mise-en-carafe
mise en carafe
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recipiente de ideias, reflexões e algumas poesias
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mise-en-carafe · 2 months ago
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Eu oceano
Ninguém conhece tanto sobre mim quando eu mesma
E olha que eu nem me conheço tanto assim.
Em cada ilha que encontro, deixo marcas
Mas nunca o suficiente para que sejam capazes de mergulhar na minha imensidão.
As vidas que em mim habitam se alimentam das minhas porções
Ao mesmo tempo que me alimentam com seus pedaços, o que parece preencher cada vez mais a infinitude do meu eu.
Gosto de como o verbo ser se conjuga no eu de forma quase isolada das demais
O eu é sujeito primeiro e absoluto
Único em sua essência e ponto de partida para os demais pronomes.
Assim como o oceano.
Primeira fonte de vida
Imenso
Desconhecido
Singular
E infinito.
set/2024
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mise-en-carafe · 2 months ago
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A jabuticabeira
Nunca consegui desvendar o mistério do aparecimento da jabuticabeira de cem metros que estampou os jornais da semana passada.
As manchetes, ilustradas com fotos dos telhados da vizinhança destruídos depois da chuva, espantaram os convidados do jantar. Ninguém apareceu e eu passei a semana mastigando a lasanha que ia servir.
Não lembro exatamente como ela surgiu, mas deve ter sido em uma das vezes que o jardineiro deixou os portões abertos.
Nunca fui muito de comer jabuticabas, mas ela começou pequena, como uma mudinha. Afeiçoei-me logo e, como não aparecia uma planta nova há tempos, fiquei com medo de podar cedo demais e ela morrer.
Não é como se tivesse atingido tal altura de um dia pro outro, mas também não demorou uma eternidade.
Ela era linda, com folhas bem brilhantes e tronco carregado de jabuticabas cheirosas e suculentas.
Uma ou duas vezes por semana eu era obrigada a varrer as frutas podres que caíam. Lembro-me, facilmente, de perder a hora da rega das tulipas quando ela dava de dar frutos demais.
Nunca fui muito de comer jabuticabas, mas seu cheiro era tão sedutor que eu não tinha coragem de tirá-la do meu jardim.
Seu Emanuel, o jardineiro da casa da minha mãe, sempre passava aqui em frente e levava um mundaréu de frutos consigo. Ele dizia que eram as melhores jabuticabas que já havia comido na vida.
Quando ele chegava pertinho do muro, sempre olhava do topo ao meio do tronco e repetia um “que belezura!” antes de acrescentar um “mais como come terra!!!” em alto e bom tom quando seus olhos chegavam à raiz.
E ele estava mais que certo. Quando os bombeiros vieram retirar o que restou da árvore, percebi o enorme buraco ao redor.
Com o passar dos anos, a jabuticabeira devorou quase todas as plantas do jardim. O pé de amora que um amigo querido me deu de presente foi o primeiro a morrer. Quando notei, sobraram apenas alguns galhos caídos.
O pequeno aglomerado de alecrim que minha avó deixou de herança se despediu numa noite de quinta-feira. Na sexta de manhã, as folhas secas estavam espalhadas na calçada pelo vento.
A muda de pitangueira, os pezinhos de alface e as espadas de São Jorge também se foram.
Na semana depois da queda, dei falta de algumas flores.
Nunca fui muito de comer jabuticabas, mas ela era tão esbelta que acho que me deixei levar.
Quando os bombeiros chegaram, Seu Emanuel foi o primeiro a aparecer. Depois de passar uns bons minutos espantado com o estrago, me fez algumas perguntas que eu não soube responder.
“A senhora não estava em casa? Não é possível que não tenha ouvido nada, foram 5 casas atingidas!!!!”
Ainda atormentada com as perguntas, trouxe o velho para dentro e fui atrás da última porção de frutos, guardada carinhosamente na geladeira.
Enquanto segurava a vasilha abarrotada de jabuticabas maduras, vi Seu Emanuel rindo como criança travessa com meu machado, ainda sujo, nas mãos.
É, acho que nunca fui muito de comer jabuticabas.
set/2024
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mise-en-carafe · 1 year ago
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Bolo com café
Eu sempre me senti sondada pela morte. Como se eu estivesse esbarrando com ela a cada esquina, em contextos diferentes.
Ela ainda mora aqui perto, mesmo depois de todo esse tempo.
Tem sua própria casa, faz suas próprias coisas, mas se faz sempre presente.
Por algum tempo eu tive certeza de que ela nunca mais voltaria.
Quando ela deixou minha casa, depois de ser expulsa aos berros por uma amiga, não deixou claro se estava partindo para sempre, mas eu realmente acreditei que ali era um ponto final.
Apesar da sua volta nada marcante e dada de forma cotidiana, nossa relação é cordial. Às vezes passamos dias, semanas, meses sem nos ver. Às vezes nos vemos mais de uma vez por dia.
Ela vem, toma um café, colocamos o papo em dia e ela me conta das outras visitas que fez nos últimos tempos.
Eu nunca tive coragem de ir visitá-la. Por mais que goste da sua presença, algo sempre me impediu de cruzar aquele portão de ferro baixinho que faz um barulho estridente quando aberto.
Mesmo quando ela estava aqui, ela nunca fez questão de realmente pertencer a esse espaço.
Era como uma visita que vem e vai ficando, mas ainda é uma visita.
Hoje, diferente daquela época, ela é bem mais respeitosa. Não costuma passar tempo demais nem entrar em casa sem tocar a campainha, embora ela saiba que eu sempre vou abrir.
Ela respeita muito mais os meus limites, acho que o tempo melhorou muito nossa relação.
Embora às vezes eu prefira estar sozinha, a companhia dela parece sempre ir embora cedo.
Entendo que o assunto acaba e que ela tem outras coisas para fazer, mas sempre preciso conter o ímpeto de dizer “fica”.
Eu nunca tive coragem de ir visitá-la, mas, se eu fosse, com certeza levaria um bolo de laranja molhadinho e um café de prensa.
Ia telefonar, para saber se ela está em casa e iríamos escolher um dia juntas.
Nesse dia, eu iria acordar bem cedo, aguar as plantas, colocar comida para os gatos e ir à padaria comprar o bolo.
Eu não poderia esquecer de deixar a porta bem trancada e a luz acessa, porque logo iria escurecer.
Antes de entrar, tocaria a campainha e ela me receberia com seu sorriso cinza de todos os dias.
Iríamos comer bolo e conversar por momentos eternos até que tudo acabasse e recomeçasse de novo.
Com o passar das horas instantâneas, suas histórias iam me fazer mais rir do que chorar. Minha barriga ia doer e eu ia precisar respirar fundo para pegar um pouco mais de ar.
O sol e a lua fariam sua dança e a oscilação de luz deixaria, aos poucos, aquela névoa anestésica no ar.
As risadas iam ficar mais contidas e os olhares mais distantes.
O bolo, as gotas de café, a janela e o horizonte iam se despedir numa mistura de claro com escuro. E, num segundo, de repente, aos poucos e sem que pudéssemos notar, tudo que um dia foi deixaria de ser.
set/2023
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