombinaram, num novo mash-up, não com os maluquetes experimentalistas sociais hippies, mas com os atuais hipsters, cultuadores de simbologias superficiais e de ativismos unidimensionais e não-ácidos.
Gente que, ao contrário dos antigos contraculturais, não despreza ou repudia as instituições tal como elas se apresentam, mas acredita que é possível “contaminá-las” com simbologias positivas – por exemplo, festejando a narrativa pró gay em novelas de tv e anúncios comerciais. Assim, se mantém o fetiche da “revolução dos trabalhadores”, e de suas lideranças, mas ao mesmo tempo se dirige toda a energia política para embates superestruturais, “lacrativos”.
Sem checar quem é que está lucrando com isso (no caso desse exemplo, a tv da novela, o anunciante “friendly” e, sempre e em escala gigantesca, as redes “neutras” onde se dão esses embates simbólicos). O engraçado é como as próprias lideranças dos trabalhadores foram atraídas à armadilha, passando a acreditar piamente em truques de marketing como substitutos da organização social.
Neste texto chamado Trump: o Resultado da Desconexão da Mídia e da Elite com a Sociedade, o jornalista Cassiano Gobbett faz uma análise bem embasada de como a intelectualidade se transformou numa espécie de cristandade laica (o termo é meu), alucinando esse “caminho do bem” que conduziria inevitavelmente à implantação (note a tripla contradição de termos) da utopia social. Que a desconectou da experiência real e sofrida (meio hipocondríaca, eu diria) do homem médio, alimentando o ressentimento cada vez maior deste.
“Esse ressentimento ‘não-radical’ não é partidário, é horizontal. Características mais comuns: working class, masculino e com idade maior que 35 anos, normalmente alvos da retórica agressiva da mídia ‘progressista’ e ligados a estereótipos negativos como racismo, ignorância, sexismo, gun lovers, environment haters e assim por diante. Só que não entenda mal: esse não é o perfil do grupo, mas só um retrato dele. O preconceito e incompreensão que esse grupo sofreu foi o maior cabo eleitoral que Trump poderia ter desejado”, diz Gobbett.
Esse eleitorado, tratado como “cesta de deploráveis” por Hillary Clinton (que deveria era estar tentando compreendê-lo e disputando o voto dele, ao invés de negá-lo), é o mesmo eleitorado ridicularizado como “pobres de direita” no Brasil, ou alienado na votação do Brexit, que acabou por criar um problemão (ainda sem solução) na economia europeia. Ora bolas, se há eleições, o lado que se crê o bom e o justo sempre pode perdê-las – e dá até um gostinho troll em derrotá-lo, em sua arrogância “do bem”.
Essa estranha “esquerda” que nem rala no convencimento, e nem se entrega ao dandismo niilista, preferindo desenvolver um pensamento mágico-religioso de que simplesmente não pode ser derrotada (seria uma faceta da clareza e do poder distorcidos, tal como descritos por Castañeda?) é a fonte do atual pessimismo. Foi ela que criou um enorme vazio político, prontamente ocupado pela hoje bem-organizada direita (ralante, e principalmente transante, segundo Pedro D’Eyrot, o animador do MBL).
A tese de D’Eyrot é que hoje a esquerda não está pegando ninguém – nem sexualmente (o que já foi o seu charme de centro acadêmico). Se pensarmos nessa esquerda paralisada por sua crença na própria virtude, produto datado de um século que já acabou, faz todo sentido. A direita é hoje – no mínimo por esse fator trollador, tão caro à nossa época – mais sexy.
Eu tento abordar, neste texto, O fim de uma estranha convergência entre o culto stalinista à personalidade e o hipsterismo OU PT, a agonia do século passado, o que acontece quando a certeza de esquerda vira religião. E, particularmente, quando um tiozão de churrasco conciliador (genial sim, mas ainda assim tiozão de churrasco) como Lula é alçado à posição de semideus hipster.
Voltando ao início do texto: o que cria o ambiente de “pós-verdade” é a demanda de certezas doentias, mais do que de dúvidas saudáveis (lembram o que aconteceu com a sincera vocalizadora de incertezas Marina Silva, na eleição de 2014?). Pós-verdade por pós-verdade, a pós-verdade dos cínicos, ao estilo Trump (ou Boris Johnson, ou Crivella) é a pós-verdade pro.
Certeza descabida por certeza descabida, a certeza “de direita”, francamente opressiva, sai levando vantagem. Ou, em outros termos, se você tem os trambiqueiros de verdade à mão, por que acreditaria numa imitação boazinha e cor-de-rosa do trambique? Tem a ver com aquele que é talvez o maior bug moral humano: o que faz os cafajestes mais sexies.
Siga-me no Twitter (@lex_lilith)
4 notes · View notes
alexantunes · 8 years ago
Text
“Parem de cantar Hallelujah”, OU Leonard Cohen: escolhas éticas e estéticas
Tumblr media
O nome de Leonard Cohen foi muito lembrado, quando da indicação de Bob Dylan ao prêmio Nobel, como outro eminente compositor-literato. De fato, quando Dylan começou, Cohen já era um laureado poeta e romancista canadense, cujas finanças não iam lá muito bem.
Em suas andanças entre Montreal, Nova York e a ilha de Hidra, na Grécia (onde morou e conheceu sua mais famosa musa, Marianne), Cohen, já depois dos 30 anos, começou a arquitetar uma carreira de cantautor. Uma categoria impulsionada por Dylan, que apresentava os próprios compositores como seus mais adequados intérpretes (novidade no início dos anos 1960).
Autodidata no violão, ao mesmo tempo em que emprestava um senso de musicalidade aos seus poemas, Cohen descobriu como emprestar um certo rigor e inventividade formal às suas composições. Beautiful Losers, seu romance meio maldito de 1966, tinha sido escrito em um período de adição às drogas (álcool, LSD, haxixe e principalmente anfetamina, que não bate com seus modos contidos).
E, de certa forma, liberou Cohen para imaginar algum paralelo entre ele mesmo e a tradição beat, ou o grupo vanguardista da Factory de Andy Warhol e da fauna do Chelsea Hotel, arrancando-o de vez do psiquismo acadêmico canadense. Não que essa conexão não existisse – Nico foi outra de suas musas, e intérprete (e, segundo Andy Warhol, influência de seu estilo vocal “frio”); mas Cohen gostava de pensar em si mesmo como um stranger (na dupla acepção de estrangeiro e estranho).
Não que a transição tenha sido fácil. Mesmo com o apoio de uma empresária entusiástica e bem relacionada, de uma intérprete famosa e igualmente generosa com ele, Judy Collins, e com alguns admiradores na direção das próprias gravadoras (que então não era tão tacanha como viria a ser, décadas depois), Cohen passou por momentos tensos no palco, e nos estúdios de gravação. Um caminho mais fácil seria se aceitar como compositor de sucessos alheios mesmo (o que nunca deixou de ser). Nina Simone, por exemplo, já cantava “Suzanne” em 1969.
Sempre se soube que Cohen teve divergências tanto com o primeiro produtor de seu disco de estreia, John Hammond, quanto com John Simon, que o substituiu. Aparentemente, Cohen queria algo mais que a simplicidade oferecida por Hammond, mas algo mais esparso que os arranjos um tanto convencionais do segundo. O disco é um marco, com músicas como a citada “Suzanne”, “So Long, Marianne” e “Sisters of Mercy”, num registro folk.
Mas o que a biografia de Sylvie Simmons, I’m Your Man, de 2012, enfatiza, tirada de uma entrevista para a Billboard em 1998, é uma espécie de furo de reportagem, que deixaram passar. Depois de quatro meses de trabalho com Hammond, o que Cohen queria achar para o acompanhamento da música “The Stranger Song” (que é movida por uma espécie de dedilhado flamenco) era “o som de um pneu no chão molhado, uma espécie de zumbido harmônico”.
Cohen teria então entrado em contato com fabricantes de sintetizadores em Nova York, isso em meados de 1967, antes de romper com Hammond. (A versão final do disco combina material com os dois produtores e overdubs dirigidos pelo próprio Cohen, incluindo uma coda meio bizarra para a última música, como se fossem bêbados cantando num bar).
Chamo a atenção para essa busca timbrística/ de ambiência porque, a partir de 1988, quando Cohen finalmente aderiu aos sintetizadores – exatamente quando tomou conta da própria direção de produção –, criou uma espécie de patamar estilístico, que o traria até o final de seus dias. Mas falarei disso mais adiante. Aqui uma belíssima análise da trajetória poética e literária de Cohen por Martim Vasques da Cunha, e uma simpática memória de meu amigo Guen Yokoyama de sua descoberta do “bardo” em filmes de Herzog e Altman, no começo da década de 1970.
Em seu texto, Vasques da Cunha considera os primeiros quatro álbuns, Songs of Leonard Cohen (1967), Songs From A Room (1969), Songs of Love and Hate (1971) e New Skin for the Old Ceremony (1974) a obra suficiente do compositor, a súmula de sua busca dolorosa pelo fugaz território de intersecção entre o sexual e o sagrado – e toda a tensão existencial. Diria eu, um moderno Salomão, burilando até a perfeição o seu próprio Cântico dos Cânticos terrorista, num estranho embate com as palavras, até arrancar verdade delas. Vasques da Cunha acha que o resto de sua carreira poderia ser movido por “chutzpah, a arrogância sublime que envolve todos os messias possuídos pela questão judaica”.
Já eu, apesar de concordar com a premissa da qualidade do repertório desses primeiros álbuns (que incluem canções como “Bird On a Wire”, “Avalanche”, “Famous Blue Raincoat”, “Chelsea Hotel No. 2” e “Who By Fire”), me interesso exatamente o que acontece com o homem depois. Porque a graça da coisa não é apenas a ética nos textos, mas (talvez principalmente) a “ética pop” (se me permitem o termo) do que fazer com a própria credibilidade, para além de ser um compositor dos compositores.
Numa comparação mais óbvia, a com Dylan, Cohen de alguma maneira parece mais exigente com seu público – ou apenas mais incerto de seu papel. O primeiro disco ficou abaixo da linha dos 100 mais vendidos nos Estados Unidos, mas emplacou um 13º na Inglaterra – nos próximos discos, essa incompreensão nos EUA se manteve, e até se enfatizou. Em uma de suas primeiras entrevistas de divulgação, definiu-se como “um anarquista incapaz de jogar a bomba”.
A imagem de agitador hesitante não é totalmente descabida; Cohen, como um Hemingway vacilão, conseguiu estar em visita a Cuba exatamente durante a invasão da Baia dos Porcos, em 1961, e apenas fugiu de lá, desidentificado de ambos os lados. O sangue com que Cohen escrevia era o do coração partido, não baleado. E seus hormônios estariam sempre mais a serviço de uma dama do que de um exército. Mas até as mortes reais são mortes simbólicas, e é disso que suas letras tratam.
Uma estranha divisão se impunha: o rigor das palavras (as das letras, e as dos livros de poesia que continuou publicando) estava lá, mas a vida real, especialmente nas turnês, estava contaminada pela vacuidade da vida de celebridade. Um verso de The Energy of Slaves, livro publicado em 1972, sintetiza o paradoxo: “Não me restou mais talento/ Não consigo mais escrever um poema/ Pode me chamar de Len ou Lennie agora/ Como você sempre quis”. Como anota Sylvie Simmons em sua biografia (Ed. Best Seller, 474 pág.), “uma honestidade brutal (...) Revisitada hoje, quase parece poesia punk”. Alternando Mandrix e jejum ritual, Cohen declarou numa entrevista à época : “Você não pode se sentir importante e escrever bem (ao mesmo tempo)”. O resultado desse embate interno foi definido pelo jornal The Guardian, falando da turnê do quarto disco, como tendo “um calor soturno”.
É em New Skin for the Old Ceremony que o som de Cohen, até então uma mistura basicamente descarnada de folk e country (fora uma ou outras idiossincrasia, como dedilhados mais passionais ao violão, o zumbido da jew’s harp e os backings femininos), ganha uma certa “joalheria”, em colaboração com o jovem arranjador John Lissauer. Também é nele que se inicia a parceria com a engenheira de som Leanne Ungar (uma das raras mulheres então na profissão), que se estenderia até 2012. Ao mesmo tempo em que sua voz se torna mais confortável, suas letras se tornam mais sarcásticas – como em “Field Commander Cohen”, que ironiza sua atração por situações de conflito (Cuba, Israel, Etiópia).
A ilustração de capa, que lembra anjos transando, é uma representação alquímica do coniunctio entre animus e anima, os princípios feminino e masculino – e é a primeira que não traz uma foto sua. “Who By Fire”, canção que seria relida pelo grupo experimental-ocultista Coil, é baseada numa enunciação judaica das formas pelas quais as pessoas vão morrer – culminando com a pergunta (não respondida) de quem é que comanda esse ciclo.
Foi por essa época que Leonard Cohen se aproximou de duas pessoas que quase acabaram com sua carreira – por razões opostas. Joshu Sasaki Roshi foi o mestre zen que o conduziu no caminho do budismo – mesmo sem abandonar o judaísmo. E o produtor Phil Spector, com quem gravou seu próximo álbum, Death of a Ladies’ Man, foi o paroxismo de sua época de excessos. Já completamente destemperado, Spector (que seria acusado de homicídio e preso em 2003) portava armas no estúdio, e chegou a ameaçar um músico. O produtor “roubou” o álbum, mixando-o à revelia, e o disco acabou renegado. De fato, o disco tem uma sonoridade inadequada, que descontextualiza totalmente a voz de Cohen, e acaba por matar algumas de suas melhores letras.
Essa experiência colocou em risco sua relação com a indústria. Isso ainda que seus dois álbuns seguintes, Recent Songs (1979) e, particularmente, Various Positions (1984), sejam bastante dignos. É nessa época que se firma o registro mais grave e maduro de seus vocais, e os arranjos ganham toques jazzy e étnicos, com toques ciganos, mediterrâneos e orientais. Também começam a se estreitar os laços com uma das cantoras das turnês do começo da década, Jennifer Warren, com quem divide os vocais no disco de 84. Na turnê europeia de Recent Songs, se juntaria a ela outra vocalista e colaboradora importante, Sharon Robinson. As gravadoras e mesmo o público não perceberam, mas Cohen estava entrando em uma grande fase.
O engraçado é que, para Various Positions, conta o produtor/ arranjador Lissauer, que foi chamado de volta (depois de ter sido preterido por Spector), Cohen deixou de compor no violão, e passou a compor num teclado Casiotone barato. Mas que definitivamente liberou sua inspiração. “Dance Me To the End of Love”, linda música que abre o disco, e que é normalmente tomada por uma canção de amor, na verdade é inspirada pela história de uma orquestra em um campo de concentração, que tinha que tocar enquanto os outros prisioneiros iam para a morte nas câmaras de gás. O Casiotone, quem diria, foi determinante no estilo de composição.
Também é o disco de “Hallelujah”, composição para a qual, ao longo de quatro anos, Cohen escreveu uma centena de versos. A canção não estourou imediatamente. John Cale conta que, seis anos mais tarde, quando a conheceu em um show e pediu a letra inteira a Cohen para escolher os versos que ia gravar (ele e Jeff Buckley que jogaram essa música no mundo), recebeu no fax um longo rolo de papel – e eram apenas 15 dos 80 versos que o autor preservou.
Na turnê de Various Positions, mais uma colaboradora feminina se integrou ao time, a jovem cantora e tecladista Anjani Thomas. No futuro, ela seria namorada de Cohen, e ele seu colaborador em um disco. Various Positions só saiu nos EUA por um selo pequeno – a Columbia o recusou, assim como recusou fazer um single de “Hallelujah” (que era a indicação de Lissauer). A insistência de Cohen em fazer as coisas a seu modo aparentemente tinham “matado” Cohen para a indústria – pelo menos nos EUA.
E eis que, de repente, era a integridade artística dele que começava a render dividendos. Começou a ser citado por então artistas novos de sucesso, como Ian McCulloch do Echo & the Bunnymen, Nick Cave do Birthday Party (que abriu seu primeiro solo com uma releitura ainda mais intensa de “Avalanche”, entrecortada pelos ruídos de Blixa Bargeld na guitarra) e Suzanne Vega. O Sisters of Mercy, nome retirado do título de uma canção sua, ainda tinha a bateria eletrônica Doktor Avalanche. Nos próximos anos, uma série de álbuns-tributo a Cohen seriam lançados, adicionando gente como o R.E.M. e os Pixies aos seus cultores. Jennifer Warnes lançou seu próprio disco de composições de Cohen, incluindo inéditas como “First We Take Manhattan”, com guitarra de Steve Ray Vaughan, e foi um sucesso (aqui, em outro texto de seu blog, Guen fala dos seus intérpretes do canadense).
A mim particularmente interessam as leituras que exploram a dimensão mais misteriosa de Cohen, como a já citada “Who By Fire” pelo Coil, ou a “Avalanche” de Cave. Na edição desta semana do meu programa na Better Web Radio, que gravei antes de saber da morte de Leonard Cohen, eu toco essas duas, e mais uma inusitada versão de “Hallelujah”, da qual falarei adiante  (também toco algumas gravações do próprio).
E então, de repente, do meio de sua renovada obsessão com sintetizadores e programações (combinados a ouds, violinos, bouzoukis, e a coros femininos impassíveis), Leonard Cohen emergiu com seu disco de maior sucesso. I’m Your Man, em 1988. A opção por essa estética poderia ser comparada a movimentos similares de compositores como Serge Gainsbourg, que tem seus próprios discos eletrônicos, o electro de Love On The Beat (1984) e o tecnopop de You’re Under Arrest (1987), ou Neil Young e o “pop mutante” de Landing On Water (1986).
Mas Gainsboug já se notabilizava pelas guinadas estilísticas chacoteiras (a anterior tinha sido o reggae), e Neil foi simplesmente considerado surtado – na verdade foi processado pela gravadora Geffen, por não se parecer com ele mesmo (!). Já Cohen tinha encontrado um trilho ao qual aderiu tão naturalmente que por ele conduziria o trabalho das quase três décadas seguintes, com mais seis álbuns de estúdio, entre 1992 e 2016.
A faixa de abertura de I’m Your Man é sua própria versão de “First We Take Manhattan”, que ele mesmo chamou de canção psicoterrorista, num arranjo totalmente tecnopop. Mas há também a ótima “Everybody Knows” (parceria com Sharon Robinson, e cantada com Jennifer Warnes, uma espécie de disco downtempo temperada com o timbre oriental do oud), a faixa-título (em que ele se oferece como um amante infinitamente mais aventuroso e interessante do que o ser pegajoso que Roberto Carlos descreve em “Esse Cara Sou Eu”), a sensacional “Tower Of Song”, e mesmo a programação de bateria eletrônica meio surtada de “Jazz Police” (outro dia me dei conta de que me lembra alguma programação de percussão de meu parceiro musical pós-punk, Akira S).
A capa de I’m Your Man, uma foto tirada por acaso na sua chegada à gravação do clipe de Jennifer Warnes para “First We Take Manhattan”, acabou sendo um achado. A banana que Cohen estava comendo simboliza seu estado à vontade, ao finalmente dominar uma época. E uma eventual alusão à banana da capa do Velvet Underground & Nico, da época em que ele era apenas um estrangeiro, e um estrangeiro platonicamente apaixonado, morando no Chelsea de Nova York e buscando seu caminho.
Em 1992, o álbum The Future seria o ápice dessa notoriedade de Cohen. A faixa-título, uma de suas canções mais abertamente políticas, encabeçou (com mais duas outras) a trilha de Assassinos Por Natureza, filme de Oliver Stone, em 1994. No mesmo ano, o diretor canadense Atom Egoyan atribuiu um significado muito especial a “Everybody Knows” em Exotica. Nos próximos anos, Cohen faria um longo retiro espiritual, e se tornaria monge. Mas sem ser esquecido pelo público, a sua obra continuando a caminhar sozinha, na forma de adaptações, edições de livros, gravações alheias, espetáculos especiais de homenagem e relançamentos, ou mesmo o lançamento de velhos discos ao vivo antes recusados. E, naturalmente, a interminável explosão de “Hallelujah”, gravada por mais de 300 artistas. Em 2001 e 2004 ele fez álbuns novos, o primeiro deles em parceria com Sharon Robinson. Mas houve um susto de percurso.
Foi no ano do segundo disco neste século que ele percebeu que sua empresária, Kelly Lynch, havia sumido com cerca de 13 milhões de dólares seus, ou seja, todo seu dinheiro. Ele tinha dado a ela procuração plena, na época do retiro. Depois de um período desgastante de disputa – no qual ficou claro que, mesmo com uma vitória jurídica, ele não recuperaria os seus bens –, a solução que se impôs, numa época em que vendagens de disco já não estavam dando tanto dinheiro, foi voltar a excursionar.
E, já que era para fazer, Leonard Cohen fez direito: shows de até três horas de duração, eventualmente até mais. Uma magnífica entrega para seu público, ainda mais vinda de um homem idoso, e propenso à depressão. Em 2009, com sua ética peculiar, concordando com um jornalista, disse que estava na hora das pessoas pararem de gravar “Hallelujah”. Não que não fosse uma boa canção, mas que a coisa havia passado do ponto (aqui uma também simpática matéria de Liv Brandão sobre o assunto). No meu programa, eu toco a de Samm Bennett, percussionista colaborador do guitarrista de vanguarda Elliot Sharp, que simplesmente ignora a melodia original – mas mantém toda a força das palavras.
E assim chegamos a 2016, e ao álbum You Want It Darker. Um tanto como Bowie e Blackstar, Leonard Cohen antecipa, comenta e ritualiza sua própria morte . Mas Bowie é um pagão, que busca brechas mágicas em sua própria história (a fase alucinada do Thin White Duke) para “costurar” magicamente sua saída de cena. E Cohen é um judeu ou, mais especificamente, um judeu budista. Com a mesma humildade e foco que buscou insistentemente a verdade em suas palavras ao público (ao ponto de numa turnê ficar bolando em devolver o dinheiro dos ingressos, nos shows em que não sentia essa “verdade” presente), ele se declara pronto para partir.
“Hineni, hineni/ I'm ready, my Lord” (aqui estou, aqui estou/ estou pronto, meu Senhor) diz ele, entre coros celestiais (quase fantasmagóricos, na verdade), no réquiem que compôs para si mesmo. Na usual cama de teclados, com uma voz roufenha já com um gostinho a outro lado, ele dá a última piscada do sagaz cronista da condição humana, que alcançou esse ponto de vista ao mesmo tempo irônico e compassivo.
Numa derradeira carta à querida Marianne, que morreu em Oslo no último dia 28 de julho, ele diz que, se ela esticar a mão para trás, poderá sentir a dele, a seguindo. Ele cumpriu a promessa – e há uma beleza nisso. Bom, Leonard, se você esticar a sua mão para trás, poderá sentir a de muitos de nós. Hineni, hineni.
Siga-me no Twitter (@lex_lilith)
2 notes · View notes
alexantunes · 8 years ago
Text
Dr. Cuca Beludo contra o Império do Mal
Tumblr media
A TV Globo, ao que consta, andou fazendo um esforço para tirar das redes sociais cópias do vídeo em que a jornalista Maria Beltrão lê no ar um comentário do internauta “Dr. Cuca Beludo”, sem se dar conta do trocadilho.
A reação parece desproporcional. Não foi a primeira nem será a última trolagem em que locutores caíram e vão cair – e até figurões como o ex-advogado geral da nação, José Eduardo Cardozo, que citou “Thomas Turbando Bustamante” na defesa de Dilma Rousseff (o jurista Thomas Bustamante existe mesmo, só que o nome do meio é outro, e Cardozo jogou a culpa no estagiário).
Evidentemente a televisão toda (não só a Globo) apanha feio do timing da internet. Mas meu amigo Jean Correa me lembra que o apresentador Sílvio Santos, dono do SBT, que é personagem de inúmeros vídeos virais de acidentes, constrangimentos, absurdos e imitações, nunca pareceu se incomodar, pelo contrário. Ele leva o maior jeito de gostar dessas coisas.
Se seo Sílvio tem uma qualidade, é a de ser um surfista do mal estar. Faz tempo que ele calibrou sua persona como uma espécie de sacerdote-bobo, capaz de absorver absolutamente qualquer vaibe, errada ou não – ao ponto de conduzir em público uma negociação de (seu próprio) sequestro, como se fosse um quadro. E na qual “engoliu” o sequestrador.
Como ele usa isso negocialmente é outra história – assim como no caso de Maluf, essa é uma qualidade que pode ser usada para outros objetivos. Mas a Globo (assim como parte de seus “comunicadores”, e o termo aí inclui os jornalistas) demonstra essa fragilidade que é ser uma superfície polida e profissional, mas que parece tão incapaz de lidar com desvios.
O assim chamado Padrão Globo de Qualidade, um conjunto de regras e costumes implementado como antídoto a uma certa tosqueira e ao improviso que imperavam no meio, garantindo inclusive a precisão da grade de programação (um hábito que seo Sílvio nunca cultivou, gostando de fazer terrorismo impulsivo em sua própria grade), veio associado também à megalomania e alguma paranoia.
O apelido da sede da rede, Vênus Platinada, querendo se atribuir qualidades femininas e glamurosas (aqui uma análise de 50 anos da rede pelo decano jornalista Alberto Dines), se refletiu na biônica figura da Globeleza, tão inorgânica e de gosto duvidoso como outras obras do designer Hans Donner. E faz parte de uma personalidade empresarial avessa à concorrência, ao acaso e ao acidente; que parece só funcionar bem quando as circunstâncias estão todas sob controle.
Eu costumo dizer, meio a sério, que não é o jornalismo tendencioso o verdadeiro problema da emissora, mas essa busca da hegemonia narrativa que passa, principalmente, pela ficção e pelo entretenimento. Na verdade, às vezes esses registros se misturam e contaminam. Como no caso em que o âncora do Jornal Nacional, William Bonner, estava se separando da ex-jornalista Fátima Bernardes (que considero pavorosa como apresentadora de variedades).
Bonner, que vinha investindo numa certa descontração, principalmente nas conversas com a “musa do tempo” Maju Coutinho, teve que parar durante um tempo de interagir com ela, para não mexer com a fantasia popular. Ele acaba de ser liberado para falar com a moça de novo. Outro caso sintomático desse pisar em ovos foi o da sincera reação de Sandra Annenberg, que chamou de “deselegante” uma intervenção contra uma entrada ao vivo da frente do hospital em que Lula se tratava do câncer. Como se a questão fosse a elegância.
Eu não acho que a Globo seja exatamente a causa dessa formalismo solene. Ela, por um lado, apenas substituiu a untuosidade cortesã que foi roubada do Rio por Brasília. E também se colou a um processo de civilização forçada do país nos últimos 50 anos, que substituiu progressivamente sua criatividade bruta e mal-diagramada por mais esmero no “acabamento”. O ápice disso, há uns anos, foi também o ápice de empresas, como a Conspiração Filmes e a gravadora Trama, em que a embalagem ficou mais importante do que o conteúdo (aparentemente esse pêndulo já está no movimento oposto).
Hoje há também na linguagem popular, não só na elaborada pela tv, vícios que denunciam essa percepção afetada. Como chamar qualquer erro ou displicência de “gafe” (que significa um engano que gera mal estar), e mesmo usar o termo para falhas propositais. Ou ainda dizer que alguém “humilhou” outra pessoa em situações em que apenas se manifestou alguma discordância – como se a contradição (a fuga ao roteiro linear) significasse em si mesma um constrangimento.
Na verdade, em ambientes criativos, não só os erros, improvisos, discordâncias (e mesmo constrangimentos) acontecem, como são parte natural e até desejável do processo. Curiosamente, um termo usado hoje recorrentemente para se sair bem em uma situação de enfrentamento, “lacrar”, vem da gíria da prostituição travesti, originalmente “lacrar o cu”. Obstruir o ânus de outrem, obviamente, seria um ato antinatural, e uma tortura. Creio que uma sociedade onde há o temor constante da “humilhação” e, ao mesmo tempo, onde se celebra a vitória (?) como a obstrução simbólica do ânus alheio, apenas mostra duas faces da mesma moeda.
Para Freud, em O Chiste e Sua Relação com o Inconsciente (1905), o humor é uma manifestação de inteligência. Freud gostava a sério de trocadilhos e brincadeiras de linguagem. Não o humor duvidoso do opressor contra o oprimido (lembrando que determinadas opressões se dão dentro do mesmo nível social), mas o humor que produz ruído, inquieta e desconstrói a coesão de realidade consensual.
Aqui, recorro ao professor Moysés Pinto Neto. Ele explica que o próprio conceito positivo de “desconstrução”, proposto pelo filósofo Jacques Derrida ao tratar de leituras possíveis e cambiantes (não forçosas) de mundo, foi apropriado pelos marqueteiros. E assumiu valor negativo, virando sinônimo de destruição – de novo como se a fixidez fosse desejável, e superior à dúvida empírica, e à dinâmica do processo.
Um bom exemplo político desse equívoco é a “desconstrução” de Marina pela campanha de Dilma em 2014, quando a acriana foi acusada de vacilante, inábil e isolada – exatamente as características que viriam a derrubar a própria Dilma. Não foi uma praga que voltou, foi praticamente uma confissão psicanalítica.
Podemos encarar a trajetória de Lula, Dilma e do PT no poder como um exemplo dessa síndrome brazuca publicitária, de tender a trocar o vigor bruto do conteúdo pelo brilhareco da embalagem, ao invés de refiná-lo. E notar que Lula colapsa exatamente quando se enxerga como um seo Sílvio (ou um Maluf) criador de realidades (e de postes, particularmente o poste-Dilma), mas sem a habilidade daqueles de surfar continuamente.
O “Lula simbólico” ficou tão maior que o Lula real que esse se embananou todo com as negociatas e as trocas de favorecimentos, ao ponto de derrubar/ inverter quase que totalmente seu prestígio memético (numa escala em que só se tinha visto antes acontecer com Collor).
É por isso que eu enxergo no Dr. Cuca Beludo um combatente contra o Império do Mal – e Império do Mal é entendido aí não como o “PIG” ou a “mídia coxinha” (até porque toda mídia vai ser coxinha, ou seja, conchavadora e argentária, em alguma medida). Mas contra as forças que investem numa leitura hegemônica medíocre, covarde e linear da realidade, apresente-se ela como sendo “de direita” ou “de esquerda”.
O Dr. Cuca Beludo (Não-Depilado, e Não-Lacrado) e outros combatentes subversivos da guerrilha troll e chistosa contra a solenidade do discurso, como Thomas Turbando e Paula Tejando, esses sim me representam. A Globo passou recibo.
Siga-me no Twitter (@lex_lilith)
(foto: reprodução de um blog tailandês)
3 notes · View notes
alexantunes · 8 years ago
Text
Eleição no Rio: Freixo merece seu meio-voto. Mas meio voto não existe
Tumblr media
Estou sofrendo há duas semanas para escrever algo sobre a eleição para a prefeitura do Rio de Janeiro. Sofrendo, não porque não haja elementos muito interessantes em jogo – isto é, assunto. Mas porque escrever sobre política é, quase inevitavelmente, se posicionar. E a situação eleitoral do Rio é, ao mesmo tempo, muito ilustrativa de alguns dos mais intensos embates de hoje e, ao mesmo tempo, muito peculiar. Ou seja, alguma compreensão exige um esforcinho adicional de distanciamento.
Que tipo de vácuo político levou a um segundo turno de outsiders, ainda que ousiders totalmente antagônicos, como Crivella e Freixo? Eles têm algo a oferecer, politicamente? Do ponto de vista do bom senso, pareceria claro escolher Marcelo Freixo, um candidato digno, com um histórico de respeito. Incluindo a sua saída do PT, já em 2005. Quando isso pareceria maluquice, de um ponto de vista eleitoreiro.
Freixo e Crivella estão em campos opostos numa questão central quanto à violência do Rio: as milícias. O irmão de Freixo foi assassinado em 2006 por milicianos, e ele chegou a sair do país numa época em que as ameaças de morte se acirraram. Freixo inspirou o personagem do deputado estadual que preside a CPI que investiga as milícias, em Tropa De Elite 2.
Já Marcelo Crivella é um político crescido à sombra do poder das igrejas neopentecostais, e do PT. Num mesmo vídeo, ele conta ter sido obrigado a entrar na política pela Igreja Universal, de seu tio Edir Macedo, e ter sido ajudado a espalhar a religião pelo mundo por Lula, que escreveu cartas para diminuir a resistência às estratégias internacionais invasivas da igreja (no caso ele cita especificamente Barbados e Zâmbia, onde a Universal ganhou concessões de rádio e TV, mas o alcance do esforço “missionário” no mundo foi bem maior). Senador da base petista, foi ministro da pesca de Dilma.
Milicianos declararam apoio a Crivella – no mínimo, por oposição automática a seu inimigo Freixo. Mas é lícito acreditar que Crivella terá uma postura pragmática e flexível em relação às milícias, assim como foi a do casal de Anthony e Rosinha Garotinho, também populista neopentecostal, que governou o estado na virada do século, e hoje é seu apoiador. Garotinho quer cargos no governo municipal, e apoio na sua campanha para voltar ao governo estadual, em 2018.
Absolutamente todo esse cenário foi engendrado pelas escolhas do PT. Ou, mais especificamente, por escolhas politicamente suicidas que a direção nacional do PT impôs ao estado, ora subordinando o partido ao PDT (derrotando uma liderança histórica local, Vladimir Palmeira, que queria uma candidatura própria em 1998, quando Benedita da Silva abandonou o senado para sair vice de Garotinho), ora ao PRB de Crivella (Lula presidente, em 2006, dividiu seu apoio nas eleições a governador entre Crivella e Palmeira, que acabou em quarto lugar – quem venceu foi Sérgio Cabral), ora ao PMDB (apoiando a reeleição de Cabral em 2010).
As ótimas relações de Lula com o PMDB fluminense e carioca, costuradas em torno dos royalties do petróleo e da realização da Copa e da Olimpíada, ajudaram a derrotar candidaturas de esquerda não-petista, como a de Fernando Gabeira a prefeito (em 2008, vencido por Eduardo Paes). Ou seja, de certa forma, tanto Crivella quanto Freixo se afirmaram no vácuo do PT. O que seria um representante certo no segundo turno deste ano (mesmo com o colapso financeiro estadual e municipal), o do PMDB, foi torpedeado pela teimosia de Paes. Que insistiu em tentar fazer prefeito seu secretário de governo, Pedro Paulo – ele acabou fulminado por um episódio de agressão à sua ex-mulher, em 2010.
Todo esse cenário seria naturalmente favorável a Freixo – se não fosse o “custo esquerda” e, mais especificamente, o “custo 2013” e o “custo governista”. O custo esquerda é fácil de entender. Partido criado para acolher ex-petistas, o PSOL, Partido Socialismo e Liberdade, tem um programa marxista datadão, quase ingênuo. E grupos internos que insistem em fazer manifestações patetas, como as pró-Maduro, na Venezuela.
O “custo governista” é um pouco mais complexo; o problema é que mesmo a esquerda não-governista, como o PSOL e a Rede, foi capturada, no impeachment de Dilma, pela narrativa do “golpismo” (no caso da Rede, personalidades do partido, como o senador acriano Randolfe Rodrigues, e o deputado federal fluminense Alessandro Molon, se contrapuseram à orientação de Marina Silva, e apoiaram o PT). O custo 2013 diz respeito à relação flutuante de Freixo e do PSOL com a tática black bloc.
Ou seja, mesmo para quem ainda acredita num campo de esquerda, Freixo e o PSOL não estão em um lugar claro, acabando por atrair antipatias dos dois lados. A pancadaria que já havia ocorrido no primeiro turno entre Freixo, Molon e Jandira Feghali (essa da mais obviamente linha auxiliar do PT, o PC do B) amplificou a crise desse campo. Freixo, de certo modo, é o candidato da perplexidade da esquerda. Não bastasse o PSOL ser um sub-PT, pela primeira vez alcançando um certo protagonismo majoritário sem a presença de seu modelo, finalmente colapsado, a candidatura de Freixo não conseguiu se comunicar com o conjunto da população, traduzindo mais confusão do que assertividade.
Encapsulada entre ataques de esquerda (aqui um exemplo interessante, uma crítica anarquista teoricamente bem-fundamentada) e de direita; fulminada por defesas do voto nulo, como a feita pela organização dos garis da cidade, o Círculo Laranja (que tem sido bastante fetichizada pela militância), a candidatura Freixo parece prestes a naufragar.
Eu mesmo, se tivesse que votar no Rio, estaria dividido. Por um lado, entendo que uma candidatura de esquerda não consiga dar todas as respostas, e poderia votar nela em confiança, como uma espécie de laboratório social. Esperando que Freixo encontrasse no processo respostas políticas mais dignas deste século, mesmo sem as ter a priori.
Mas eu sou um elitista cultural – no fundo, gosto do “fator Guanabara”, aquela sensação de suficiência hipster-esquerdista que emana da Zona Sul da cidade, e que me levaria a tentar bloquear essa vitória final da cultura caótica “da baixada”, a que alimenta neopentecostais e milicianos, assim como alimentou a banda (mais) podre do PMDB, a de Eduardo Cunha e do clã Picciani. Talvez eu fetichizasse Freixo, como expoente da nova bossa nova velha.
Por outro lado, mesmo sem acreditar na revolução dos garis, talvez eu me visse tentado a votar nulo, e permitir que um rolo compressor passasse finalmente não só sobre o PT, mas sobre todas as suas linhas auxiliares, as mais e as menos deliberadas. Incluindo os pseudo-contemporâneos apoiadores de Freixo do Fora do Eixo e da Mídia Ninja, resíduo das jornadas de 2013 que se venderam ao PT.
Não por colocar absolutamente qualquer expectativa positiva sobre Crivella, mas por duvidar dos dois mesmo. Chega a ser engraçado esse momento em que a candidatura Freixo tem, muito a contragosto (de parte a parte) a adesão da grande mídia, como a Globo e a Veja, que tem lá suas razões para temer o ascenso dessa “lúmpen elite” neopentecostal a que os anos PT deram passagem.
Por sorte não voto no Rio – e estou poupado de passar por todo o mal estar que esse primado da “perplexidade de esquerda” provoca (além da usual sordidez da direita, com escaramuças baixas como a que envolveu ontem a viúva do pedreiro assassinado por policiais da UPP da favela da Rocinha, Amarildo). Feitas as contas, Freixo mereceria meio-voto. Só que meio-voto não existe.
Siga-me no Twitter (@lex_lilith)
2 notes · View notes
alexantunes · 8 years ago
Text
Dylan: contracultura, aceitação & paradoxo
Tumblr media
As acirradas discussões em torno do Nobel concedido a Bob Dylan acabam demonstrando algo interessante: não só que a contracultura ainda tem uma força simbólica, mas que as principais questões que ela colocou continuam, 50 anos depois, sem respostas claras. E isso sem que ele se dignasse a sequer dar um “olar” a respeito do assunto. Claro, estamos em um tempo em que tudo vira treta nas redes sociais – além de Dylan, entre ontem e hoje estou vendo várias divergências sobre o calor, ou horário de verão. :D
Mas a polêmica Dylan tem tido o diferencial de gerar vários textos interessantes, em todas as posições. Este aqui, em inglês, no bom site de música The Quietus, além de brincar com as variadas perspectivas, conclui dizendo que é contra porque o prêmio é uma ofensa à nobre arte da cultura pop, uma tentativa de tolkenismo ou patronising (termos que significam o status quo fazer concessões paternalistas e irrelevantes).
Entre as posições contrárias ao prêmio, no entanto, prevalece a de que Dylan (mesmo para quem o considera um bom letrista) está tomando espaço de algum escritor. Porque Dylan, mesmo trabalhando as letras como poesia, e tendo publicado literatura e autobiografia, seria prioritariamente um “músico”. Aqui, no New York Times, um exemplo dessa perspectiva (de resto, essa nem é a primeira, mas a segunda vez que um poeta-letrista ganha o Nobel literário: em 1913 o indiano Rabindranath Tagore, próximo de Gandhi, venceu).
Só nesses dois parágrafos, já esbarrei em três questões razoavelmente complexas: se a “cultura pop” é inferior à “alta cultura” (com a qual a grande literatura manteria conexões mais diretas); se a noção de um cânone literário traduz realmente uma verdade imutável (não uma opinião, ainda que acurada); e até (ainda que eu considere essa questão mais pateta) se há uma diferença entre “rock” (categoria da qual Dylan seria fundador) e “pop” (ou seja, uma música de mercado, à qual o rock seria superior por sua autenticidade).
O fato é que a maior parte das análises (e a totalidade das reações simplórias positivas ou negativas) está ignorando dois aspectos centrais e anteriores à concessão do prêmio: a) as estratégias das premiações, particularmente as que (ainda) têm credibilidade; b) a posição central de Dylan no fenômeno contracultural que, como eu disse, ainda se mostra controverso (para o prazer de Dylan E do fenômeno contracultural, eu diria).
Primeiro, a respeito de premiações. Mesmo as mais escancaradamente identificadas com a expectativa de mercado (caso do prêmio musical Grammy e, especialmente, do Oscar) conseguem criar algum frisson. Eu diria que não tem necessariamente a ver com ingenuidade, ou SÓ com a possibilidade de turbinar um “produto” que teria menos visibilidade sem um prêmio. Mas sim com a humaníssima excitação com a ritualização das hierarquias em sociedade.
Mesmo que eu creia mais em Chris Anderson (para quem a horizontalidade da “cauda longa” é benéfica à cultura) do que em Andrew Keen (para quem nossa época é a do “culto ao amador”, em que a qualidade da produção artística é derrubada pelo narcisismo de todo mundo que se considera artista), eu acho graça em prêmios sim – inclusive para levantar embates interessantes.
A ingenuidade, aí, seria considerar o Nobel como um Olimpo, e sua comissão como um árbitro do sublime e do incontornável. Uma análise dos premiados em literatura, e num quesito político, como o Nobel da Paz (e creio que mesmo os premiados em áreas científicas mais “mensuráveis”, mas essas não são minha especialidade), permite enxergar claramente estratégias de marketing, de relações públicas e de redistribuição de poder simbólico.
E é aí que a premiação de Dylan começa a ficar interessante: alguém disse (com alguma pertinência) que o Nobel precisa mais de Dylan do que Dylan do Nobel. Claro que o prêmio em dinheiro de cerca de R$ 3 milhões (aqui um artigo interessante sobre a evolução desse valor) faria diferença para qualquer um mas, para Dylan, parece valer mais precisamente em seu efeito colateral de gerar controvérsia. Já chegarei lá.
Talvez seja um bom momento para tratar da tal questão pateta. Quando o termo "pop” surgiu, na década de 1950, inicialmente nas artes plásticas, ele trazia um pressuposto interessante. Ou central à humanidade no pós-guerra, até poderíamos dizer, quando a reorganização econômica e geopolítica adveio da derrota do nazi-fascismo – que, para além do autoritarismo social, também se pretendia um projeto de poder contra a “arte degenerada”, ou seja, contra a progressiva influência cultural das vanguardas artísticas.
O pop buscava enxergar a possibilidade de uma produção artística caminhando no fio da navalha entre a cultura industrial e de consumo, e a crítica a essa mesma cultura. Na música, vários artistas viriam a entender isso em alguma medida, e reinvestir seus trunfos de sucesso de mercado em “produtos” intrigantes, provocativos e mesmo desnorteadores. Os Beatles, quando começam a trabalhar não só com arranjos complexos mas com escalas orientais, elementos de música concreta e outros ingredientes que absolutamente não eram demandas claras de mercado, fizeram essa provocação com graça, inspiração e... mais sucesso – e agora sucesso qualificado. (Andy Warhol, antes de ser abduzido por sua própria teoria das celebridades, teve uma obra bem mais cruel e perigosa.)
Esse ambiente criativo não surgiu do nada; no Reino Unido passou por uma política pública, a da gratuidade de escolas de arte para jovens mais desajustados da lógica dos ofícios. Além de Bryan Ferry do Roxy Music, que foi aluno direto do artista plástico Richard Hamilton, passaram por escolas de arte John Lennon e Stu Sutcliff dos Beatles, Keith Richards dos Stones, Pete Townshend do Who, Ray Davies dos Kinks, Eric Clapton, Jimmy Page do Led Zeppelin, e quase todo o pessoal do Queen e alguns do Genesis, um pouco posteriores. Nessas escolas, os estudantes travavam contato com a história da arte, culminando com a influência ainda quente das vanguardas do século 20. Hitler não curtiu.
Já nos Estados Unidos, a referência era outra. Jack Kerouak criou o termo beat generation por volta de 1948, para designar um grupo de escritores que desprezavam a vida suburbana e consumista dos EUA no pós-guerra – chamada por Henry Miller de “pesadelo com ar condicionado”.  Adotando uma cultura do risco e do improviso (jazz, drogas, liberdade sexual, radicalismo político, nomadismo), Kerouak, William Burroughs, Lawrence Ferlinghetti, Allen Ginsberg (poeta que teria cunhado a expressão “flower power” já em 1965) e outros introduziram temas que seriam caros, 20 anos depois, ao movimento hippie e contracultural. Kerouak e sua preocupação com o “fluxo criativo” foi o inspirador das primeiras experiências livrescas – e meia-boca – de Lennon (A Spaniard In The Works, 1965) e Dylan (Tarantula, escrito em 1965-66 e publicado em 1971).
Bob, ao ler Kerouak, saiu da casa judaica dos Zimmerman e adotou o nome de Dylan Thomas (o poeta galês, que morreu numa viagem a Nova York – o que já mostra um viés literário sintomático. Comparemos, por exemplo, com as escolhas de Jim Morrison, que foi chamado de Rei Lagarto, e se considerava a possessão de um xamã indígena). Por um lado, se inspirava, na tradição beatnik, em artistas proletários, negros e folk. Por outro, tinha uma educação e um feeling cultural, passando pela tradição “maldita” europeia (Villon, Blake, Rimbaud) que o levaram à construção de uma persona expressiva potente – e de massas. Quando eu falo construção, é construção mesmo, incluindo falsear aspectos de sua biografia.
Sua fase “de esquerda” – aquela incensada por Eduardo Suplicy – está colada à emergência dos movimentos pelos direitos civis americanos, ao longo da década de 1960 (ele cantou com Joan Baez antes da famosa fala de Martin Luther King, “eu tenho um sonho”, em Washington). Não à toa ele é que apresentou a maconha aos Beatles, em 1964 – uma droga de chicanos, bem antes de chegarem ao LSD e à psicodelia. Por outro lado, em 1965, Dylan fez sua rumorosa passagem às guitarras e ao som elétrico, quando foi considerado “traidor do folk” de protesto. Em parâmetros nacionais, seria tipo Chico se transformando em Caetano.
Hoje é relativamente fácil misturar Dylan ao contexto, e ignorar que, em boa parte, ele é o criador do contexto, ou ao menos um de seus catalizadores. Por exemplo, a figura do cantautor. Dylan nunca teve uma “voz boa”, no sentido dos intérpretes populares. Mas se firmou evidentemente como a melhor voz de suas próprias composições – e vice-versa (o que também nunca o impediu de ser continua e fartamente relido e regravado). Sua noção de oralidade propunha uma síntese de artes que até então tinham cada qual sua carpintaria, a música e a poesia. E, ainda por cima, fazendo um poesia que soava como uma crônica quase profética daqueles tempos acelerados. Na verdade, transformar sua interpretação nasal e monótona em uma marca, e em um charme, foi quase um truque protopunk. Sua persona se beneficiou desse gap entre “qualidade vocal” e “qualidade de texto”, dessa inversão de expectativa.
Podemos comparar sua trajetória com a de Leonard Cohen, um escritor e poeta (entre 1953 e 1966) convertido à música em 1967. Ou talvez Lou Reed, Neil Young? (Não, Chico Buarque não, apesar das redes sociais  :D ). Num certo sentido, com a de Gil Scott-Heron, um dos pais do hip-hop, escritor que se lançou na música (inicialmente spoken word com acompanhamento percussivo, depois soul-funk), para depois conseguir lançar seu romance (The Vulture/ Abutre, 1970). Mas o problema (ou melhor, o não-problema) com Cohen é que sua voz, sua dicção e sua prosódia são adoráveis, sob qualquer critério. E as tradições negras que embasaram Scott-Heron, do griot à blaxploitation, conferiam coerência de dentro para fora à sua produção urbano-tribal. Já em termos yang, brancos-especializados, o sucesso de Dylan é uma vitória do não-convencional. Do beatnik; do contracultural.
Evidentemente, a indústria cultural sempre se esforçou em empacotar e vender essas potências – e, até hoje, para desfazer a noção de “rock” vs. “pop”, podemos lembrar que os roqueiros seguiram sendo distribuídos pelas mesmas empresas, e um ou outro artista pop preservou alguma inteligência contracultural (e aí fica claro o quanto “contracultural” não significa “de esquerda”, no sentido marxista da coisa; ainda que sim no sentido mercurial, macumbístico).
Depois de suas próprias investidas como ator, roteirista, diretor e tema de documentário, além das inúmeras trilhas (“Knockin’ On Heavens Door” foi composta para Pat Garrett & Billy The Kid; “Lay Lady Lay” seria para A Primeira Noite De Um Homem), uma tentativa cinematográfica de resumir a trajetória de Dylan chamou-se sintomaticamente Não Estou Lá (dir. Todd Haynes, 2007). Usando vários atores no papel dele, inclusive uma mulher (Cate Blanchett), um negro (Marcus Carl Franklin) e um batman (Christian Bale), o filme revelou-se surpreendentemente agradável e quase compreensível. O que nos traz (pulando centenas de outros detalhes e episódios) a Dylan hoje, ao prêmio e, com uma certa surpresa, à coisa se transformar em tanta controvérsia.
Por enquanto, Dylan se manteve em silêncio sobre o assunto. Deu um show no dia seguinte ao anúncio, demonstrando uma sutil satisfação, mas não disse nada. A academia sueca fez a bizarra declaração de que, depois de quatro dias de tentativas de falar diretamente com ele, desistiu. A festa (em 10 de dezembro) está garantida; a presença de Dylan não. Há quem lembre da ocasião, há mais de 40 anos, em que Marlon Brando (aliás referência de Dylan) não foi ao Oscar, e mandou, em protesto, a índia  Sacheen Littlefeather discursar em seu lugar.
Instala-se, curiosamente, um mesmo tipo de desconforto, e um mesmo tipo de resignação, daqueles momentos em que Dylan praticou suas guinadas ou idiossincrasias. Como a adesão ao instrumentos elétricos, a mudança de religião, a execução de arranjos tão alterados que tornam as músicas quase irreconhecíveis em shows, a escolha de todo um repertório de Sinatra (sua antítese!) em dois discos. Desconfio que os suecos esperavam menos discordância – e provavelmente, em outras épocas, a indicação geraria mais consenso. Mas os tempos estão a-mudando sempre (há quem diga, hoje, para pior).
Segundo o relato à Rolling Stone de outro agraciado (igualmente controverso) com o Nobel da Paz, o presidente Obama, sobre o encontro dos dois na Casa Branca: “Ele já não veio para o ensaio; todos os caras passam o som para a noite. Ele não quis tirar uma foto comigo; em geral todos os artistas estão loucos para tirar uma foto comigo e Michelle antes do show, mas ele não apareceu para isso. Ele só entrou e tocou uma releitura bacana de ‘The Times They Are A-Changin’’. Ele é tão dentro da coisa que ele pode apenas mandar um arranjo novo, e soa completamente diferente. Termina a música, ele sai do palco – eu estou sentado na primeira fila –, ele chega, aperta minha mão, tipo acena com a cabeça, me dá só um sorrisinho, e sai. E foi isso – ele foi embora. Essa foi nossa única interação com ele. Eu pensei: mas é isso que a gente pode querer de Bob Dylan, certo? Você não quer que ele fique lá jogando conversa fora, dando mole. Você quer que ele seja um pouco cético sobre a coisa toda”. Ou uma vitória contracultural.
Siga-me no Twitter (@lex_lilith)
2 notes · View notes
alexantunes · 8 years ago
Text
As vidas tropicais de Zarathustra, OU Strauss, rap, Hendrix e outras mumunhas
Tumblr media
A cultura em geral, e a música em particular, nos anos 1960 e 1970, passou por uma verdadeira explosão criativa, naquele período que é conhecido como o da contracultura. Na virada da década, mesmo lançamentos para o grande público pareciam totalmente contaminados por um sentido de transformação e grande inspiração.
Umas linguagens se alimentavam às outras – foi o caso da regravação de “Also Sprach Zaratustra”, de Strauss, num arranjo jazz-funky de Eumir Deodato, em 1973. O pianista e arranjador brasileiro, já radicado nos EUA, surfou no fato de que a música (em seu arranjo orquestral original) estava na trilha de 2001, Uma Odisséia No Espaço (1968), de Stanley Kubrick, e produziu como que uma versão 2.0, atualizada à sonoridade daqueles tempos.
O interessante é que a percepção da época fundia diferentes perspectivas temporais, e multiculturais. Eu gosto de citar o exemplo do pianista de jazz e discípulo de Miles Davis, Herbie Hancock. Ele comprava uma montanha de teclados eletrônicos – seu set era visualmente comparável ao de “magos brancos” do progressivo como Rick Wakeman e Keith Emerson. E filtrava quase todos os sons com efeitos eletrônicos, um hábito explorado com mestria por Jimi Hendrix que veio a contaminar até o trompete de Miles, que ganhou um pedal wah-wah. Mas, ao mesmo tempo, adotava com sua banda pseudônimos africanos, num exercício de tecnoancestralidade (cujos ecos aparecem ainda hoje na ficção científica africana, por exemplo).
Acontece que havia ainda um fenômeno da indústria cultural dos anos 1960, que era aparecerem diferentes gravações de uma mesma música – às vezes até com o mesmo produtor, e intérpretes diferentes. “Also Sprach Zaratustra”, ao estourar com Deodato, ganhou no Brasil uma versão sambístico-orquestral de J. T. Meirelles, saxofonista e arranjador de Jorge Ben em “Mas Que Nada” (1963), que virou referência mundial. A versão de Meireles & Sua Orquestra, no álbum Brazilian Explosion, é de 1974.
Mas, antes ainda, houve a do maestro Daniel Salinas. Esse também era um fenômeno da época: o dos maestros soul e pop, como Erlon Chaves (& A Banda Veneno – muito associado à Turma da Pilantragem de Wilson Simonal), os grandes Arthur Verocai e Dom Salvador, Nonato Buzar, Miguel Briamonte e outros (que, de certa forma, teria um desdobramento mais tarde na gafieira-funk da Banda Black Rio). Salinas lançou ainda em 1973 o álbum Atlantis, que trazia mais uma leitura da peça de Strauss, chamada “Straussmania”, e creditada ao pianista cego Sergio Sá, que usa um piano elétrico Fender Rhodes (como Deodato – já Meirelles preferiu uma tropicalíssima mistura de violão samba-rock, cuíca e moog).
Outro componente essencial da faixa é o baixo poderoso do argentino Willy Verdaguer (baixista de Caetano em “Alegria Alegria”, que depois tocaria com os Secos & Molhados e fundaria as bandas fusion Humahuaca e folk Raíces de América). O disco de Salinas, ainda que lançado nos EUA no ano seguinte, não repercutiu à época. Mas, recentemente, foi redescoberto, sendo relançado na Europa – e “Straussmania” incluída em uma dezena de compilações de grooves raros. A mais interessante é provavelmente a do DJ francês Marrrtin, especializado em trilhas de blaxploitation e outros filmes policiais, chamada Runaway 2. Marrrtin faz um edit (uma nova montagem das partes da faixa, o que não se confunde com um remix, quando se mexe nos diferentes canais de gravação), adicionando alguns scratches e ruídos de tiros. Além de mexer na masterização, deixando a faixa bem mais pesada.
O resto do disco de Salinas é mais romântico/ melodioso, comparável talvez às orquestrações dos álbuns de Taiguara na virada da década, e tem um baião-fusion original, além de releituras de Simon & Garfunkel e Donovan (outro hábito da época eram essas regravações suingadas de canções internacional, o que foi feito por Meirelles, a Orquestra Veneno e a formação encabeçada por outro grande, o baterista Wilson das Neves, com arranjos igualmente de Erlon Chaves).
Salinas tinha trabalhado com a turma da Jovem Guarda, excursionou no exterior com Lenny Eversong, e tem um projeto interessante do mesmo ano de Atlantis, chamado Nostalgia Eletrônica Orquestra, em que relê música brasileira de várias décadas do século 20, com uso de sintetizadores (outra obsessão da época). Mas ele e Brimonte acabaram meio esquecidos no país, ao contrário de Erlon, Dom Salvador e Verocai, e mesmo Buzar, conhecido por alguns temas de novela, como o da abertura de “Verão Vermelho”, gravado por Elis Regina em 1970 (é um instrumental com um vocalise poderoso da cantora, e está nesse que é um dos dois discos produzidos para ela por Nelson Mota, em 70 e 71, em que ela despontou como grande lançadora e impulsionadora de compositores jovens, incluindo Tim Maia, Ivan Lins, Erasmo, Marcos Valle e o pessoal da Jovem Guarda).
No plano internacional, essa “misturinha” igualmente acontecia. Em meu programa de web radio desta semana eu incluí “Straussmania” no edit do DJ Marrrtin. E completei o bloco da virada da década de 1960 para 1970 com dois outros cruzamentos interessantes. Um é a primeira gravação de Lightnin’ Rod. Lightnin’ Rod vem a ser mais um pseudônimo de Jalaluddin Nuriddin, ou Alafia Pudim, um dos fundadores dos Last Poets, considerado um dos pais do rap. Sob o pseudônimo de Lighnin’ Rod ele seria o precursor do gangsta rap já em 1973, com o álbum Hustlers Convention (que tem as faixas “Sport”, com o Kool & The Gang, bastante sampleada – no disco ainda comparecem Pretty Purdie e Billy Preston).
Mas uma gravação anterior creditada a essa persona data de 1969, e inclui Jimi Hendrix na guitarra e no baixo (um ano antes de sua morte) e Buddy Miles no órgão e bateria. Trata-se de “Doriella Du Fontaine”, que seria mixada por Bill Laswell e lançada em single em 1984. Essa sessão foi produzida por Alan Douglas, responsável por uma parte do material postumamente lançado do guitarrista.
Hendrix também é uma influência central para o quarteto francês Chico Magnetic Band, formado em 1969 em Lyon (ainda como Chico & The Slow Death), em torno do vocalista Chico, ou Mahmoud Ayari. É um rock com riffs poderosos, mas com uma certa dose de esquisitice – da qual se poderia dizer que tem algo a ver com o kraurock, ou mesmo com Captain Befheart ou com a black music psicodélica americana. Visto hoje, pode ser considerado uma espécie de stoner rock avant la lettre.
Também há em algumas faixas de seu único álbum (relançado em cd com mais dois singles) intervenções eletrônicas do produtor Jean-Pierre Massiera – um daqueles caras que, ao longo da década de 1960, lançava compactos e mais compactos sob diversos nomes, como compositor, produtor, músico e cantor. No disco da CMB, ele reforça com detalhes eletrônicos algumas daquelas faixas em que o conceito de pop (“Pop Pull Hair”, “Pop Orbite”, “Pop Or Not”) ainda era usado como sinônimo de criatividade descontraída – e não de diluição comercial.
Serviço: demais músicas do #Deathdisco
01 – Salinas – “Straussmania” (DJ Marrrtin edit) 02 - Lightnin’ Rod w/ Hendrix/ Buddy Miles – "Doriella Du Fontaine” 03 – Chico Magnetic Band – “Pop Orbite” 04 – Gary Panter w/ Residents – “Italian Sunglass Movie” 05 – Coldcut w/ Annette Peacock – “Just For The Kick” 06 – Mau Mau – “Auf Der Jagd” 07 – Zazen Boys – サイボーグのオバケ ("Fantasma De Um Cyborg") 08 – Guizado – “O Duelo” 09 – Luiz Carlos Sá – “Homem de Neanderthal” 10 – Longshoremen – “Locomotive” 11 – Bay Of Pigs – “Nude Man” 12 – Andrezj Korzinsky – “The Night The Screaming Stops (Possession Theme)” 13 – Roy Budd – “Main Theme – Carter Takes A Train” 14 – Jürgen Knieper – “A Question Of Lights And Darks (The State Of Things OST)” 15 – George Duke – “Spock Gets Funky” BG – GNR – “Avarias”
Veja informações adicionais aqui
Siga-me no Twitter (@lex_lilith)
2 notes · View notes
alexantunes · 8 years ago
Text
Porque não alimentar com Haddad o zumbi petista – e outros mortos-vivos
Tumblr media
O PT é um cara esquisitão. Evidentemente o PT é um partido, não um cara – mas a expressão de seu psiquismo coletivo é tão psicanalizável que de vez em quando se parece mais com uma personalidade una. E das mais transparentes. Consideremos a eleição para prefeito de São Paulo.
Haddad, que parecia totalmente fora do páreo até alguns dias atrás, está tentando surfar uma onda similar à que o levou ao mandato em 2013.  Aquela foi a campanha do “Amor sim, Russomanno não”, da “Praça Rosa” e do “Existe amor em SP”. Eu fui um dos malas que ajudou a conceber isso aí – hoje estou no campo oposto.
Mas não penso que na época fosse descabido. Lembremos que a votação seria no fim de 2012. Ou seja, antes das manifestações de 2013. Falar de uma possível renovação do PT ainda estava no horizonte político (inclusive porque o grau de aparelhamento e corrupção do partido ainda não tinha sido exposto pela Lava Jato; apenas pelo processo do Mensalão, o que parecia indicar, digamos, um câncer político localizado e eventualmente controlável).
Na verdade, tive com o jornalista André Forastieri um diálogo em que eu afirmava que a eleição de Haddad seria a plataforma para a posterior saída do candidato do partido – e ele respondia que Haddad jamais trairia a confiança e o investimento de Lula. Ainda que eu não estivesse errado no diagnóstico (quase profético) dessa necessidade de ruptura, na prática ele é que estava certo.
Mas veio 2013, o PT não entendeu nada e, ainda por cima, foi tudo menos amoroso (na crescente disposição para reprimir manifestações à esquerda – chegando ao absurdo da lei antiterrorismo e da repressão em geral contra o movimento anticopa). Haddad foi particularmente poltrão na questão dos vinte centavos, quando parecia atrelado às políticas do governador Alckmin por uma submissão quase filial (tem uma teoria conspiratória que não vem ao caso, mas que é suficientemente engraçada para ser mencionada, a de que Alckmin estava introduzindo Haddad na maçonaria por essa época, e por isso a polidez conciliatória aparentemente descabida com o governador).
A reeleição de Dilma em 2014, marcada por uma atitude chantagista e mentirosa, em cujo centro esteve a desconstrução de Marina Silva, uma ex-petista, foi o que nos trouxe a este momento. Eu já tentei explorar em vários textos o que significou e o que esteve por trás da saída de Marina do PT, e da entronização de Dilma como sucessora – para resumir em uma frase, a escolha definitiva entre corrupção (Belo Monte) e dignidade (preservação).
Não custa lembrar que, se o PT tivesse permitido um segundo turno entre Dilma e Marina, a história seria totalmente outra, mesmo que Dilma vencesse. A desconstrução de Aécio e de sua agenda, por duas mulheres “de esquerda”, se ele não fosse ao segundo turno, seria suficiente para reescrever nossa história recente (eu tratava disso em outubro de 2012)
Aí é que chego à questão da psicanálise do “cara petista”. Primeiro, faço questão de defini-lo como homem e, especificamente, como homem mimado e mimizento, para desconstruir essa falácia de que a derrubada de Dilma foi um ato de machismo, ou só um ato de machismo. Obviamente os masculinistas quereriam derrubar Dilma; mas só eles não dariam conta disso.
O problema é que, nesses 16 anos, o PT foi se tornando mais e mais agressivo com a assim chamada esquerda, e conciliador com a assim chamada direita. Não preciso discorrer de novo sobre todos os fartos exemplos dessa conciliação, desde a conivência com todas as bancadas fisiológicas até o acordo espúrio com o agronegócio assassino de índios e lacrador da natureza, materializado na “primeira amiga” de Dilma, a senadora Kátia Abreu. E, claro, o abandono de agendas feministas centrais, como a autodeterminação reprodutiva (direito ao aborto).
Mas fica óbvio que a obsessão petista, por assim dizer, é com o “irmão mais cheiroso” (o PSDB), e com suas “mulheres traidoras” (Marina, Erundina, Marta). E de novo, na eleição para a prefeitura de São Paulo, esse psiquismo rancoroso, que no fundo é bem mais frágil do que parece, fica à vontade para deitar e rolar.
No que se articula o crescimento de Haddad nos últimos dias? Muito precisamente em três pontos. Começando pela escolha de quem é o “inimigo” político predileto. No caso, a ex-prefeita Marta Suplicy. Já vimos isso na reeleição de Dilma: a campanha e o eleitorado petista tomados por um rancor de seita meio irracional, mais voltado a quem abandonou o partido do que ao que seria o território político oposto de fato: particularmente o PSDB.  (No caso de São Paulo, também Russomanno e seu pavoroso PRB, o partido do bispo Edir Macedo, surgido na base do governo petista. O mesmo do candidato bispo Crivella no Rio).
O segundo ponto: poupar Dória. Claro que há a questão estratégica, de que Dória parece consolidado no primeiro lugar, e a disputa se dá pela segunda vaga no primeiro turno. Mas um partido dito de esquerda teria a obrigação de fazer a disputa ideológica, não só a estratégica. Disputa da qual Erundina – a outra ex-petista e ex-prefeita –, não se furta nunca (mesmo que com um ou outro erro de leitura, ao embarcar na narrativa do “golpe”).
Erundina, aos 81 anos, parece ainda em melhor forma do que quando foi prefeita da cidade, há 27 anos. Incorporou uma espécie de dignidade ancestral que está além e acima de seus esquerdismos, alguns datados (Demétrio Magnoli faz, neste texto, uma análise interessante sobre o embate internacional de duas visões de esquerda que se reproduz no país). Erundina, que se recusou a ser vice de Haddad pelo acordo retratado na foto que encabeça este texto. Quanto a ela, a campanha petista adotou um sórdido chamado à sua desistência – para “unir as esquerdas” (coisa de que o PT só lembra eloquentemente quando está a perigo).
Esse fogo em cima de Marta e Erundina, e o descaso para com o discurso abertamente predador de Dória (um fulano que tem um negócio minúsculo mas zilionário em verbas de anunciantes, a revista Caviar, e cuja real atividade, não-produtiva, é a articulação empresarial na Lide – grupo de “lideres empresariais” que controlam 52% do PIB, segundo eles mesmos), trazem uma certeza e um risco.
A certeza é a de que era mais fácil do que parecia a aposta de Alckmin: a de que destronaria a ala ideológica clássica do PSDB de São Paulo (de FHC, Covas, Montoro, Serra etc), substituindo o DNA social-democrata do partido por seu alinhamento ultraconservador (o fator Opus Dei + empresariado). É, de novo, o PT trabalhando para reconstruir o PSDB (ou especificamente o pior do PSDB), como fez com Aécio na eleição presidencial.
O risco é o de que, se a população de São Paulo (a gente normal, não a bolha "lacradorx” das redes) surtasse junto e reelegesse Hadad, teríamos uma dilmização da cidade, conflagrando-a ao ponto da ingovernabilidade. O fio de razoabilidade histórica desta eleição, se não prevalecesse a força do marketing político, estaria exatamente no embate entre as duas ex-prefeitas e ex-petistas. Erundina, representando o campo dos trabalhadores e da esquerda sincera.
E Marta, com seu vice Andrea Matarazzo, representando a grana “benévola” de centro-esquerda. Esse diálogo acabou se dando de forma forçada: foi o trator pró-Dória de Alckmin que espirrou Matarazzo, candidato natural, para fora do PSDB. E as manobras de Lula para privar Marta de seu protagonismo no PT paulista, mais a absoluta incompatibilidade com Dilma, que empurraram Marta para fora do partido.
Mesmo assim, tardia e deslocadamente, Marta e Matarazzo juntos simbolizam a conversa que PT e PSDB deveriam ter tido há 15 anos – para poupar o país deste desastre. Marta fez um cálculo político ao preterir o PSB pelo PMDB: ela imaginou que estar no partido do futuro presidente (Temer), com Eduardo Cunha já cassado, representaria mais votos ganhos do que perdidos. Com a desmoralização do PT, não esperava ser demonizada.
Tumblr media
Mas a neurose desse cara esquisitão, o PT, continua contaminando uma parte do eleitorado com sua narrativa paranoica de “golpe” (como se não fosse o próprio partido e suas escolhas duvidoas que tivessem armado a encrenca toda, que vemos estampada com eloquência na imagem acima). E faz o possível para manter a casa bagunçada – e sua disputa insana com o irmão mais cheiroso eternizada.
“Existe amor” coisa nenhuma. Existe é a necessidade política de arrancar o tubo político de Lula e do PT. Não para uma vitória da direita, mas precisamente o oposto: permitir que um debate racional ressurja à esquerda. A tentativa de reeleger Haddad é, muito simplesmente, não só a manutenção de sua pauta hipster (que pinta ciclovias e abre a avenida Paulista, mas é ecologicamente irresponsável e se recusa a conceder um parque Augusta já pago, ou a preservar um parque dos Búfalos e outras regiões de mananciais). Mas principalmente garantir a sobrevida do chantagismo social de Lula e do PT.
O tom cínico de Haddad dizendo para Marta "talvez tenha sido o Kassab que te aconselhou”, sendo que Gilberto Kassab era exatamente o aliado de Dilma para criar um partido neofisiológico que substituísse o PMDB, na ação que precipitou a inviabilização da ex-presidente, foi para mim o momento mais  enojante do último debate (e essa não foi uma disputa nada fácil, dada a quantidade de absurdos disparados).
Tumblr media
A referência a Kassab é porque o vice Matarazzo está no partido dele – mas o vice do próprio Haddad é o corrupto  (e charlatão da autoajuda) Gabriel Chalita (veja foto). É a aposta em uma narrativa moralizante superficial, que se converte em uma quase-alucinação, enquanto por baixo o jogo sujo continua animadíssimo.
Berço do petismo, São Paulo deve ao Brasil a cabeça de Haddad em uma bandeja. Mas e quem vai ganhar? Como fica a cidade? Fica mais ou menos, como sempre. Se não for com Marta (porque Erundina está praticamente fora do páreo), realmente tanto faz. A assim chamada esquerda precisa de tempo para se repensar, e não turbinar esse derradeiro boneco petista. Haddad é o último de uma época, não o primeiro da próxima.
Porque Haddad poderia ter saído do PT – e não ter virado essa mistura indigesta entre práticas stalinistas e populistas, que não ultrapassam a metade do século passado, com alegações de século 21. Ele não o quis; ao contrário. Com fidelidade aparelhista, acolheu no secretariado o infame Alexandre Padilha, após o espancamento político que esse candidato levou na disputa para governador em 2014.
Se São Paulo se tornasse a última grande base do petismo – e com a perda de dezenas de milhares de cargos no nível federal –, não seria nada bonito imaginarmos o grau de aparelhamento a que a cidade seria levada. Não. Arranquemos o tubo. E desapeguemos do defunto petista.
Siga-me no Twitter (@lex_lilith)
2 notes · View notes
alexantunes · 8 years ago
Text
Porque é necessário dessacralizar o nome de Lula
Tumblr media
Tu perdeste a tua luz/ Que eu te dei com tanto amor/ Não foi a falta de conselho/ Tu mesmo nunca ligou/ Vai chorar de arrependido/ Quando um dia se lembrar — Mestre Irineu, Cruzeiro Universal, Hino 48
Lula fez, outro dia, um discurso defensivo, que incluiu algumas frases bem esquisitas: “Eu, de vez em quando, falo que as pessoas achincalham muito a política. Mas a profissão mais honesta é a do político. Sabe por quê? Porque todo ano, por mais ladrão que ele seja, ele tem que ir pra rua encarar o povo, e pedir voto. O concursado não. Se forma na universidade, faz um concurso e está com emprego garantido o resto da vida. O político não. Ele é chamado de ladrão, é chamado de filho da mãe, é chamado de filho do pai, é chamado de tudo, mas ele tá lá, encarando, pedindo outra vez o seu emprego”.
Lula confia na sua capacidade de improviso. E, obviamente, estava se contrapondo aos procuradores do ministério público que o acusam, e demais juízes que o ameaçam, ou podem vir a ameaçá-lo. Mas, sem querer, Lula entregou suas graves limitações nessa declaração.
Não vou nem moralizar a parte do ladrão – indesejável em qualquer profissão, mas tanto mais grave nas que lidam com a coisa pública, que é de todos e às vezes ninguém vigia de perto. O que interessa nesse trecho é o que escapa a Lula. E escapa a ele, completamente, a dimensão do sacerdócio na política. Exatamente a que seria necessária para sustentar a enorme dimensão psicossocial que ele adquiriu.
É evidente que os dois mandatos de Lula tiveram enorme impacto no rearranjo psicossocial do Brasil. Mais do que a redistribuição de renda, talvez, houve uma ruptura do elitismo negativo que nos caracterizava. Digo “elitismo negativo” porque, nos países em que a social democracia construiu estados de bem-estar social, podemos enxergar uma forma de “elitismo positivo”, paternalista mas eficiente na redução de danos.
Já nossa elite, no afã de negar o “pé da cozinha” (para lembrar da expressão chacoteiramente utilizado por FHC), costuma ser bastante malévola. É como se tivéssemos herdado esse complexo das capitanias hereditárias, de um ciclo infinito de predação, como se aqui não fosse, ao fim e ao cabo, a casa de todos. E que um pouco de bem-estar comum faz a sociedade evoluir no conjunto.
Foi até aí, até a ruptura simbólica desse ciclo, que Lula chegou. E daí não passou. De novo, para não moralizar, acho que Lula não foi santo nessa trajetória. Digo mais, se santo fosse, essa trajetória simplesmente não seria possível. Um grau de “habilidades mercuriais”, de tricksterismo, de passar da luz à sombra e penetrar ambientes mafiosos sem perder o autocontrole, terá sido necessária. Em termos mais simples, um pouco de picaretagem.
Mas há um momento em que essas habilidades são checadas pelo destino, e têm que reafirmar a que vieram. No tarô, dir-se-ia que é a passagem do mago de feira, do truque de moedas, para o mago que começa a moldar a realidade (não com a energia dele mesmo, mas com a expectativa da plateia hábil e conscientemente canalizada).
Na verdade, em cada mago convivem esses dois, o truqueiro e o sublime – e quando o espetáculo cresce é a hora da verdade, do sustentar ou não a passagem do truquinho à magia portentosa. Eu digo mago e sacerdote com esse mesmo sentido; o sacerdote também tem sua face charlatã. Há um ótimo filme sobre isso, O Homem Que Queria Ser Rei, adaptação de uma história de Kipling com Sean Connery e Michael Caine, que mostra o contrário, quando a veia sacerdotal (= responsável) se manifesta e contraabduz o oportunista.
Já Lula, o que ele revelou nessa fala é que nunca superou aquela dimensão tiozão-sindicalista, a de que o ápice da existência é cada operário com um carrinho na garagem e uma churrasqueira. Carne queimada e gasolina, esse é teu nome. Quando Lula chegou ao auge de credibilidade e aprovação popular, era a hora de ter transmutado as eventuais contradições e/ou picaretagens da sua trajetória em grande magia social; numa transformação real e necessária (arrancar a reforma política, por exemplo).
Mas Lula, ao contrário, fixou-se no mago de feira. Seu gosto pelo jogo político tem algo de perverso; aquela descrição que ele faz do candidato lutando pelo mandato (“Ele é chamado de ladrão, é chamado de filho da mãe, é chamado de filho do pai, é chamado de tudo, mas ele tá lá, encarando, pedindo outra vez o seu emprego”) se aplica com perfeição a um “mago do mal” como Maluf. Que Lula não se furtou a comprar, assim como comprou Sarney, Collor, Renan, Barbalho, toda uma coleção completa e fascinante (e sintomática) de bonecos-donatários-ladrões.
Lula teve várias oportunidades de fazer correções de rumo (“Não foi falta de conselho”, como diria o Mestre Irineu, naquele hino lá em cima. E o destino aconselha na forma de tropeços). Lula poderia ter “lido” o episódio do mensalão de maneira mais prudente, e se saído bem melhor. Não como semideus inatingível. Ele entendeu ao contrário a oportunidade que teve. A sociedade continuou lhe dando todos os sinais do que esperava dele, e do PT – até 2013.
Na verdade, há um momento central nessas escolhas erradas: é quando ele preteriu a ministra Marina pela ministra Dilma. E com um objeto de divergência de enorme simbolismo: a construção ou não da usina de Belo Monte. Preservação versus propina. Sabemos o que ele escolheu – e onde essa escolha nos trouxe.
O engraçado é que, por um escrúpulo invertido, Lula tentou acobertar suas “casinhas maiores” do que a do operário bem-sucedido: o sítio, o tríplex. Que, aliás, seriam totalmente compatíveis com seus ganhos. E é por isso que, alcaponicamente, vai se dar mal (lembrando, Al Capone foi condenado porque, além de tudo, fraudava o fisco. No fundo, é sempre o pensar pequeno).
Tumblr media
Mas, se esse processo é tão óbvio, porque os apoiadores de Lula se agarram a ele, religiosamente? (e o próprio não tem maiores escrúpulos em se comparar com Jesus Cristo – a ilustração é um meme publicado facebook). É porque Lula ficou grande por fora e pequeno por dentro. Trocou seu lugar na historia por um lago com pedalinho, por um apartamento com elevador (essa assombração de Sunset Boulevard). O “castigo Capone” traz uma ironia psicológica, mais do que uma desproporção jurídica.
Seus fiéis ainda se apegam a esse “Lula exterior”, o do culto à personalidade, e comparam teimosamente suas pequenezas com as de FHC e mesmo dos militares (alguns desses fiéis são inteligentes inclusive – mas isso não parece ter nada a ver com inteligência). Ora bolas. Eu mesmo elegi Lula especificamente para acabar com as batotas de FHC, dos milicos e dos tiozões acaju estupradores dos grotões todos, e não para encampá-las. Foi Lula que limpou a b* com meu voto (e não FHC, nem os tiozões dos grotões, nem os milicos, em quem obviamente não votei).
O país só avançará quando passar esse trauma a limpo, e for dessacralizado esse nome. Quando entendermos como e por que uma oportunidade maravilhosa foi criada, e foi perdida. Ou continuaremos a esperar por esse mítico Dom Sebastião que interviria por nosso destino. Mas, ainda desta vez, Dom Sebá não vencerá os “moros”. Esperamos que não. Apostamos que não. Faremos o possível para que não.
Siga-me no Twitter (@lex_lilith)
2 notes · View notes
alexantunes · 8 years ago
Text
Obscuridade, notoriedade, documentário e tricksterismo: sobre os Residents e o LCD Soundsystem
Tumblr media
Documentários sobre música, na sua usual mistura de trechos musicais e histórias saborosas de bastidores, são um gênero “fácil”. Dos anos recentes, eu pinço dois que, sem abdicar dessa graça natural, conseguem se desenvolver como peças de reflexão importante (e em tempo real) sobre a trajetória de artistas inconformados com os mecanismos do sucesso.
Durante o In:Edit, festival dedicado ao gênero, além dos usuais nomes históricos e atraentes (Zappa, Leonard Cohen, Cream) está em exibição Theory Of Obscurity: A Film About The Residents (dir. Don Hardy, 2015; há mais uma sessão programada em São Paulo na semana que vem – cheque a programação no site).
Surgidos no final da década de 1960, os Residents eram um corpo estranho na cena hippie de São Francisco. Por um lado, puderam se aproveitar da brecha performática e libertária mas, por outro, eram muito mais uma ocorrência precoce de uma estética que se consagraria nos anos 1980 (conceitual, cínica, formalista, anticatártica) do que similar à de seus pares sessentistas e setentistas, mais ligados a entregas, digamos, “viscerais”.
Escrevi sobre o grupo e suas esquisitices a propósito do inesperado show deles no ano passado em São Paulo: “Assim como (Captain) Beefheart, os Residents começaram a lançar os fundamentos do pós-punk muitos anos antes do próprio punk. No caso do grupo, incorporando equipamentos eletrônicos e a utilização de técnicas de estúdio como instrumento, e a desconstrução de ícones pop como Beatles, Rolling Stones e James Brown – na verdade eles andaram espalhando que eram os próprios Beatles. Há um paralelismo com o krautrock alemão e o trabalho de Brian Eno, mas com uma disposição para a paródia anárquica que esses não tiveram. Também lembra um pouco o universo do Zappa – mas sem um “ídolo” central e sua verve (aliás meu amigo, o guitarrista Nelson Coelho, os define os como uma espécie de cruzamento entre Zappa e Eno)”.
E seguia: “Até pelos padrões quadriculados do cenário dessa turnê, a coisa lembra uma maçonaria (ainda mais) bizarra, onde os destinos da cultura pop são decididos sem que o mundo exterior se dê conta de onde vêm as ordens. Neste link, Fúlvia Haroldo comenta um pouco dos cenários, figurino, coreografia e repertório – que na verdade traduzem toda uma ética. Como diz ela, ‘o mundo é um lugar esquisito. Onde até as melhores intenções serão as erradas porque não estamos aqui pra ganhar. Então porque fazemos tanta questão de fazer ou vangloriar trilhas de ‘vencedores’? Ou do seu oposto, de mártires tão sofridos (…)? As poucas certezas da vida normalmente tratamos como aberrações, mas e se tratássemos essas ‘aberrações’ como algo naturalmente esquisito e as acolhêssemos? Foi a segunda coisa que aprendi com os Residents: a vida é esquisita, acolha o esquisito e ele será o que tem que ser: normal’”.
A demonstração desse pioneirismo dos Residents se dá claramente no filme, mostrando como a MTV foi o primeiro veículo de massa para seus One Minute Movies. E nas entrevistas de gente como Jerry Casale (Devo), Jerry Harrison (Talking Heads) e Les Claypool (Primus) – curiosamente Casale menciona que o Devo poderia também ter sido uma banda conhecida de membros desconhecidos, se os óculos grossos de Mark Mothersbaugh não tivessem sido sugados para a notoriedade. Há até um flash de como a cantora Kesha, recentemente, roubou o principal símbolo da fortíssima identidade visual dos Residents, o globo ocular de cartola. Mas é exatamente na questão das idiossincrasias que as escolhas do filme começam a ficar interessantes.
A primeira delas é o anonimato do grupo, e sua disposição em circular narrativas fantasiosas e pseudoteóricas. Como o da influência sobre eles de um certo vanguardista europeu, “N. Senada”,  e a própria “teoria da obscuridade” que dá titulo ao filme. Com esses mitos já criados, seria fácil partir para algum tipo de mockumentário, o documentário de fantasia e/ou comédia, como os das falsas bandas Spinal Tap (de Rob Reiner) e Rutles (de Eric Idle, do Monty Python), do violonista Emmett Ray (em Poucas e Boas, de Woody Allen) ou do cantor folk Llewin Davis (irmãos Coen).
Tumblr media
Mas a trajetória dos Residents é tão bizarra em si mesma que ela parece precisar de um dispositivo redutor – e não de um expansor – de fantasia. É aí que eu quero mencionar outro título recente, o documentário de 2012 sobre o LCD Soundsystem e seu idealizador, James Murphy. Murphy, evidentemente, não é um anônimo. Mas foi meio que abduzido da cena eletrônica e projetado para um sucesso pop que não era o que projetava.
Num certo sentido, a carreira de quase 50 anos dos Residents e a ascensão irresistível do LCD SS, em menos de 10, se parecem. Ambas têm um olhar ético e estético sobre a cena pop – se os Residents sempre se dedicaram a releituras esquisitas, Murphy também sempre fez questão de deixar muito óbvias em suas composições as suas influências, quase releituras assumidas. Esse olhar levou nos dois casos a selos próprios, a Ralph Records dos Residents, a DFA de Murphy.
A DFA hoje é reconhecida por ter impulsionado neste século a carreira de grupos como Rapture, Hot Chip e Radio 4, e de resgatar a obras no wave como as de Liquid Liquid, Pylon e a Love Of Life Orchestra de Peter Gordon, mas a importância da Ralph Records não foi menor, nos anos 1980. Estreando com o primeiro single dos Residents, “Santa Dog”, em 1972, e o primeiro álbum, Meet The Residents, dois anos depois, já em 1979 a gravadora lançava a coletânea seminal do pós-punk de São Francisco, Subterranean Modern. Ela trazia os excelentes grupos Chrome, Tuxedomoon e MX-80 Sound (e de quebra iniciou a associação da Ralph com o ilustrador Gary Panter, conhecido por algumas das melhores capas de Zappa, Chili Peppers, Oingo Boingo e do selo experimental do poeta tardo-beatnik John Giorno).
A Ralph Records também apresentaria aos Estados Unidos o trabalho de vanguardistas europeus como Fred Frith e Chris Cutler (com os Art Bears), Yello e outros. O finado guitarrista inglês Phil Lithman, o Snakefinger, radicado em Frisco e colaborador habitual dos Residents, teve três ótimos discos lançados pelo selo (os dois primeiros tendo os Residents como banda). O mítico endereço da Ralph entre 1979 e 83, 444 Grove Street, foi um hub para um monte de gente criativa.
O engraçado, para os artistas associados e frequentadores, era descobrir eventualmente que o cara do balcão de discos, o engenheiro de som do estúdio ou o mano das artes gráficas eram os próprios (e literais) Residents. As pecinhas do quebra-cabeças vão aparecendo no filme, nos depoimentos de gente como Panter, Cutler, do ator e amigo/ apresentador Penn Jillette, e Matt Groening (o criador dos Simpsons).
Mas o que, no meu entender, mais aproxima o filme dos Residents e o do LCD SS é a tentativa de colocar bem no centro da conversa as filosofias e estratégias de resistência à devoração insana (e, afinal, babaca) do star system. A dos Residents, evidentemente, passa pelo anonimato. O documentário joga com habilidade nesse quesito, nem escancarando nem escondendo: estão lá os quatro fundadores (foto): o vocalista Homer Flynn e o músico Hardy Fox (principais compositores do repertório do grupo), mais Jay Clem e John Kennedy, que saíram em 1982. Mas falando todos como porta-vozes e ex-executivos da Cryptic Corporation (outra camada do enigma Residents).
E é aí que, sob a profusão de máscaras, narrativas e tipos estranhos, de dezenas de discos e projetos multimídia (desde o abortado filme de fantasia Vileness Fats, iniciado em 1972, que teve trechos e trilha lançados em 1984), emergem uns caras extremamente criativos, porém também ciosos da normalidade em suas vidas – e de uma espécie de rigor antiabuso, ainda que em meio ao non sense.
Nesse sentido há uma cena emblemática em que Flynn, disfarçado de secretário da Cryptic, arruma pessoalmente os 154 items dos Residents dentro de uma geladeira, o “box” de US$ 100 mil que o MoMA comprou. Assim como há rigor no apreciador de cafés espressos e de cães, James Murphy, que inseriu o documentário sobre o show final do LCD SS numa manobra de freagem, descompressão, balanço e desconstrução do projeto em 2011 (ele foi retomado no ano passado).
Não à toa, um filme em que Murphy deu um jeito de tratar do “proceder” (como dizem os rappers) se chamou Shut Up And Play The Hits – cala a boca e atende a demanda. Já os tiozinhos dos Residents celebram em Theory Of Obscurity suas estratégias fragmentárias e diversionistas que, no entanto, os trouxeram hoje a uma espécie de ápice de reconhecimento artístico. É sobre música, sim – mas talvez seja mais ainda sobre dignidade.
Siga-me no Twitter (@lex_lilith)
3 notes · View notes
alexantunes · 8 years ago
Text
Mezzo golpe mezzo pizza, OU como frustrar todo mundo com jeitinho
Tumblr media
O resultado do julgamento do impeachment de Dilma Rousseff ontem no Senado teve um aspecto surpreendente. Não o empessegamento em si, que já era esperado, mas o bizarro surgimento em cena da votação em separado da questão da perda dos direitos políticos da ex-presidente – votação na qual ela foi estranha e incoerentemente poupada.
Ora. Ou bem Dilma é culpada de crime de responsabilidade – e, segundo a lei do impeachment, perde o mandato e os direitos –, ou não é, e não perde nem um nem outro. Essa seria a posição que se esperaria fosse sustentada pelo presidente do Supremo, Ricardo Lewandowski, que conduzia a sessão. Em decisão do próprio STF em 1993 (veja imagem) era esse o entendimento, de resto bastante óbvio.
O que então, levou a essa solução “brejeirinha”, que parece um exercício daquela suposta cordialidade ou jeitinho, ou ainda da nossa compaixão cristã? Mas que, como se soube depois, vinha já sendo discutida há um tempo, numa trama que envolve (de novo) PT e PMDB (exatamente o “casal” que protagoniza a DR política desse processo), com liderança de Renan Calheiros e conivência de Lewandowski? Que outros interesses podem estar ali acobertados por trás da decisão? Vejamos alguns aspectos.
a) A posição da própria Dilma. Beneficiária direta do “fatiamento”, Dilma não entendeu o sinal como uma estendida de mão conciliatória. Ao contrário; ela, que cresce no embate (ou, como poderíamos dizer, que continua funcionando melhor como guerrilheira do que como gerente de loja de R$ 1,99), saiu do episódio da derrota bastante animada e motivada. Repetindo o discurso de “golpe”, quer chamar às ruas manifestações unitárias, em torno dela mesma (ainda que dê a isso o nome de defesa da democracia). O curioso é que nisso há um potencial de problemas para o PT, ou ao menos para uma ala dele;
b) A posição do PT. Aí podemos considerar dois subaspectos. Por um lado, os voluntariosos senadores petistas e aliados, que ficaram muito aguerridos na defesa da ex-presidente, precisavam também muito dessa meia-vitória psicológica. Por outro lado, o PT mais estratégico e lulista necessita de Dilma mais como mártir do que como liderança ativa, mais como defunto político do que como zumbi. Nada garante que Dilma (e seus escudeiros) se comportem da melhor maneira possível para pavimentar o caminho para Lula 2018, já que as narrativas de “distribuição de culpas” dos dois líderes nem sempre (ou cada vez menos) convergem.
Ao contrário: retoma-se exatamente a divisão que produziu o andamento do impeachment por Eduardo Cunha, agora com sinal trocado, como eu abordo neste texto de dezembro passado. “Há um terceiro componente explosivo, que tem sido a (politicamente quase inexplicável) postura do presidente do PT, Rui Falcão. Quando era mais de se esperar que ele atuasse como bombeiro, ele se apresentou como incendiário (...) Falcão manifestou-se contundentemente nas redes, dizendo que esperava que os três representantes do PT na comissão de ética votassem pela abertura do processo contra Cunha. Foi o empurrão fundamental para a decisão da bancada (contra a instrução do governo e de Lula) de se posicionar formalmente contra Cunha, e disparar o vingativo acolhimento, por ele, do pedido de impeachment”.
Tem a sua graça que, agora, o PT que tocou fogo no processo prefira que as coisas se acalmem, e o PT que então queria conciliar com Cunha agora queira fazer barulho (mesmo que... conciliando com Cunha, como veremos);
c) A posição da tropa de choque de Cunha. Como Paulinho da Força e outros picaretas já anunciaram, o precedente interessa ao julgamento de Eduardo Cunha, que se inicia no próximo dia 9. Não é à toa o fato de que os oito peemedebistas que votaram sim ao impeachment e não à perda de direitos incluem outros investigados, delatados e suspeitos, como Edison Lobão (MA), Eduardo Braga (AM), Hélio José (DF), Jader Barbalho (PA) e associados. Todos eles podem tentar usar de artifícios e escapar da perda de direitos, mesmo se eventualmente cassados. Além deles, obviamente, Renan Calheiros, que tem razões adicionais à condição de acusado em vários processos;
d) A posição de Renan Calheiros. Renan, cuja prisão chegou a ser pedida pelo procurador geral Janot, e negada pelo STF, é ou foi alvo de vários processos, alguns dos quais até já prescreveram. Mas a Renan, aliado de ocasião de Temer, interessa manter mais cordéis sob seu controle, para não dar mais autonomia ao presidente, tradicionalmente seu desafeto. Ridiculamente, Renan fez a defesa pública da não-perda de direitos alegando que os senadores “não deveriam ser desumanos” com Dilma. Estragou/ roubou um pedacinho da vitória de Temer;
e) A posição de Lewandowski. Próximo de Lula e família, de conduta evidentemente parcial no julgamento do Mensalão (o que rendeu vários atritos com o então presidente Joaquim Barbosa, de quem era o vice), o atual presidente do STF estava fazendo uma condução cuidadosa do processo – até essa escorregada final. Parece ter feito com um certo gosto essa negociata com o parlamento (com o qual está em barganha pelo aumento salarial do judiciário), e ao mesmo tempo essa “entrega” ao petismo;
f) A posição do senador Randolfe. Randolfe Rodrigues, único senador pela Rede Sustentabilidade, teve uma estranha trajetória nesse episódio. Ex-petista e psolista, tem circulado, pimpão, pelos círculos dilmistas, atraindo a ira de Marina Silva. Como é sua própria bancada na casa, ele tem uma posição confortável para articular – mas a está utilizando contra a linha de seu partido, que é a favor do impeachment tanto de Dilma quanto de Temer.
Chegou a ser considerado que Randolfe apresentasse a proposta de voto em separado junto com Kátia Abreu, e foi ele que fez a defesa do “direito parlamentar ao destaque de matéria” (que se aplica à discussão de leis, mas não necessariamente ao julgamento do impeachment. Sem a conivência de Lewandowski, a tese não seria normalmente acolhida). Em defesa de Dilma, o que por si só já é um problema, Randolfe pode estar comprometendo todo o esforço de seu correligionário deputado Alessandro Molon, o mais duro combatente contra Cunha no parlamento. Que papel o senador vê então para si mesmo, se não é o de seu partido?
Como se nota, o olho para o “jeitinho” oportunista dos envolvidos não se constrangeu em contaminar um julgamento de extrema gravidade, no qual se esperava um bom tanto de rigor e compostura. Como ficou resolvido até aqui (evidentemente alguém vai tentar levar a questão ao Supremo, ainda que não sejam nem o PSDB nem o DEM, por cautela em não colocar em questão o julgamento principal), frustrou todo mundo. Tanto quem acredita em culpa como quem acredita em lisura da ex-presidente. O Brasil parece não falhar nunca na tosqueira. E o PT continua a não conseguir disfarçar que tornou-se algo muito parecido com o PMDB.
(grato ao professor Marcus Fabiano, que chamou minha atenção para a decisão de 1993 do STF)
Siga-me no Twitter (@lex_lilith)
3 notes · View notes
alexantunes · 8 years ago
Text
Protesto e invenção: a arte japonesa de vanguarda em 1950-1970
Tumblr media
Há uma exposição muito interessante em cartaz no Rio de Janeiro, no Paço Imperial, até este fim de semana. Chama-se A Emergência do Contemporâneo: Vanguarda no Japão – 1950-1970. Ela trata do período pós-guerra em que as várias artes emergiram naquele país com um incrível potencial de enfrentamento e provocação.
Digamos que há o cruzamento de alguns fatores, locais e mundiais. Primeiro, todo um contexto internacional, em que a percepção artística e cultural do século 20 foi convergindo as explosões de movimentos de vanguarda, desde as primeiras décadas do século, até uma espécie de “tomada de poder psíquica” com a explosão contracultural no final dos anos 1960.
É interessante como a história do século passado pode ser contada, por um lado, como uma história de guerras e conflitos pelo poder – e, por outro, como uma escalada do espírito humano no rumo da aceitação da liberdade extremada. Não é de espantar que, nos momentos-chave do século, como a segunda guerra mundial e os enfrentamentos libertários do final dos anos 1960 e começo dos 1970, estejam entremeados projetos políticos e culturais (a visão cultural verticalizante dos nazistas e fascistas; a visão política horizontalizante dos movimentos contraculturais).
Evidentemente, não é um processo linear. Podemos encontrar tanto simpatia aos fascistas em uma vanguarda bastante precoce, o futurismo italiano (cujo manifesto foi lançado em 1909), quanto ilusões em regimes autoritários de esquerda, como o maoísta chinês (cuja escalada mais cruel se chamou, sintomaticamente, Revolução Cultural), por intelectuais vanguardistas como Godard. E talvez o percurso mais angustiante nesse departamento seja a passagem das geniais vanguardas russas pós-1917 (no cinema, nas artes visuais, na poesia) para a caretice absurda do realismo socialista – uma revolução com um forte viés estético que burocratizada e derrotada por dentro.
Há um segundo aspecto a ser considerado na questão da vanguarda japa, que é o movimento internacional de descoberta e validação das experiências acontecidas fora da Europa e dos Estados Unidos. Esse é, de certa forma, o foco principal do curador Pedro Erber, um filósofo brasileiro radicado nos EUA e estudioso da cultura asiática, autor do livro Breaching the Frame: The Rise of Contemporary Art in Brazil and Japan (violentando o quadro: a ascensão da arte contemporânea no Brasil e Japão) – nestas matérias, ele introduz alguns paralelos interessantes: aqui n’O Globo e aqui na Folha de S. Paulo
Um terceiro aspecto – e esse é o que mais me interessa –, diz respeito à “liberação de energias” em países que passaram por experiências autoritárias. A Alemanha é um dos casos mais notáveis, e combina também esses três fatores. Gosto de exemplificar com o chamado krautrock, que seria a versão alemã do rock progressivo, na passagem dos anos 1960 para os 70.
Evidentemente tinha um lado hippie, como tudo à época. Mas desde o início, a forte presença de componentes eletrônicos e de uma postura conceitual mostra que aquela música já continha o embrião de uma estética para os anos 1980 e além, para a passagem do século. A primeira geração de artistas a não se sentirem “responsáveis” pelo nazismo, em clima geral de contracultura e especificamente de derretimento da autoridade moral e política de seus tutores no pós-guerra, os americanos, engendrou uma estética fantástica, que se reverbera até hoje.
Não é à toa que John Lydon (ex-Rotten), em sua banda após os Sex Pistols, em 1978, o Public Image, pinçou como uma de suas duas referências o krautrock, para dar continuidade aos trabalhos no pós-punk (a outra foi o dub jamaicano). Igualmente Brian Eno, um dos principais pensadores da música pop, foi beber nessa mesma fonte (ou apropriá-la, diriam as más línguas).
O mesmo movimento de ruptura com os “tutores” americanos está presente na vanguarda japonesa, de maneira bem militante inclusive. Um dos combustíveis do movimento foi a oposição ao ANPO, o tratado de mútua cooperação e segurança entre Japão e EUA que, entre outras coisas, estabelece a presença de bases militares americanas no país. Há um interessante documentário sobre o tema, de uma diretora nipo-americana, que mostra vários dos artistas e grupos abordados na mostra do Paço.
Essa politização, no entanto, não enfraquece em nada a força expressiva dos artistas japoneses. Ao contrário, eles chegaram a causar um certo mal-estar em aliados mais ortodoxos, como alguns membros do Partido Comunista local. No jogo entre intenção política e repertório estético a obra não se enfraquece. O quadro Sunagawa nº 5 – A Base (1955), de Hiroshi Nakamura, exemplar da “pintura reportagem”, sobre os violentos enfrentamentos de suburbanos de Tóquio contra as desapropriações para a construção de uma base, num primeiro vislumbre poderia se parecer com algo entre Guernica e o realismo socialista. Mas aí você olha bem e vê que há, em primeiro plano, um monge bonzo budista completamente fora de escala.
Aí intervém um fator muito interessante. As artes japonesas no século passado, enraizadas nas gravuras eróticas desde o século 17, floresceram desde a década de 1930 num estilo que converge muito confortavelmente com a cultura pop ocidental – não é à toa o fenômeno da invasão dos mangás e animes. É peculiar que, ao mesmo tempo em que o Japão se militarizava e preparava para a guerra, como me lembra minha amiga Dreida Ferraz, a cultura de massa dos ero guro nansensu (erótico grotesco nonsense) já florescesse, num processo que não só não foi tolhido pela derrota na guerra, como foi reforçado.
Uma outra interface interessante da exposição com a cultura pop ocidental é a presença de obras de Yoko Ono, que atuava em paralelo no grupo Fluxus, em Nova York (aqui um belíssimo catálogo da exposição do MoMA em 2012 sobre essas interrelações, bem mais ambiciosa que a do Paço). Foi ela que aproximou o grupo Hi-Red Center, entre outros artistas japoneses, dos multimídias americanos, que já anunciavam influência oriental budista, através do trabalho de John Cage. Não é surpreendente que tenha sido Yoko, com sua mistura de rigor formal e compreensão política, que tenha moldado o beatle John Lennon em sua forma mais vanguardista.
Foi essa potência subversiva própria que impediu que a cultura japonesa fosse absorvida como um mero exotismo de consumo. O recorte da exposição no Rio, no entanto, enfatiza a radicalização nas artes plásticas (há algumas pinturas sensacionais, de Hideko Fukushima, Kazuo Shiraga e Atsuko Tanaka, bem como objetos e instalações de Natsuyuki Nakanishi – na foto –, Katsuchiro Yamaguchi, Sadamasa Motonaga e outros), a entrada em cena de grupos multimídia, e a progressiva passagem para a arte de intervenção.
Assim como na Alemanha, podemos dizer que os impactos dessa época continuam reverberando, inclusive em outras linguagens, como o cinema e a música. E que esse mesmo ambiente radicalizado chegou a gerar, como aconteceu com o Baader Meinhof na Alemanha, um grupo terrorista japonês, a Facção do Exército Vermelho.
Tumblr media
E é aí que chegamos ao assunto Olimpíadas. As Olimpíadas de 1964, em Tóquio, eram encaradas pelo governo japonês como um passo essencial no posicionamento internacional do país – com toda a dose de higienização que isso traz (um assunto que nos é muito familiar). Acontece que, em 1964, o rápido desenvolvimento econômico e urbano, combinado com uma ruptura de valores no pós-guerra, havia transformado Tóquio em uma cidade coberta de lixo. Ruas e rios eram usadas livremente como lixeira.
E o governo decide então fazer uma campanha de disciplina, em que 2 milhões de cidadãos (!) são envolvidos em atividades de varrição e limpeza. Um dos grupos de intervenção à época, o Hi-Red Center, ironizou a campanha em uma performance em que limpava calçadas com escovinhas, com máscaras cirúrgicas. As próximas Olimpíadas, de 2020, serão novamente em Tóquio.
É curioso que, por uma dessas sortes irônicas, o enfoque mais inquieto de Erber tenha virado exposição “olímpica”. No Paço Imperial, ela acaba dialogando muito mais com uma outra mostra fotográfica, do Instituto Moreira Salles, que trata da demolição do Morro do Castelo e a gentrificação da zona central da cidade na década de 1920, do que com outra iniciativa Brasil-Japão, a morna, institucional, bem-intencionada e pueril mostra binacional Turn – Tokyo 2020.
Se bem que, com a disposição para a bizarria típica dos japoneses, o cosplay do primeiro ministro japonês Shinzo Abe, vestido de Super Mario no encerramento da Rio 2016, joga de novo a coisa para o território do imponderável.
Siga-me no Twitter (@lex_lilith)
2 notes · View notes
alexantunes · 8 years ago
Text
Olimpíadas da esquisitice, OU os vacilos sintomáticos de Lochte e Lavillenie
Tumblr media
A fraude do nadador americano Ryan Lochte, que inventou um assalto na noite carioca, é uma das coisas mais bestas e sem-pé-nem-cabeça do noticiário. No entanto, causou uma comoção (agora internacional) que merece atenção.
Primeiro, o acontecido em si: saindo de madrugada de uma festa, Lochte e três outros atletas pararam num posto de gasolina, e resolveram (?) barbarizar o banheiro, quebrando um anúncio luminoso e uma porta, e urinando no chão. Retidos por um segurança, pagaram um troco pelo estrago, e escaparam antes da polícia chegar.
Aparentemente, não era pra tomar essa dimensão toda. Lochte mentiu em uma ligação para a mãe nos EUA, que contou para a Fox Sports, e assim por diante. Veja bem, tudo aconteceu apenas porque Lochte mentiu para a mãe. (Outra tese é de que fez isso para não contar para a namorada o que tinha acontecido de fato). Primeira conclusão: num mundo hipercomunicante, é melhor tomar cuidado com as mentirinhas; elas podem fugir totalmente ao controle.
O americano acabou tendo que depor à policia e falar com a imprensa nos dias seguintes, e então sustentou e enfeitou a história. Falou sobre assaltantes vestidos de policiais, e uma arma apontada à sua cabeça, enquanto ele, possuído de coolness, só dizia “whatever” (os outros três nadadores no mínimo se omitiram, mas acabaram por jogar a responsabilidade sobre Lochte mesmo, quando foram retidos no Brasil para darem explicações pelo outro, que já estava nos EUA).
Quase virou um conflito diplomático, mas as evidências mostradas pela polícia local reverteram a percepção do fato, devolvendo-o à dimensão de um vexame babaca adolescente (mas envolvendo um atleta do primeiro time, de 32 anos). Já ontem, sexta feira, o Comitê Olímpico Americano soltou um pedido de desculpas e a perspectiva de uma punição. Lochter pode perder também alguns patrocinadores bastante importantes.
Outra treta séria-engraçada dos jogos foi a ocorrida com o francês Renaud Lavillenie, que perdeu no embate final do salto com vara para o brasileiro Thiago Braz. E acabou alimentando a polêmica sobre o comportamento sem fair play da torcida brasileira, que se comporta na olimpíada com a mesma “veemência” irracional do futebol.
Para completar, botando dúvida sobre quem realmente tem falta de fair play, seu treinador chamou o Brasil de país bizarro; ao que o jornalista do Le Monde que o entrevistou acrescentou o detalhe de que a derrota poderia ser resultado de forças ocultas, as “forças místicas do candomblé” (risos). A polêmica sobrou para Lavillenie, que teve que amenizar o climão.
Confesso que eu sou daqueles que estava torcendo para dar alguma merda muito grande nas Olimpíadas. Não por antipatriotismo (quer dizer, apenas em parte por antipatriotismo). Mas principalmente porque: a) acho esses grandes eventos meio idiotas, e os prefiro distantes do país, desligáveis junto com a televisão; b) não dá para deixar de lado as barbaridades higienistas e oportunistas que os governos do Rio fizeram, desde a remoção de bairros e pressão repressiva sobre os locais até a destruição de uma reserva natural para fazer o campo de golfe. O prefeito do Rio, Eduardo Paes, converteu-se numa espécie de playboy internacional, cujo trunfo são os jogos.
Essas polêmicas com os gringos meio que fizeram viraram uma outra chavinha interessante. A questão deixou de ser a “entrega limpinha” da Olimpíada que o Rio e o Brasil fariam ao mundo – e que parecia ter começado a dar certo desde a bem-sucedida abertura (bem-sucedida porque dizem; eu não consigo deixar de achar essas encenações muito bregas, sem-noção nem função. Mas eu também não sei porque a Madonna faz coreografias em escadas nos shows dela).
Acontece que o nosso já costumeiro bate-boca ruidoso parece ter contaminado e abduzido o mundo: acabamos usando os americanos e o francês (com uma bobeada deles, evidentemente) para discutir o nosso projeto assim ou assado de civilização. Assim até comecei a gostar da coisa toda.
Evidentemente, sem entrar no mérito mesmo das tretas. Não consigo imaginar coisa mais pateta do que brasileiros pseudomoralistas indo gritar “liars” na saída de dois dos nadadores do depoimento na delegacia (foto). “Mentirosos” quem, cara pálida? Nós locais somos coniventes de assassinato em massa.
Só que os nossos dois “lados” sociais juntos (e não um só deles) representam a continuidade de nossa (saudável) vocação para laboratório social. Isso se dá de uma maneira cada vez mais desagradável, mas enfrentar o mal-estar faz parte desta época; talvez seja exatamente o centro dela. Por trás de falsos embates políticos, como o entre Dilma e Temer, continuamos em busca da solução para a nossa charada existencial.
Fala-se sempre em “complexo de vira-latas”. Discordo do termo. Sim, a nossa é uma condição complexa. E, sim, a imagem do vira-latas a descreve bem de certa forma. Tem a ver com a beleza e o charme do cachorro sem pedigree. Mas não é um “complexo de vira-latas” no sentido de uma disfunção psicossocial comprometedora.
Acho que tem mais a ver com o fato de que continuamos atarantados com o fato de sermos menos (no sentido yang, de eficiência e regramento) do que outros povos, e mais (no sentido yin, de sensibilidade para a autodesimportância) do que esses mesmos outros povos. É por isso que a zoeira nos traduz tão bem – mas a zoeira é limítrofe da truculência.
Houve épocas em que apresentamos sínteses charmosas dos nossos paradoxos, como quando da bossa nova e o fator Guanabara. A era Lula foi outra delas, devidamente arrasada na derrota de sua epígona e diluidora, Dilma. Se um dia conseguirmos resolver essa nossa charada, ainda receberemos agradecimentos mundiais por pagar esses micos em público.
Agora houve algumas tentativas de explicar nosso psiquismo na gringa, como nesse artigo do New Yorker, que trata da nossa vulnerabilidade à percepção estrangeira (adoro a frase “Lochte sem querer tocou no terceiro trilho – aquele eletrificado – da identidade nacional brasileira”). Mas a crítica politicamente correta fez o problema todo voltar na cara dos EUA – como o rápido e incisivo pedido de desculpas do comitê americano atestam.
Dois colunistas usam a mesma imagem, a do ugly american (o americano superior e abusivo) para descrever o escorregão que pode derrubar a carreira (a mais premiada da natação americana recente, exceto por Michael Phelps) de Lochte. Para Mike Vaccaro, do New York Post, “Lochte é tudo que o mundo odeia nos norte-americanos”.
Para Sam Laird, “não é apenas a desventura de um maluquete (...) Tomada no contexto, é vergonhosa. Ela mostra os Jogos de 2016 abaixo de sua superfície de espetáculo. Expõe o núcleo duro do porquê desses Jogos Olímpicos, do que eles representam, ser tão grotesco, em primeiro lugar (...) Lochte não só ofuscou os Jogos Olímpicos por dois dias, prejudicando a atenção dos atletas ainda em competição. Ele também cheira a prepotência, a privilégio, e às polaridades desconfortáveis incorporadas tão profundamente nestes jogos”.
De uma maneira estranha, o Brasil expôs o americano e o francês, e o suposto “direito” yang deles ao mundo, à vitória. A fantasia de bom-moço de Lochte implodiu violentamente quando ele recorreu a uma caricatura do “país perigoso” para sustentá-la. Se fosse nos EUA, como diz meu amigo João Barone, ele nem tentaria, ou dormiria na prisão de macacão laranja. Aqui achou que podia colar, em meio à sensação de desordem geral. Não colou.
Porque temos, sim, alguma espécie de arranjo, de fluxo de funcionalidade correndo por sob a onda do grande desacordo. Só não é o que o Eduardo Paes supõe. A fantasia de vencedor de Lavillenie, com uma ajuda do jornalista francês que “captou” a influência da macumba nas declarações de seu treinador, acabou exposta a um ridículo peculiar. Lavillenie não soube se expressar, mas há sim uma razão secreta.
Com essa brazuquíssima contaminação pelo mal-estar (e não pela zika, ou pelas águas podres), essas olimpíadas afinal serviram nos para alguma coisa.
Siga-me no Twitter (@lex_lilith)
2 notes · View notes
alexantunes · 8 years ago
Text
Marina Abramovic: a mulher tríplice e o Brasil
Tumblr media
Em mais de 40 anos de carreira, a iugoslava (hoje sérvia) Marina Abramovic tornou-se a artista de performance mais reconhecida no mundo. No início, em 1974-75, suas obras envolviam dor física e psicológica. Em uma delas, a mais conhecida, ela se submetia passivamente ao uso de 72 objetos pela audiência. Acabou ferida e com as roupas destruídas. Em outras, se mutilava, drogava, perdia a respiração etc.
Entre 1976 e 1988, trabalhou com seu marido, o alemão Ulay, em contextos em geral menos perigosos, mas ainda muito intensos psicologicamente. O subtexto eram as relações entre homem e mulher. Consideravam o duo uma espécie de entidade única, ainda que a divisão de tarefas na vida do casal, que viajava pela Europa em uma perua, fosse desigual.
Em cartaz em várias cidades, inclusive Rio e São Paulo (já a 12 semanas), o filme Espaço Além – Marina Abramovic e o Brasil de certa forma é uma pontuação nessa trajetória. É o segundo documentário de longa metragem sobre ela em quatro anos (Marina Abramovic – A Artista Está Presente é de 2012), além de inúmeros curtas e um media sobre sua ópera experimental biográfica, Bob Wilson's Life & Death of Marina Abramovic, do mesmo ano. Dá para dizer que Death e os dois longas fazem um belo tríptico sobre a trajetória da artista.
Depois de sua separação de Ulay – que se deu depois de uma longa performance, em que cada um deles caminhava 2500 quilômetros na direção do outro, para um encontro no meio da muralha da China –, Marina superou o baque e tornou-se uma figura cada vez mais midiática e reconhecida. E bem remunerada, superando a dureza da década em dupla.
A Artista Está Presente corresponde ao seu ápice: com uma grande retrospectiva no Museu de Arte Moderna de Nova York, em 2010, Marina chegou a um momento interessante. Virou uma personalidade pop, e a mostra uma ocasião memorável. A performance inédita que criou para a ocasião consistia, muito simplesmente, em ficar durante quase três meses em contato com as pessoas do público, que se sentavam uma a uma, em silêncio, à sua frente, fazendo apenas contato visual.
Poderia ter sido um flop. No entanto, ao deixar de lado conceitos mais bombásticos, Marina depurou e concentrou sua presença num experimento carismático. Foi um sucesso: formaram-se filas cada vez mais gigantescas às portas do museu; as pessoas enlouqueciam por uma vaga para ficar frente a frente com ela, enquanto um monte de gente passava o dia a observar essa quase não-ação (exceto por uma ou outra tentativa de “contraperformance” – gente que aparecia com fantasias ou mesmo nudez; atitudes abruptas – que eram rapidamente controladas).
Bombou nas redes um vídeo em que Ulay aparece no MoMA, e se registra a reação emocional dos dois. Ao contrário do que reza a lenda, ele não apareceu totalmente de surpresa. Como mostra o filme anterior, ele foi convidado para a mostra, e autorizou a releitura dos trabalhos do duo, onde até a velha perua que ele dirigia, e em que os dois moravam, foi resgatada (eu  adoraria saber onde ela estava).
A presença de Ulay no filme mostra que ele não estava totalmente à vontade – ainda que quisesse se colocar numa posição de um certo conforto. A separação havia sido turbulenta – ambos se acusaram de traição e, no caso de Ulay, ele engravidou a tradutora de suas inúmeras viagens à China burocrática para produzir a performance final do casal, chamada Os Amantes – A Grande Caminhada na Muralha. O que para Marina parece ter tido um efeito devastador.
Ele parece insinuar que, de certa forma, ela se adaptou ao mercado com o passar do tempo (Marina se tornaria posteriormente até parceira de Lady Gaga, que aderiu ao seu Método, e de Jay Z), enquanto sua própria obra seria mais “true”. Mas esse é um mito masculino purista recorrente que se desconstrói. O que se observa no filme é que, anos depois, a figura de Marina é mesmo “energeticamente” maior, e não apenas uma construção de marketing. Ela observa que a riqueza é efeito colateral – um efeito colateral que ela adora.
Numa fala muito interessante em A Artista Está Presente, ela menciona as três Marinas: a menina triste e carente, filha de rígidos pais comunistas; a mulher disciplinada, incansável e conceitualmente rigorosa e, finalmente; a mulher sábia e espiritualizada (inspirada por sua avó). Outra percepção que é possível ter a respeito do purista Ulay é que, na real, ele tinha um grau de típica condescendência masculina, que ficou difícil de negociar com a mulher super focada. É quando a suposição de que eram uma unidade colapsa.
Tumblr media
Mas é a terceira Marina, a, digamos, “bruxa”, que nos leva à sua relação com o Brasil, e ao filme nacional, dirigido por Marco Del Fiol. Em suas passagens pelo país, a partir de 1989, quando ela veio pesquisar no interior do país os cristais (que usaria em suas instalações), acabou se interessando muito pela espiritualidade local.
Balançada por outra crise amorosa (certamente menos impactante que a da separação com Ulay mas que, mesmo assim, despertou sua tristeza), e exaurida pela experiência do MoMA, ela veio ao país pela segunda vez em 2011. E pediu para ir de novo a um terreiro, desta vez em São Paulo. Minha amiga, a artista plástica e galerista Mariana Pabst Martins, que foi tradutora dessas conversas, conta que ela estava dividida entre continuar com as grandes performances, ou se focar mais em sua escola.
Num típico lance do funcionamento abramovítico, a saída foi uma terceira: tematizar e performar a consulta ao astral. A partir de 2012, ela voltou mais duas vezes, para fazer um giro brasileiro por lugares de poder, a curadores de vários tipos, e filmá-lo. Assim, passou pelo templo-hospital do médium João de Deus, em Abadânia; pelo Vale Do Amanhecer de Tia Neiva, no Distrito Federal; pela vegetalista Dona Flor em Alto Paraíso; pelo terreiro de Mãe Filhinha, em Cachoeira, pelo fitoterapeuta Rudá Iandê e a xamã Denise Maia, em Curitiba.
É uma jornada tentativa, ao sabor dos acontecimentos (e da vontade do astral, diriam os místicos), com que a crítica mais cética implicou um pouco. Mas o fato é que, em Espaço Além, Marina e o Brasil se miram, e o olhar de um sobre o outro os engrandece.
Num país cindido por embates políticos (que parecem gravíssimos, mas se dão todos em camadas extremamente superficiais da política institucional), a “terceira Marina” vem se consagrar espiritualmente neste nosso laboratório de ancestralidades. O processo todo seria concluído com a exposição Terra Comunal, no Sesc Pompeia (SP), no ano passado.
Além de jogar luz sobre a visão de Marina e algumas de nossas sabedorias, Espaço Além acaba tratando da expansão do feminino nas últimas décadas, e da performance como arte. De certa forma, os questionamentos que recaem sobre Marina tem muito a ver com o empoderamento feminino.
Sua figura, inicialmente torturada (em alguns casos literalmente) num mundo em que ela só cabia como autocobaia provocadora conceitual, vai ganhando ao longo das décadas em estabilidade e (para usar um termo aventado no filme anterior) em presença carismática. O que traz a noção de performance para esse território espiritual (um termo que ela não evita – para ela, a performance é cada vez um fato mais energético do que lógico).
Suas duas experiências com ayahuasca em Espaço Além: uma marcada pela peia, em que ela vomita e defeca compulsivamente, e uma em que ela adentra finalmente o transe tranquilo, após as limpezas, representam uma jornada conhecida para os usuários do chá. O trabalho com Denise e Rudá proporciona uma certa conclusão interna do processo.
Dá para vislumbrar, no filme, uma certa transição da artista da firmeza formal para a firmeza sutil – e as escolhas da direção e da produção tratam esse território movediço com delicadeza e integridade (além de rigor estético). Para os espíritos capazes de apreenderem essas sutilezas, que se dão à margem da lógica, é uma bela experiência a ser partilhada.
Siga-me no Twitter (@lex_lilith)
3 notes · View notes
alexantunes · 8 years ago
Text
Feliciano, Biel e a lógica abusiva OU como funciona a cultura do estupro
Tumblr media
Está caindo a casa do deputado Marco Feliciano. Acusado de abuso violento por uma jovem correligionária, youtuber e militante da juventude do PSC,  Feliciano está agora enredado numa aparente tentativa de abafamento e ocultação.
A explicação mais insider, exceto a do professor dela, Hugo Studard, da UNB, que expôs o caso, é esta aqui, do colunista Leandro Mazzini (com esta atualização), que vinha conversando com a moça e teve acesso à troca de whatsapp entre ela e o “pastor”. (Aqui um cache mais explícito de uma nota apagada numa outra coluna, aqui uma postagem do professor explicando porque fechou seu perfil no facebook, e aqui o vídeo com a negação dela, que também foi logo apagado.) Ou seja, nos próximos dias certamente será possível acompanhar mais desdobramentos do caso. O deputado, que gosta de manipular a causação, certamente vai pagar um custo por sua notoriedade moralista.
Mas o que me interessa desenvolver aqui é não o fato em si, mas a conversa no whatsapp. Anteontem, o cantor Biel, aquele que foi denunciado pela repórter Giulia Pereira por comportamento abusivo em uma entrevista em maio, voltou ao assunto para afirmar que gostaria de dizer a ela que “sua carreira (a dele) foi prejudicada”. Giulia, além de ouvir durante a entrevista que Biel “a quebraria no meio” (sexualmente), acabou demitida do IG, assim como sua editora, Patrícia Moraes, que optou por não abafar o caso.
Diz Biel agora: "Eu queria primeiro deixá-la ciente do quanto ela prejudicou minha carreira. É um trabalho de anos, não só meu, mas de um grupo empresarial, de uma gravadora. Ao mesmo tempo, queria agradecer porque eu aprendi muito com isso e poderia ter sido muito pior. Presenciei tudo e sei o quanto estávamos em clima de descontração. Errei por ter feito as brincadeiras que fiz com uma pessoa que não conheço”.
É interessante a escolha de palavras. Biel “presenciou tudo”, teve “prejudicada” sua carreira, que aliás é um investimento não só dele, mas de um “grupo empresarial”. Se, eventualmente, errou, foi por conta de ter feito “brincadeiras” em um “clima de descontração”. Ou seja, na real Biel não aprendeu nada, a não ser que deveria ser mais ardiloso em seus assédio, ou coisa que o valha. Como disse meu amigo, o publicitário Jean Boechat, “gostaria de ‪#‎DeixarCiente como Elisa Samudio e seu ‘sumiço’ prejudicaram o goleiro Bruno” (#DeixarCiente foi uma tag criada ontem para tratar dessas inversões lógicas).
Agora às conversinhas de Feliciano. Destaques meus: “Jovem, a carne é fraca”. “Você é uma moça linda, atraente, sofreu um abuso assim como eu”. “Vem aqui que eu curo você”. E depois: “Quem vai acreditar em você?”. “Não adianta bloquear minhas ligações (...) Com certeza você já contou para seu namoradinho? E se ele ficasse sabendo da história por mim? Certamente ele me daria muito mais credibilidade, não acha? Afinal eu fiz o mesmo com o Tiago e ele te trocou fácil pela vice prefeitura. Pra onde você tentar fugir eu vou atrás de você. Sabe o que mais tenho saudade? De te agarrar e ficar olhando para sua carinha linda de choro gritando não”.
Tumblr media
Aspecto a) assim como Biel acha, há uma ordem natural, espontânea, segundo a qual uma moça atraente atrai... abuso. Como os cristãos acreditavam na idade media (e eu também ouvi isso pessoalmente de um importante rabino), a mulher É esse fator desestabilizador que atrapalha a realização, o investimento masculino, com sua tentação.
Aspecto b) obviamente só resta aos homens (e à sua lógica de investimento) criar uma rede de autodefesa em que não é problema fazer uso da mentira sistemática e da brodagem acobertadora (“E quem vai acreditar em você?”), para reduzir os danos.
Do aspecto c), um pouco mais sutil e complexo, falarei mais adiante. Não estou especificamente interessado em desconstruir Feliciano para sua própria base moralista, ainda que ache uma graça irônica na treta – para quem tem um mínimo de inteligência, Feliciano (e Biel, e o goleiro Bruno) já deixaram claro a que vieram: são apenas graus diferentes da mesma lógica de manutenção de poder.
Aqui entro na discussão de se existe ou não uma “cultura do estupro”. Para mim é óbvio que sim: é o funcionamento naturalizado do patriarcado. Não interessa muito se alguns homens têm mais freio moral que outros, e conseguem se conter (até porque, se não conseguirem se conter, terão as mesmas garantias).
Mas naturalizado não é natural. A natureza, mesmo no que ela tem de violenta e amoral, não entende nada de “subterfúgio”. A natureza prescinde de pretextos para ser o que é, movida por seus ciclos e pulsões irracionais (ou seja, por lógicas que não compreendemos, e que nos transcendem).
É a humanidade – e mais especificamente sua fase patriarcal – que introduziram essa dimensão de inquietação. Só que a resolveram da pior maneira possível, que é fazer a merda (porque é inevitável), e depois ter estruturas para varrê-la para baixo do tapete (porque a lógica do investimento não quer perder muita energia com contratempos). Assim, Biel, Feliciano e o goleiro Bruno são partes de um negócio, de uma política e de uma cultura, e só serão incomodados se fizerem muita merda – e ainda por cima derem o azar de sua posição ficar insustentável.
O terceiro aspecto de que eu queria tratar é típico dos traumas abusivos. Notem a estranha passagem em que Feliciano diz “se identificar” com a moça, por também ter sido vítima de abuso. E depois que tira prazer do pavor dela negando-lhe os avanços. É um mecanismo conhecido de reproduzir o abuso.
Essa contaminação/ possessão pela perversão é uma questão central para a humanidade hoje. Afeta desde as relações pessoais até o destino do país (por exemplo, porque Lula e o PT, que chegaram a liderar um processo de transformação real da sociedade, deixaram-se envolver “pragmaticamente” pelos esquemas de sustentação corrupta das campanhas?).
Tanto a vítima de Biel, aos 21 anos, quanto a de Feliciano, aos 22, estão na idade em que as mulheres, antigamente, estavam se convencendo de que tinham que ficar quietas diante de certos “fatos da vida” (not), para manterem uma posição dentro do jogo (masculino) de poder. Hoje, ao contrário, a disseminação de ambientes feministas faz com que se sintam empoderadas (sim, eu gosto do termo) para sustentarem suas denúncias, quando são incomodadas.
Se a vítima de Feliciano aparentemente recuou, é por conta do formidável dispositivo de convencimento/ intimidação que é posto em funcionamento nesses casos. Mas não se engane: não é só porque Biel e Feliciano valem dinheiro e votos; esse mesmo funcionamento se dará em qualquer escala onde haja homens.
Acredito no poder social transformador do feminismo (e só nele) porque homens e mulheres veem, sim, de lugares diferentes esses funcionamentos, sem nenhuma simetria de percepção. Consideremos por um instante que as mulheres são natureza (e não “tentação”), e os homens são cultura (do estupro, e de sua contraface, a noção de pecado). Como o tal Tiago citado por Feliciano, para um homem é mais naturalizado aceitar a corrupção, a conivência em troca de vantagens – enquanto para as mulheres o natural está se tornando jogar a merda no ventilador.
Essa é obviamente uma redução, mas uma redução útil. Um incômodo necessário. Porque a reinvenção da cultura humana em outros parâmetros, a reordenação radical de nossos hábitos, depende não de “boa vontade” (idealizada, yang). Mas dessa fonte de desconstrução impaciente do que é imposto como regra de convívio.
Siga-me no Twitter (@lex_lilith)
3 notes · View notes
alexantunes · 8 years ago
Text
Porque o disco “errado” dos Mutantes é um barato – e o que a MC Carol tem a ver com isso
Tumblr media
Nas redes, andou rolando uma discussão interessante – mas que não tem resposta definitiva. É sobre se a nova música da MC Carol, chamada “Delação Premiada”, é alguma espécie de traição, oportunismo ou indignidade.
Basicamente porque a MC era conhecida por funks toscos/ desconfortáveis, como “Tô Usando Crack” (“larguei minha família/ a escola você sabe/ vou perder os meus amigos/ se prostituir faz parte”) e “Meu Namorado É Maior Otário”. E, meio que de repente, fez um trap (um subgênero mais denso do hip hop), com uma letra politizada, “Delação Premiada”. Muita gente gostou, algumas pessoas odiaram.
Claro que essa é uma descrição simplificada. MC Carol mesmo sempre disse que atirava em várias direções. Também não é sua primeira colaboração com o produtor Leo Justi – um cara de “boa origem” que começou menino na música erudita, e acabou sendo uma das pontes entre o funk de favela e as festas brancas.
O detalhe é que a eletrônica brasileira está de novo bem posicionada no exterior; há inclusive outra polêmica, se existe ou não um gênero “brazilian bass” (uma derivação do trap e do bass americanos). Um pouco de credibilidade de favela pode ser bom tanto para os negócios de Justi quanto de Carol – não esqueçamos que, há mais de 10 anos, o americano DJ Diplo impulsionou um esboço de carreira internacional para a funkeira roots Deize Tigrona (que hoje trabalha como gari no Rio de Janeiro).
O que irritou os fãs da MC Carol “pura” (?) é que, além de considerarem a produção de Justi piorada (apesar de melhorada, se é que vocês me entendem), acharam a letra feita muito sob medida para agradar universitário esquerdista “antigolpista” (inclusive dá uma sacaneadinha na operação Lava Jato).
E o que isso tudo tem a ver com Mutantes? Outro dia rolou, pela primeira vez em São Paulo, na série do Sesc Belenzinho dedicada a álbuns clássicos, o show dos Mutantes fase progressiva, do disco gravado sem Rita nem Arnaldo em 1974. Eu já fui sabendo que ia gostar – ouvi muito o disco à época –, mas foi uma quase-revelação ouvir como esse repertório faz sentido, e é bacana de ser retomado.
Acontece que Tudo Foi Feito Pelo Sol é o “disco errado” do grupo. De fato, o guitarrista Sérgio Dias e sua excelência instrumental era um dos componentes da tríade inicial dos Mutantes, com o charmoso desassombro de Rita Lee e a intensidade de Arnaldo Baptista. Num approach inicial, pareciam os três jovens engraçados e criativos.
Mas, aos poucos, foi-se percebendo mais na trajetória do grupo a divisão de papéis: a divertida Rita era, num certo sentido, a personalidade mais forte. Depois de muitas idas e vindas, Rita resolveu jogar de vez a toalha em seu relacionamento com um Arnaldo errante. E ele, o compositor central do trio, entrou em um processo depressivo, que está perfeitamente retratado no (brilhante) disco solo Lóki? (“desculpe, mas eu vou me fechar”).
Sempre houve alguma pressão para que Rita saísse em carreira-solo – principalmente do boss da PolyGram, André Midani, que via óbvias possibilidades de sucesso popular. Era só ela querer. E o “inimigo” de Rita dentro dos Mutantes acabou sendo o advento do rock progressivo, muito focado em arranjos complicados e excelência na execução. Tinha havido uma busca por peso e complexidade no quarto e quinto álbuns da banda, Jardim Elétrico (1971) e Mutantes E Seus Cometas No País Dos Baurets (1972), mas até então nada que colocasse em questão a graça e a exuberância, a popice espontânea de Rita.
Numa das vezes que ela voltou de férias das tretas com Arnaldo, trazendo um sintetizador moog da Europa, ainda teve que ouvir que não seria ela a tocar o instrumento, por não ser tecladista habilidosa. Além da crescente pretensão artística, Arnaldo já estava entrando em uma fase bem noiada. Rita foi cuidar da saúde. O moog da discórdia está lá, entre outros teclados que ela mesma toca, em seu disco próprio Atrás Do Porto Tem Uma Cidade (esse é seu terceiro solo, mas o primeiro feito sem a colaboração e o comum acordo com os ex-parceiros).
Como quando tocava o theremin nos Mutantes, Rita sabia que timbres diferentes se prestam a dar cor e variação aos arranjos, e não necessariamente mostrar maiores habilidades solistas. Arnaldo ainda gravaria um disco com o irmão, O A E O Z, uma experiência lisérgica e meio desconjuntada que acabou engavetada por 19 anos, só sendo lançada em 1992. Quando Arnaldo também saiu, em 1973, estava pavimentado o caminho para os Mutantes consistentemente prog – os Mutantes de Serginho.
No processo, os Mutantes tinham perdido também o baterista Dinho, por um problema na mão, e finalmente o baixista Liminha, por desentendimento com Serginho, segundo relata o baterista substituto, Rui Motta, em texto no seu site. Com uma cozinha do Rio (Rui e o baixista Antonio Pedro) e um mineiro radicado na cidade (Tulio Mourão), a banda mudou sua base geográfica, indo ensaiar em Itaipava, distrito de Petrópolis.
E aí sim o som “aconteceu” de novo. É importante notar que, ao contrário dos Mutantes sem Rita de O A E O Z, essa não era uma banda em crise de identidade. Era um combo em perfeita condição de coesão e evolução. Rui, Antonio Pedro e Túlio tinham tocado numa boa banda prog carioca, o Veludo Elétrico (depois Veludo), por onde também passaram Lulu Santos e Fernando Gama, antes de fundarem o Vímana.
Seu blend de prog e hard rock não-simplório (pense em Deep Purple), mais toques de fusion e “rock rural” (o nosso rock fundido com música brasileira), convergiam para um território muito interessante, junto com as guitarras cada vez mais processadas e space de Serginho. Várias músicas ainda eram parcerias com Liminha, mas foi o jovem time que as escolheu e formatou.
É duro chochar Arnaldo, mas a obsessão dele com os órgãos de Tony Kaye (Yes), assim como a passagem de Liminha para um baixo Rickenbacker timbrado como o de Chris Squire, e os vocais cada vez mais pomposos, tinham deixado nossa banda mais original – ao lado de Novos Baianos e Secos & Molhados – com uma improvável cara de pastiche. (Arnaldo sacudiu essa lombra esquisita assim que partiu para o solo, recuperando totalmente sua verve, mesmo que em meio à forte melancolia – ou por isso mesmo.)
Com a nova formação, o único elemento meio duvidoso que persistiu foram os vocais de Sérgio, estranhamente pedantes, e com toques meio constrangedores de misticismo cristão (“Deus criou os anjos para nos guiar”) nas letras. Evidentemente que esses Mutantes já não tem nada a ver nem com Rita nem com Arnaldo – mas, para nossa sorte, também tem pouco a ver com o progressivo mais banal (a alcunha “tudo foi feito pelo Yes” se adequaria mais a O A E O Z, exceto talvez pela faixa-título, que tem algo do melodismo do hit “Soon”, fundido ao clima mineiro trazido por Mourão).
Em tese, eu já sabia disso tudo. Mas fui ao show do quarteto que gravou o disco (e um reforço de Esmeria Bulgari e Fábio Rehko nos vocais) com uma expectativa, digamos, mais nostálgica, em busca da vaibe que aquele repertório tinha sustentado na minha adolescência. E, no entanto, essa banda se mostrou absolutamente afiada e pertinente. Com uma ajudinha do público, que sabia as letras e reagiu com absoluto entusiasmo, foi um momento de redescoberta; tudo muito potente e empolgante.
E veja que, tecnicamente, houve alguns problemas. A pedaleira digital e o ampli Fender Twin de Sérgio não faziam muito jus aos timbres de encorpados do disco. No segundo dia de show, duas cordas de guitarra se quebraram, o roadie deixou a guitarra no início sem alavanca. O violão estava com um som muito estalado, que fez com ele tocasse sem fluência.  Ou seja, para Serginho, que geralmente é um perfeccionista, as coisas estavam meio encantadas. Nas sucessões de improvisos alternados com Túlio é que a coisa desencantou.
A cozinha, por outro lado, atingiu a perfeição. Rui Motta é um dos melhores bateristas de rock do Brasil. Faz umas viradas complexas, mas muito sólidas e precisas – e visualmente é como se não estivesse fazendo o menor esforço. Soube depois que ele passou recentemente por problemas sérios de saúde, o que deixa sua excelente forma ainda mais surpreendente.
E o baixista Antonio Pedro, figura que depois dos Mutantes faria história com a Blitz (tendo ainda tocado com Raul e Tim Maia, como ele conta nesta entrevista), é um parceiro à altura de Motta, com um suíngue branco e viril que remete aos grandes baixistas progressivos – talvez mais a John Wetton (King Crimson) do que a Chris Squire.
Para quem não tem ideia desse repertório, eu destacaria duas músicas, “Deixe Entrar Um Pouco De Água No Quintal”, que ilustra essa habilidade em costurar, à moda progressiva, rápidas passagens musculares, filigranas pianísticas, guitarras espaciais e até uns compassos de boogie woogie, sem falar no engraçado sotaque paulistano de Sergio.
E esse espetacular instrumental de Túlio, “Pitágoras”, em que o tecladista mostra seus dotes de piano erudito e fusion. As entradas dos ton-tons processados, do baixo sincopado e do synth sequenciado são cavalares – acima dos quais vai pairar a guitarra “fraternidade branca” e depois o violão de Sergio. Nível de excelência Egberto Gismonti, em sua fase correlata – à mesma época.
Também me faz pensar no melhor do prog latino, como o argentino Crucis, ou os italianos PFM e Goblin, mais do que Genesis, Yes ou Pink Floyd. Talvez um momento particularmente inspirado e não-farofeiro de Rick Wakeman. Ou seja, coisa finíssima. O disco saiu pela Som Livre, bem anunciado na TV. Isso numa época em que Pink Floyd era o tema do Jornal Nacional e a “Toccata” de ELP/ Ginastera anunciava seguros no horário nobre.
Com o tempo, entretanto, esse disco acabou ganhando uma certa má fama. Isso aconteceu por uma combinação entre o bullying contra o prog promovido pelo punk, que no Brasil colou após a virada da década de 1980 – e cujos efeitos só estão sendo superados agora –, e a ausência de outros Mutantes fundadores. Como se a marca tivesse sido abusada.
O que me leva de volta à MC Carol. Por menos que o funk tenha a ver com a estética do rock progressivo, eles têm em comum uma charada a resolver. É aquele momento em que um subgênero musical, depois que é parido (ou talvez gerado espontaneamente, no sentido abiogenético do termo; ou talvez expelido pelo espelho do zeitgeist), olha para seus traços constitutivos, e vê neles uma regra, e mesmo alguma espécie de código ético.
Como Motta conta em sua memória, os Mutantes foram cobrados, em 1978, pelos exilados brasileiros em Milão, a amplificarem a revolta política, mas eram apenas “militantes de sua própria música”. Tem uma certa graça histórica que a MC Carol esteja sendo cobrada exatamente por politizar seu texto (”a direita é a nova esquerda”, alguém escreveu outro dia).
É nesse momento, da passagem yin do conteúdo recém-desvelado para o domínio regrado do yang, que também se geram confusões e cobranças; sinceros reposicionamentos no território e oportunismos. No caso dos Mutantes, sequer há um momento de pureza inicial: a própria estética da banda é produto de uma colisão. Entre aqueles três guris paulistanos que gostavam de Beatles e de compor em inglês, e uns baianos que mediram a potência da contracultura mundial com os instrumentos da antropofagia local.
No funk e na trajetória da MC Carol, aliás, também tudo é antropofagizado desde o início. Não há formas puras na cultura pop. Tudo foi derretido pelo sol.
Siga-me no Twitter (@lex_lilith). A foto é cortesia de Bolivia e Cátia Rock, e alguns aspectos técnicos foram debatidos com o meu amigo guitarrista Nelson Coelho.
4 notes · View notes
alexantunes · 8 years ago
Text
A eleição para a presidência da câmara e o fim da fase alucinatória
Tumblr media
O momento em que a fase alucinatória da política brasileira recente foi induzida bem sabemos: foi a reeleição de Dilma, em que o pensamento mágico substituiu o discernimento. Nem vou repetir pela enésima vez a reclamação sobre a campanha criminosamente ilusória e chantagista que o PT empreendeu, coroando um histórico de desacertos. O resultado foi um desgoverno ao mesmo tempo trapalhão, dúplice (entre o que tinha que ser feito e o que era possível a ele fazer) – e urrando por ser derrubado.
Com o avanço do impeachment, seguiu-se uma outra camada de confusão. Boa parte dos eleitores petistas não quis dar o braço a torcer e fazer a autocrítica (os eleitores do PT se parecem com seu partido nisso), engajando-se na narrativa da “resistência ao golpe”. É evidente que não estou fazendo a defesa do governo Temer – só dizendo que, nesse paradoxo entre o que tem que ser feito e o que é possível fazer, o governo Dilma e o governo Temer se parecem muito. São igualmente fracos e chantageáveis (o que, por outro lado, para o avanço das investigações da corrupção sistêmica, acaba não sendo nada mal).
Acontece que, após a renúncia de Eduardo Cunha à presidência da câmara dos deputados, começa a emergir aos olhos um outro “layer”, que não corresponde à narrativa das fases anteriores. Mas que, de certa forma, se parece mais com o que seria a nossa realidade política profunda. Vejamos dois aspectos da eleição que parecem desajustados – a) a divisão da base de Temer entre dois candidatos principais, um do chamado centrão (fisiológico), Rogério Rosso, e outro do DEM, Rodrigo Maia, entre mais de uma dezena de outros; e b) a conversa que quase prosperou, do apoio do PT a Maia.
E um aspecto “justo”: c) a anticandidatura de Luiza Erundina. Independentemente do resultado (escrevo na terça feira, dia anterior da votação), esse mosaico faz muito mais sentido do que “Temer vs. Dilma”. Dois presidentes que, tirante as análises moralistas, vêm a ser mais ou menos a mesma coisa, como eu dizia.
O primeiro componente a considerar é o que é o tal centrão. Em 1993, o Lula deputado federal afirmou, com correção, que havia na casa “uns 300 picaretas que defendem apenas seus próprios interesses”. Já foram chamados também de “baixo clero”, e responsáveis por vários vexames. O problema é que, ao chegar à presidência, em 2003, Lula decidiu construir uma maioria parlamentar precisamente com a compra dessa(s) quadrilha(s), instalada em legendas de aluguel.
Estourou o escândalo do mensalão, e Lula teve que comprar ainda um outro apoio, do qual fugia até então: o do PMDB. Quando Dilma declara, bizarramente, que a “aliança com o PMDB de Temer foi seu maior erro”, é o caso de se perguntar onde ela estava nesses anos todos (estava no ministério de Lula, e depois na presidência, ou seja, sendo salva – e chantageada – pelo PMDB a maior parte do tempo).
Quem traiu as expectativas de seus próprios eleitores, e os jogou de volta no colo daqueles que queriam evitar – os fisiológicos dos partidecos, e os fisiológicos do PMDB – foi o PT. A força do centrão hoje, e a força que o PMDB mantém, têm tudo a ver com as apostas políticas que o PT fez nesses 13 anos. Não há muito do que reclamar.
Posto isso, há picaretas de vários graus no PMDB; e, apesar da tentativa de identificar Temer com o que o partido tem de pior, isso não é verdade. Inclusive é o contrário. Temer, que é mais conivente do que propriamente corrupto, só pode aspirar à derrubada de Dilma porque pertence ao setor mais responsável e relativamente “limpo” do partido (o que também não é garantia de grandes coisas).
Assim, não é surpresa nenhuma que a fragmentada base de Temer (que agrega uma enorme quantidade de traidores de Dilma) produza mais de uma dezena de candidatos à presidência da casa. Dos quais aqueles dois citados, de qualquer modo, parecem ter mais viabilidade real. Rosso (PSD) é a síntese mesma da picaretagem. Aliado de Eduardo Cunha, cria de Joaquim Roriz e José Roberto Arruda, ou seja, filhote de três dos maiores ficha-suja do país, e denunciado como participante de esquemas no Distrito Federal.
Mas o que representa o oponente dele, Rodrigo Maia? Por que, mesmo tendo votado a favor do impeachment de Dilma, ele mereceu uma articulação entre Lula e Waldir Maranhão, contra Cunha, que quase leva o PT (e outros políticos fiéis da ex-base de Dilma) a votar nele na eleição de hoje? E, ainda por cima, ao lado do PSDB? O fato é que, como eu dizia, o layer que emerge não é mais o “fla-flu” da disputa entre Temer e Dilma – quando muito, há apenas um resquício da agonia de Cunha (e mesmo nesse só falta cravar a estaca; já é um morto vivo na política nacional, ainda que não o seja na casa dos deputados).
A posição de Temer foi a de que o próprio PMDB não lançasse candidato,  para não aumentar a disputa e a confusão em sua base (e os candidatos do partido que se apresentaram parecem mesmo destinados à figuração, à eventual exceção de Marcelo Castro e Carlos Marum, como veremos). A Temer só interessa baixar a temperatura, apoiar quem apresentar uma mínima consistência no trânsito parlamentar, e a manter as condições para se livrar de Cunha assim que possível. E a Cunha só interessa Rosso (que Temer aceita, se for esse o caso – como teve que aceitar André Moura, outro fisiológico do centrão, na liderança do governo na câmara).
Ao PSDB interessa se concentrar na disputa da presidência no ano que vem, não nesse mandato-tampão de seis meses. Assim, não seria incoerente que PSDB e PT estivessem no mesmo barco – votando em Maia, do DEM (com o PPS e o PSB também). Simplesmente porque seria uma chance de ser minimamente responsável, e roubar um pouco de protagonismo do tresloucado centrão (que parece ser completamente alheio à percepção das ruas). Isto é, investir um pouco em estabilidade e contenção, da qual o próprio Lula poderia se beneficiar politicamente lá na frente. O próprio Temer, na terça, deu uma discreta sinalizada de simpatia a Maia.
Acontece que, para a narrativa “antigolpista” dos petistas, apoiar Maia não serve. O blogueiro “progressista” (AKA bancado pelo PT) Breno Altman, por exemplo, implicado no caso Celso Daniel e no do doleiro Enivaldo Quadrado (ambos investigados pela Lava Jato), escreveu que PT e PC do B estavam “brincando com fogo” ao apoiar o demista. É nesse contexto que surge a candidatura Erundina. Nas palavras de outro veículo “progressista”, ela veio para “colocar o PT na parede”.
Sob bombardeio de lideranças petistas como a senadora Gleisi Hoffmann (cujo marido, o ex-ministro Paulo Bernardo, passou seis dias preso, por conta da investigação de desvios de empréstimos consignados de funcionários públicos federais), o partido acabou fechando questão contra o voto em Maia. Assim sendo, não sobrava em quem os deputados do PT votarem – enquanto o tempo para outras articulações se esgotava. Até no pitoresco Fernando Giacobo, aquele que ganhou doze vezes na loteria, se falou.
Porque seria complicado passar recibo para Erundina, que também está se credenciando para disputar o voto de esquerda contra o prefeito petista Fernando Haddad, na cidade de São Paulo. Ontem, surgiu a candidatura do peemedebista Marcelo Castro, o último do partido a abandonar o ministério de Dilma, e que votou contra o impeachment. Temer não gostou, mas Castro parece ter resolvido um pouco o potencial vexame do voto petista - superando o aliado de Cunha Carlos Marun na preferência da bancada.
Erundina já sabe que, na câmara, não vai levar, mas diz: “às vezes, o processo é mais importante do que o resultado. Esse jogo no congresso precisa ser desmascarado. Nossa candidatura é para alertar a sociedade para isso”. Ela surge, portanto, como anticandidata, termo historicamente consagrado por Ulysses Guimarães em 1974, quando disputou sem chances a presidência da república no colégio eleitoral indireto da ditadura militar, para marcar posição.
Acontece que, no igualmente fragmentado cenário da disputa da prefeitura paulistana, a candidatura Erundina empolga. E pode vir para valer, dessa vez. Não esqueçamos que Erundina seria vice de Haddad, e só abandonou a chapa por causa do apoio de Maluf (incluindo o vexaminoso photo op com Lula). Aos 81 anos, no PSOL (mas aspirando ao seu próprio partido, o Raiz), Erundina se vê na posição de dar lições ao PT, partido que abandonou, pela esquerda, em 1998.
Não seria exagero dizer que o que destrói a política brasileira são os aqueles que: a) não acreditam nada em ideologia: os picaretas; e b) aqueles que acreditam piamente em ideologia: os sectários. Nesse sentido, tem toda a razão a Erundina em se propor a expor e explicitar o processo, que tende totalmente aos conchavos de bastidor (inclusive pelo fato do voto ser secreto).
Porque não há como levar o jogo político a sério, mas também não há como fugir dele. Só a combinação desassombrada de um certo principismo com uma certa disposição para o jogo é que faz o processo avançar. Foi nisso que o PT falhou: ao abrir mão de qualquer principismo, e se jogar pelado e embriagado no jogo. Agora é tarde para alegar dignidade. O PT está descobrindo que, por mais que bata no peito, simplesmente não cabe nesse novo layer da política que emerge – assim que passar a alucinação.
Atualização: o prazo de inscrição, a meio dia da quarta, se encerrou com 17 inscritos, inclusive um candidato do PT e um do PC do B, para garantir vagas para alguma composição de última hora. É uma das mais fragmentadas e imponderáveis eleições para a presidência, incluindo a de 2005, que levou à eleição de Severino Cavalcanti e ao maior vexame da casa. Severino renunciou depois de sete meses, pressionado por um processo de cassação após denúncias de corrupção.
Siga-me no Twitter (@lex_lilith)
2 notes · View notes
alexantunes · 8 years ago
Text
Meio grama de sabedoria: um curso sobre as ciências psicodélicas
Tumblr media
Ao longo dos anos 1960, as questões relativas à psicodelia tiveram um notável impulso. Não só nas artes – que é o que sempre vem primeiro à mente –, mas nas pesquisas científicas também.
As ciências psicodélicas são associadas, nesse período, a figuras brilhantes como Timothy Leary e Richard Alpert, que trabalharam em Harvard ministrando LSD em condições controladas; a Carlos Castaneda, cujas pesquisas antropológicas o transformaram em xamã e autor de best sellers; a John C. Lilly, que inventou a câmara de isolamento sensorial e desenvolveu experiências inusitadas como a comunicação com os golfinhos, e vários outros pesquisadores.
Mas também foi um período turbulento, que desembocou numa época de restrições – em boa parte graças à subversão com que a bombástica mistura de ciência, estética, política e misticismo tinham ameaçado a caretice ocidental e sua estrutura de pensamento.
O fato é que essa vertente veio se desenvolvendo durante boa parte do século. Já em 1937, o biólogo Richard Schultes, que se formou com uma pesquisa sobre o cacto alucinógeno mexicano peyote – e seguiu pesquisando outras plantas de transe em seu mestrado e doutorado (foi o primeiro acadêmico a estudar o chá amazônico ayahuasca). A ideia de que essas substâncias eram uma passagem para a transcendência e o autoconhecimento influenciou escritores como Aldous Huxley, William Burroughs, o poeta Allen Ginsberg e o próprio Castaneda.
Huxley tinha escrito o romance distópico Admirável Mundo Novo em 1932, em que falava do uso da substância ficcional Soma (cujo nome é inspirado no de uma mítica bebida védica, derivada de uma planta que nunca foi definida com clareza, podendo ser algum cogumelo, arbusto ou mesmo maconha). No livro, Huxley antecipa o uso socialmente alienante dos alteradores de consciência mas, 30 nos depois, em sua obra final, A Ilha, descreve uma sociedade utópica, em que as substâncias têm um papel positivo).
A leitura da ficção de Huxley foi a influência primária de Lilly – que desenvolveria mais tarde pesquisas científicas reais e bastante arrojadas (inclusive em ambientes militares, o que foi bastante inusitado).  O botânico Robert Gordon Wasson seria o primeiro a introduzir a noção de transe transcendental ao grande público, num artigo para a revista Life em 1957, chamado Em Busca Do Cogumelo Mágico. Essa matéria motivaria a primeira viagem psicodélica de Leary ao México.
Em 1938 o químico suíço Albert Hoffman havia sintetizado o LSD e, em 1943, acidentalmente, descobriu a viagem de ácido. No final da década de 1940, o psiquiatra inglês Humphry Osmond começou a estudar as implicações moleculares e fisiológicas dos alteradores. Foi ele que, em 1953, ministrou mescalina a Huxley, que transformaria a experiência no livro As Portas da Percepção (1954; inspiração para o nome da banda de Jim Morrison, The Doors). Também foi Osmond que em 1957 propôs o termo “psicodélico” (do grego phanerothyme, ou manifestação do espírito). Huxley comemorou com um versinho: “para fazer do mundo trivial: sublime/ tome meia grama de phaneothyme”).
Toda essa trama magnífica e intrigante é o assunto de um curso online que eu recomendo, chamado exatamente Ciência Psicodélica. O professor é o doutor em neurociências, mestre em psicofarmacologia e biomédico Eduardo Schenberg. Com pós-doutorado no Imperial College de Londres, é o único brasileiro com publicação científica sobre o LSD, além de estudos sobre ayahuasca e ibogaína. Eduardo tem prêmios da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC), da European Brain and Behavior Society (EBBS) e da International Brain Research Organization (IBRO).
Eu já falei dele a propósito do primeiro estudo clínico com MDMA no país, no texto Psicodélicos Para A Paz: O Ecstasy Antiguerra No Brasil (a campanha mencionada foi bem-sucedida, com 106% de arrecadação) . Se você gosta do assunto, vale a pena dar uma olhada no link, onde eu desenvolvo um pouco essa história: de como as pesquisas foram tolhidas e, mais recentemente, retomadas.
As dez aulas do curso abordam e sistematizam essas conexões todas (veja o programa abaixo). Esses pioneiros tomaram diferentes rumos nos anos 70 e 80 – o provocador Leary, por exemplo, depois de se candidatar a governador da Califórnia (a música dos Beatles “Come Together” foi escrita por John Lennon para sua campanha, em 1969), saiu dos EUA fugindo do FBI, rumo a Cabul, com a ajuda da organização terrorista Wheatermen.
Já seu parceiro Alpert foi para o lado da pura espiritualidade, adotando o nome de Ram Dass (essa ruptura, durante a era Reagan, entre contestatários e contemplativos, é bem significativa – e, de certa forma, se reproduziu no Brasil nos embates entre os adeptos do protesto e da luta armada, e os tropicalistas e demais “bichos grilos”).
Mas outros cientistas fascinantes se inseririam na linhagem. O bioquímico russo-americano Alexander “Sasha” Shulgin, o maior pesquisador e sintetizador independente de alteradores de consciência; o etnobotânico Terence McKenna (da tese de que os cogumelos são condutores de uma inteligência galáctica, viajando como esporos nos meteoritos); o médico psiquiátrico Rick Strassman, associado ao uso do termo “enteógeno” (aceso interno ao divino) ao invés de “psicodélico”, mantiveram a chama da ciência psicodélica bastante viva.
O Projeto Hoasca, de Dennis McKenna (irmão de Terence) e a “Molécula do Espírito” (DMT) de Strassman marcaram, nos anos 1990, a retomada das pesquisas mais sistemáticas. É nessa vaibe boa, onde convergem a ciência e a redescoberta pelo ocidente do xamanismo ancestral, que as pesquisas brasileiras do dr. Schenberg (e seu curso) se colocam agora.
A aula introdutória, que foi gratuita, com quase duas horas de duração, pode ser assistida neste vídeo do youtube. As inscrições para o as outras aulas, em modelo webinar online, ao vivo, todas as quintas feiras das 20 às 21h30, devem ser feitas neste link (ao preço de R$ 400,00, parceláveis em 12 vezes). Entre as aulas será disponibilizado material complementar em vídeos online e textos, além da indicação de documentários e bibliografia relevante a cada tópico. O curso não tem pré-requisitos.
É uma abordagem, na verdade, não só sobre a história dos alteradores de consciência, mas sobre o próprio enigma transcendente da aventura humana. Quando Huxley lançou seu verso, “para fazer do mundo trivial: sublime/ tome meia grama de phaneothyme”, o sempre sagaz Osmond respondeu assim ao mote: “para ir ao inferno ou à ascensão angélica/ tome uma pitada: psicodélica”.
(imagem: William Hurt no filme Viagens Alucinantes (1980), dirigido por Ken Russell e escrito por Paddy Chayefsky, inspirado livremente em eventos ocorridos com John Lilly e outros cientistas e psiconautas)
Siga-me no Twitter (@lex_lilith)
 Serviço: Curso – Ciência psicodélica – 07/07 a 08/09, todas as quintas, das 20 as 21h30
O Vôo Da Águia: Do Xamanismo À Psiconáutica
PRIMEIRA PARTE – HISTÓRICO
Sessão 1
– Psicodélicos e o nascimento da neurociência. Saiba quais foram os grandes personagens da era dourada da psiquiatria, fundadores da ciência psicodélica. Entenda como esse desenvolvimento ocorreu simultaneamente com o desenvolvimento da neurociência. Aldous Huxley, Humphry Osmond, Sidney Cohen, Stanislav Grof, RD Laing e Richard Evans Schultes.
Sessão 2
– De Eleusis à Sexta Feira Santa: psicodélicos e espiritualidade. Huston Smith, Walter Pahnke, Alan Watts.
Sessão 3
– O flower power. Os psicodélicos para além dos laboratórios e consultórios. Timothy Leary, Richard Alpert, Ken Kesey, R. Gordon Wasson, Maria Sabina, Sasha Shulgin. Macro e Microdose e criatividade: o vale do silício, a física quântica e o DNA.
Sessão 4
– O lado negro da força: a Guerra às Drogas. Nixon, Reagan e o fim das pesquisas. A psiquiatria reescreve o passado.
Sessão 5
– O projeto Hoasca e a molécula do espírito: o renascimento da ciência psicodélica.
Sessão 6
– Do centenário de Albert Hofmann ao século 21. A neuroimagem psicodélica e o caminho para a re-legitimação da pesquisa e do uso terapêutico.
SEGUNDA PARTE – Conceitos chave de psicofarmacologia e medicina psicodélica
(apenas para pessoas inscritas previamente)
Sessão 7
– Princípios básicos de farmacologia. Via de administração, metabolização, absorção, barreira hemato-encefálica. Neuroquímica: neurotransmissor, receptor, agonista, antagonista, recaptação, sinapse.
Sessão 8
– Princípios de redes cerebrais. Aferência, eferência, oscilações, ritmos cerebrais, áreas primárias, secundárias, de associação. Hierarquia cortical. Tecnicas de neuroimagem: o que elas nos revelam?
Sessão 9
– A área psicodélica do cérebro – onde fica?
Sessão 10
– Psicologia do Futuro: Terapia psicodélica e psicolítica. Substância, set e setting. Riscos, Redução de Danos e Maximização de Benefícios.
3 notes · View notes