#O último pedaço da minha alma que eu ainda não vendi
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A morte de August Clay - O pessimista por excelência
O último devaneio deixado por August Clay
Ato I
Maldito o dia que eu acordei cedo e vi o sol o nascer, admirar a beleza do amanhecer, o surgir da estrela que imóvel, se move diante da percepção que temos.
Observar as coisas belas da vida sempre me trouxe uma certa tristeza, talvez por estar perdido na escuridão e contemplar o belo como algo inalcançável, algo que nunca fui digno de ter, eu que não passo de um maluco, tão irrelevante quanto os anônimos do submundo da vida. Talvez você não me conheça e por isso tenho de lhe contar algumas coisas, pois esse será meu último devaneio, fora disso não há verdade, apenas fantasias daqueles que continuam a habitar essa selva cruel chamada de mundo.
Para começar, tenho que dizer que não nunca fui bom em descrever a mim mesmo, talvez por isso eu nunca tenha tido um grande trabalho, todas as entrevistas de emprego que tive foi um desastre. Bom, isso já lhe dá uma ideia de que não passei de mais um sonhador medíocre que não conquistou nada nos seus anos de vida, apenas deixei tudo ir embora, sem força pra lutar, um covarde sem culhão.
Pra que você entenda a minha partida, tenho de lhe contar como foi que cheguei até aqui.
Tudo se iniciou quando conheci a minha melhor amiga, a mais bela de todas, tão formosa quanto a vida, brilhante como um diamante, ao mesmo tempo asquerosa e desprezível de tal forma que até o diabo a teme, tão poderosa, que fora vencida pouquíssimas vezes na sua infinidade de tempo de existência, você provavelmente deve estar imaginando uma bruxa ou algo tipo, mas não, ela é muito mais do que um ser mortal e finito, minha amiga, meu amor, minha conselheira, não pode ser vista, tocada, ou sentida pelos vivos. Vulgarmente tratada por todos que não podem vencê-la, ela simplesmente os derruba sem ao menos dizer olá.
A primeira vez que nos vimos, eu tinha cerca de três anos, quando foi me tomada a alma, ela veio para apanhá-la e se apresentou, disse que me guiaria e me levaria com ela pra um lugar melhor, mas que ainda não era chegada a hora. Por anos não lembrava desse fato, passei por anos ignorando a sua existência, até que cheguei aos meus treze anos, e ali tivemos nossa primeira conversa.
Ela apareceu e me levou uma pessoa, tentei fugir, mas ela me achou, e sussurrou na minha mente, pediu que eu ficasse sozinho, me isolei em uma rua escura às 2h da manhã, e então ela começou a falar comigo. Se apresentou como guia dos malucos, a rainha da vida, tentava lhe responder, mas não tinha palavras que eu conseguisse juntar naquele momento. Ela vendo meu desespero, pediu para que eu me acalmasse, eu então respirei fundo e pedi para vê-la. Nesse momento tudo parou, o tempo congelou, e tudo estava parado, como se o tempo não passasse, e quase que como um raio, ela se fez carne, e luz, da sua cabeça saia chamas, dos seus braços saía escuridão e sombras, e do peito uma forte luz que cegava a qualquer um que tentasse encarar. Era a mais bela mulher que já tinha visto na vida, talvez até hoje não encontrei ser mais magnífico que ela. Ao ver tamanha beleza, cai de joelhos e meus olhos se inundaram em lágrimas sinceras, o embargo na garganta me fechou a respiração, e era como se eu fosse tudo, como se tudo fosse nada, e nada fosse tudo, eu era parte de algo, mesmo que o algo não existisse. Nesse momento ela diz que tem de partir, mas que voltaria em breve para me explicar tudo, e que até o nosso próximo encontro eu me esqueceria dela, e simples assim, ela sumiu, evaporou como um relâmpago que corta o céu e tudo se descongelou, eu pude sentir minha mente voltando ao normal, o oxigênio invadindo minhas narinas e o coração voltando a pulsar.
Ato II
Passaram-se dez anos e eu a reencontrei, num dos dias mais tristes de toda a minha vida, talvez o mais horroroso de todos, o dia que perdi o meu grande amor.
Eu tinha conhecido uma mulher logo após eu ter perdido tudo, eu não tinha mais escrito nada, não já não tinha forças para pensar, minha cabeça já não funcionava direito, talvez fosse a loucura ocupando minha mente, e me tirando o pouco da sanidade que ainda me restava. Nessa época eu já não tinha direito como continuar vivendo, sem ninguém, jogado na periferia de uma capital imunda, longe de casa, longe da vida real, em busca de algum reconhecimento pela arte que me tomara a vida. Quando tudo parecia perdido, encontrei Maria, tão pura, sorriso doce, olhar cheio de vida, a mais bela entre todas as mortais, mais formosa que a primaveram cheia de flores. Amei-a desde o instante em que ela me pediu o isqueiro na frente daquele bar vazio, às 4h da manhã, zombou de mim quando falei meu nome, era perfeita, tinha toda razão, August Clay é um nome um tanto ridículo, mas esse era o meu nome, e infelizmente tinha de carregá-lo por toda vida.
Maria me fez rir a noite toda, não tinha pudor, tudo que lhe vinha na cabeça dizia sem qualquer hesitação, não temia ser julgada, afinal, era autossuficiente, emanava de si vida, a cada risada que ela me provocava, eu sentia que estava vivo, e então a fiz rir também, era como se a amarra que me segurava tivesse se soltado, nunca tinha me sentido daquele jeito, vivo. Ficamos por horas conversando sentados à beira da sarjeta, numa rua pouco iluminada, ali nos restava um pouco menos de meia garrafa de conhaque, então fomos pra casa dela, à algumas quadras dali. Passamos o resto da noite em sua casa bebendo e conversando, parecia que nos conhecíamos de outras vidas, eu entendia muito bem ela, e a recíproca era verdadeira.
Esses encontros se tornaram algo recorrente, e nos víamos quase todos os dias, ríamos sem parar, contei a ela os meus segredos todos e ela não me julgou, entendeu a mim, como eu a entendi também, nos tornamos inseparáveis. Até que numa terça feira qualquer, estávamos em sua casa, e sua mão tocou a minha de uma maneira que eu nunca antes havia sido tocado, olhei no fundo de seus olhos, e ela me beijou, senti seus lábios tocando os meus, e naquele momento me senti infinito, beijei-a de volta, e então nos despimos no sofá de couro da sala, que fazia barulhos de peido quando nos movíamos nele, como não conseguíamos parar de rir, fomos até sua cama e ali tive a experiencia mais incrível, não era sexo, não era amor, era mais, era como se fossemos um, e sentíamos o que o outro sentia, era como se tivéssemos nos tornado um, o pedaço inteiro de um quebra cabeça todo montado.
Ato III
Eu tinha tudo que eu precisava, tinha a mulher dos meus sonhos, consegui ser publicado pela maior editora da cidade, todos me procuravam para comprar meu próximo livro, eu estava vivendo o auge da minha vida, seis meses onde tudo deu certo, nos mudamos para uma casa num bairro melhor, moramos juntos, e crescemos juntos, Maria lançou seu primeiro disco, foi um sucesso, tocava nas rádios o dia todo, era tudo que sempre buscamos, e tínhamos chegado lá, conseguimos conquistar, já não nos faltava nada, a felicidade parecia ser real, mas como tudo na vida tem fim, nosso amor também se acabou.
Numa quarta-feira à noite, eu me distraia escrevendo um poema qualquer, eis que meu telefone tocou, e eu simplesmente ignorei acendendo mais um cigarro e tomando mais um trago do Whisky que ganhei de presente do pai de Maria. O telefone tocou novamente, só que dessa vez me levantei e fui até ele, puxei-o do gancho, encostei na orelha e meu mundo acabou, quase que num segundo, tudo congelou, o tempo parou, e minha velha amiga apareceu, a luz de seu peito me cegava, então fechei os olhos, e ela me contou o que eu jamais queria ouvir, estava tudo acabado, minha vida não teria mais sentido, ela me mostrou diante dos olhos, a mulher que eu amava, a deusa da minha existência, Maria, minha mulher, morta, caída ao chão, ela que era imortal, infinita, já não tinha vida, já não tinha nada, totalmente desfigurada, sem rosto, sem esperança, ela tinha partido. Bom, a dor que me invadiu ao ver essa cena, me fez amaldiçoar minha velha amiga, desejando com que ela nunca tivesse existido. Ela sábia como sempre, me acalmou e mostrou diante de meus olhos, cada segundo que passei com Maria, cada toque, cada sorriso, cada carinho trocado, eu pude sentir tudo de novo uma última vez.
Minha amiga se foi, deixando eu ali, com o telefone na orelha, aos prantos, quando ouvi um médico dizendo que ela tinha me deixado, dando a notícia de que meu amor já não existia mais, e pela segunda vez me perdi dentro da minha própria mente, senti toda a vida que ela me deu ir embora, perdendo toda a felicidade que um dia acreditei existir.
Depois do funeral, eu simplesmente desapareci, talvez tenha sido injusto da minha parte para com todos os outros que amavam Maria, mas não conseguia lidar comigo mesmo, tranquei-me em casa e por alguns anos, por ali fiquei, sem ver ninguém, sem escrever, sem viver, apenas existindo, criando mundos na minha cabeça onde Maria ainda vivia e estava comigo, por anos vivi em outras dimensões, sem nem ao menos sair do lugar, vivi com Maria, ou com suas lembranças. Talvez você lendo isso acredite que eu seja maluco, bom, talvez você esteja certo, talvez eu seja maluco, mas acima disso sou humano, e criei dentro de mim as fugas necessárias para continuar existindo.
Ato IV
Quase quinze anos depois, eu já não vivia mais na capital, vendi tudo que meu amor e eu conquistamos, e comprei uma casa no meio do nada, no extremo norte do país, rodeado por arvores e animais, ali me mantive todos esses anos, até agora, e no primeiro dia em que cheguei na mata, minha amiga reapareceu, trazendo consigo a sua sabedoria devastadora. Acendi um cigarro e quando a chama do isqueiro encontrou a ponta do cigarro, tudo congelou e como um raio, ela estava de volta. Dessa vez era diferente, era como se ela realmente estivesse ali, e ela realmente estava, sentou-se ao meu lado e disse que era hora de me explicar como tudo funcionava, quem ela realmente era, e como se aquele cigarro fosse infinito, fumei-o durante anos, em que a Morte me explicava a vida, me ensinava como fazia seu trabalho, como ela existia e como me observava todos os dias, desde o nosso primeiro encontro. Pra mim nada fazia muito sentido, a Morte me monitorava, e por tantas vezes que clamei pelo seu nome e ela não respondeu, simplesmente me olhava e ignorava a dor que eu sentia. Revelei isso a ela, e ela me explicou que tudo era parte de como tudo deveria ser, como ela fez com que Maria vivesse seis meses a mais do que lhe era programado, simplesmente para que ela me desse motivo para viver. Contou como me viu errar todos os dias, e acertar quase que raramente, sem ter nenhuma esperança de que um dia eu pudesse aprender a viver.
Passei em menos de cinco minutos, por treze anos de conversa com a Morte, ela me mostrou o mundo, me fez entender a vida, a ver que a única saída para a dor era ela, mesmo eu lhe pedindo por diversas vezes que me levasse com ela, por todas as vezes ela me negou, dizia que o tempo ainda não tinha chegado, que eu precisava sentir um pouco mais, e equilibrar a balança para que ela pudesse me levar consigo. Sem se despedir ela partiu, me deixando ali, no banco da varanda de minha cabana no meio do nada.
Ato final
Anos de reuniões inesperadas ou jantares marcados com minha melhor amiga, me ensinaram muito, mais de vinte anos reais e centenas de anos de ensinamentos e aprendizado sobre a vida, a recusa de meus pedidos sinceros para que ela me levasse, sinceramente, estou um tanto quanto convencido de que a Morte está encarregada de nos ensinar a viver, limitar nossas ações enquanto seres que querem adiar a sua chegada o máximo que puderem, como se ela fosse uma terrível vilã, tratada com repulsa e ódio desde o princípio da vida.
Essa manhã acordei me sentindo um tanto quanto diferente, como se a hora tivesse chegado, a vida parece me pertencer, como se Maria estivesse aqui ao meu lado, era possível sentir a mesma calmaria de sua presença, lá fora o clima estava ameno, os pássaros cantavam, afinal, é primavera. Senti que era a hora, e logo apanhei a caneta e as folhas e comecei a escrever cartas, as últimas palavras desse que vos fala, para os que tenho alguma mensagem a deixar, afinal, são mais de quarenta anos nesse mundo, tenho ainda algumas coisas que não consegui dizer. Terminando essas cartas, comecei esse devaneio, sinto que chegou a hora do último adeus.
Sinceramente, não sabia como fazer, como escrever minha despedida da vida, com o meu último devaneio, que estará eternizado em minha memória, para todos aqueles fracassados o suficiente para lerem essas palavras, serão os únicos a saber de como eu fui escolhido pela morte para entender a vida, numa alucinação irreal, e verdadeira, genuinamente verdadeira, forte e pura.
A minha história chega ao final, o devaneio mais lúcido que já tive na vida, o último de todos os centenas milhares, esse definitivamente me fez arrancar a máscara grudada a cara, amarrada na face de um heterônimo que se despede, se deixar ir ao encontro do fim. Devaneios me fizeram conhecer minha velha amiga, me fizeram ter Maria, isso basta, eles foram especiais. Não sei exatamente como se termina um devaneio de despedida, talvez tenha sido o primeiro a dar adeus dessa forma, talvez não, pouco importa na verdade, só quero deixar gravado, a minha morte, meu encontro com minha melhor amiga, talvez ela me faça rever Maria, talvez não.
O mais engraçado é que em mais de sessenta anos de encontros com ela, nunca foi me ensinado nada sobre o que tem depois, o que ela faz conosco, o que ela fará comigo, para onde me levará, não faço ideia, ironicamente a Morte só me ensinou sobre a Vida. Espero que onde eu vá, consiga um dia voltar para ver quem usará de devaneios para se manter vivo, como eu fiz, espero que muitos aprendam essa técnica de exorcizarão.
Bom, agradeço por ler minhas últimas palavras e ouvir meu último adeus. Realmente é chegado o momento, senti tudo congelar, e é isso, ela chegou, sinto o frio e o calor que ela emana misturados, invadindo todo o ambiente.
Adeus, quem sabe um dia eu venço um dia eu venço minha velha amiga e volto para esse mundo.
Até sempre,
August Clay.
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