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utopiabrazyl · 5 years
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Com raízes nas festas de música eletrônica em algumas das principais capitais do país nos últimos três anos, Utopia Brazyl começou a ser realizado em janeiro de 2019. Amigos de longa data e frequentadores dos eventos independentes de música eletrônica espalhados pelo Brasil, o jornalista Guilherme Guedes e o fotógrafo Pedro Pinho pretendiam registrar a ebulição de um movimento cultural independente e inclusivo e acompanhar, em tempo real, sua reação à guinada conservadora desde as eleições de 2018. Com forte discurso de combate ao ativismo político, aos movimentos culturais e às minorias em geral, os valores dos representantes recém-eleitos vão de encontro aos promovidos pela cena eletrônica independente. Nas festas e através de forte presença online, os coletivos por trás desse movimento promovem uma agenda onde se defende as liberdades política e sexual e a defesa dos direitos das minorias - nada mais justo para um movimento que surgiu como resposta à exclusão econômica e social promovidas pelas boates e casas de eventos geridas por grandes empresários. Em fevereiro, após estabelecer o escopo do projeto, a dupla passou a definir e entrevistar os primeiros personagens que irão compor o livro e a captar imagens de algumas das principais festas do sudeste do país - as paulistanas Mamba Negra, ODD e Caldo, além das cariocas Festa Até as 4 e Dissolve - com a meta de explorar outros eventos similares em capitais como Brasília, Belo Horizonte, Florianópolis, Salvador e Recife.
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utopiabrazyl · 5 years
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Cashu
Às duas e meia da manhã, a festa desmoronou. O grande galpão escuro, antes tomado pelo acende-apaga dos bastões de led, virou um breu completo onde não se notava o fim do chão e o início das paredes. A única forma de se localizar dentro da massa de braços, pernas e cabeças suadas era entre a sinfonia desarranjada de cotovelos acertando bíceps, pés se apertando por cima de outros pés e o barulho das conversas ansiosas do público, que clamava agitadamente pela volta da música, morta junto com a luz.
Após alguns minutos de incerteza geral, as luzes se reacenderam. Quase ao mesmo tempo, a sala foi tomada por uma linha áspera de sintetizadores e uma batida seca de graves imponentes que levou os presentes da dispersão total ao êxtase instantâneo.
No comando do som estava Carolina Schutzer, a Cashu, uma das DJs brasileiras mais populares dessa geração. Conhecida tanto pela impecável seleção de faixas que variam da rigidez ao suingue quanto pela expressão quase sempre sisuda, Cashu consolidou-se como um dos motores da Mamba Negra, festa paulistana responsável por marcar o início de um novo capítulo no underground eletrônico brasileiro desde 2011. Naquela noite, Cashu estreava na Dissolve, festa carioca que desde 2017 se dedica a transportar para a solar capital fluminense a escuridão e a intensidade do subterrâneo de Berlim - proposta similar à de boa parte da nova cena paulistana, a exemplo da própria Mamba.
A energia acabou antes do set chegar ao fim da primeira de suas três horas, enquanto Cashu ainda absorvia a reação do público e mapeava, internamente, os caminhos possíveis daquela noite. Movida mais pela tensão do improviso do que pela certeza dos sets planejados, Cashu soube transformar a frustração da interrupção brusca, um revés para qualquer DJ, em trunfo: bastou escolher a faixa certa, a música que todos ali queriam ouvir mas não sabiam. A resposta de Cashu ao silêncio brusco não só dissipou o desconforto coletivo como levou a festa a um nível de energia inédito naquela noite, mantido assim durante as horas seguintes.
"É muito importante quando você tem quebras, coisas que saem do previsto, porque você acaba criando novos momentos para o público", analisou Cashu horas antes, sentada em um café discreto nas redondezas da Praça Tiradentes, centro do Rio. “Os sets são feitos de momentos, e se você não cria esses momentos, a experiência vai ser sempre a mesma, você não vai possibilitar novas experiências para as pessoas que estão ouvindo. É do que as pessoas vão lembrar: daquilo que é diferente".
Cashu costuma ser discreta e reservada, e quase sempre séria. Raramente, em geral quando fora dos holofotes ou durante uma música que gosta muito, esboça sorrisos discretos. Com os olhos focados nos de quem quer que seja seu interlocutor, mira com precisão perfurante, como se olhasse através deles. Naquela tarde, por pouco não desmarcou a sessão de fotos e a entrevista; se sentia mal, baqueada por uma gripe que veio de vez à noite, pouco antes da Dissolve, e a acompanhou durante todo o set. Mesmo com pouca disposição e nenhuma intimidade com os presentes, pareceu se abrir sem defesas sobre a própria história e a importância do trabalho que vem construindo.
"Quando eu comecei tinha bem menos mina tocando, hoje tem muito mais”, refletiu enquanto enrolava um cigarro de tabaco que fumaria mais tarde. “E eu sei que eu influenciei muita gente nisso, mas ainda é um pouco estranho pra mim. Eu não percebo a dimensão do meu trabalho, isso só aparece de vez em quando. Mas é muito gratificante você saber que ele influencia muita gente”.
Mais nova, ainda na casa dos pais, ouvia música brasileira por influência deles. Criada na zona sul de São Paulo, não demorou para ter contato próximo com o mundo do rap, e teve uma breve fase indie durante a adolescência. A música eletrônica a atraiu anos depois, quando ingressou no curso de arquitetura da Escola da Cidade, uma das mais conceituadas na área. Durante as tardes de estudo com um amigo, começou a ouvir sets e mixes que serviam como trilha para as horas investidas nos projetos. “A música eletrônica te deixa nesse estado mais meditativo, não tem muita mudança. Você fica mais focado”, explica. "Logo depois comecei a frequentar umas festas e comecei a produzir umas também, ali mesmo na faculdade”.
O primeiro mergulho profissional na eletrônica foi na Voodoohop, festa anterior à fundação da Mamba em que Cashu atuava como produtora e ocupou diversas posições, revezando com outros as responsabilidades de som, luz, decoração e até atuando como caixa, de vez em quando. Foi com o trabalho na parte financeira, inclusive, que ela passou a entender melhor o business da coisa, o que se revelaria essencial na estruturação profissional dela nos anos seguintes. Mas faltava despertar para a música, o catalisador de tudo aquilo, e que até então servia apenas como pano de fundo do trabalho na festa.
 “Na Voodoo eu escutava sempre as mesmas coisas, estava um pouco enjoada do que tocava e comecei a sentir a necessidade de tocar pra mostrar as coisas que eu gosto”, revela. "Eu tinha acabado de começar a namorar o Laércio [produtor conhecido pelo pseudônimo L_cio, ex-integrante do Teto Preto] e ele me ensinou a mexer no Ableton [Live, software muito utilizado por DJs e produtores em sets ao vivo por possibilitar o sequenciamento de samples, breaks ou músicas inteiras com relativa simplicidade]. Eu nem tava no line, foi uma coisa meio de manhã, no fim da festa. Mas deu super certo, bombou, muita gente gostou. E aí começaram a me chamar, fui gostando, pesquisando mais e fui construindo”.
A ideia, já nesse tempo, era similar à de hoje, quase uma década depois: transformar uma festa (ou mesmo os resquícios de uma), em uma experiência memorável para todos os presentes. “Nesse dia eu não toquei pra ser DJ, eu toquei porque queria criar essa atmosfera naquele horário. A proposta sempre foi nesse viés da experiência de estar tocando, [de perceber] as pessoas que estão em volta, o clima que tá no lugar, sempre relacionado ao espaço em que eu estou tocando. O espaço influencia muito no tipo de som que eu vou fazer, e isso é um dos motivos [pelos quais] eu tenho muita dificuldade de gravar um set, por exemplo”, confessa. "Eu não preparo nada, nunca deixo nada preparado. Eu sempre faço tudo na hora dependendo do clima, do que tá tocando antes, eu vou sentindo e vou escolhendo na hora as músicas. [Meu set] é criado com o público, junto com as pessoas que estão ali”.
A vez em que vi Cashu mais à vontade durante um set foi meses antes da nossa conversa, em outubro de 2018, quando a Mamba Negra trouxe para o Brasil pela primeira vez a DJ russa Dr. Rubinstein, radicada em Tel Aviv e atual moradora berlinense, uma das referências mundiais da interseção entre o techno e o electro - e consequentemente, uma grande referência da própria Cashu. “Rubi”, como costuma ser chamada, era o maior nome da festa, mas Cashu a antecedeu com um duas horas de um set simultaneamente eclético, pesado e extremamente dançante, ressaltando os pontos fortes da sua seleção musical ao mesmo tempo em que preparava o terreno para a DJ seguinte. Gentilmente, ela antecipava para o público brasileiro alguns dos extremos que Rubi costuma testar nas suas apresentações ao mesmo tempo em que desfilava sua própria sensibilidade como DJ. Era, em muitos sentidos, uma celebração da trajetória profissional dela até ali.
[Quando] eu comecei a tocar eu não tinha técnica nenhuma, sabe? Eu nem sabia diferenciar os estilos. E isso fez com que eu nunca ficasse presa à métrica ou a essas coisas pra fazer as mixagens porque eu nem entendia disso. Hoje em dia até entendo melhor, mas também foda-se, não me importo”, brinca. "Às vezes causa um estranhamento, mas é bom, também. É o estranhamento que faz a pessoa reparar; se você fica na mesma coisa, ela nem percebe".
Após a conversa no café, caminhamos alguns metros até a obra do que viria a ser o Desvio, bar idealizado pela mesma equipe da Dissolve com a intenção de tornar-se um dos polos da cena eletrônica nacional. Ali, Cashu posou para as fotos deste artigo, e pareceu confortável diante da lente. Em seguida, caminhamos mais um pouco até a Only Music, loja de discos de vinil instalada quase na esquina entre a Tiradentes e o Teatro João Caetano, especializada em LPs, EPs e singles de freestyle, miami bass e old school electro, mas com seleções respeitáveis de funk carioca, eletrônica e música brasileira de todas as épocas. Atraída quase magneticamente pelas prateleiras dispostas pelas paredes amarelas da loja, Cashu perdeu-se entre os discos, fungando cada vez mais tanto pela ameaça de gripe quanto pela poeira que brotava das capas envelhecidas.
Enquanto ouvia alguns dos discos que lhe interessou no sistema de som da Only, Cashu deu a primeira e única gargalhada do dia. “Mais atual do que nunca. A laka!”, exclamou entre risos altos após ouvir a letra de um funk datado do início dos anos 90, com críticas a violência policial e a disparidade social no Rio de Janeiro. Empolgada, Cashu deixou na loja boa parte do cachê que receberia mais tarde, na festa. Entre os discos escolhidos estavam Brothers in Arms, clássico do Dire Straits, o LP Explosão Envenenada do Samba, com medleys de vários clássicos do estilo, o introspectivo Sol do Meio Dia, de Egberto Gismonti, e Spacelab Vol.1, uma coletânea de montagens e batidas originais lançada pela equipe de som homônima em 1994. “Fui convidada para fazer um set de vinil lá no Caracol [renomado bar paulistano fundado pelo DJ Millos Kaiser] e não queria tocar techno, queria dar uma variada. Mas vou deixar muita grana aqui de levar tudo”, lamentou enquanto deixava de lado pelo menos metade dos discos separados inicialmente. “É foda vir em loja assim [sic]”.
Na semana seguinte, Cashu embarcou para mais uma turnê europeia que se estenderia até a Índia, com passagens pela Alemanha - na pista principal do Berghain, considerado o maior clube do planeta - Geórgia, Itália, França, Portugal e Inglaterra. Representando o Brasil no exterior em pleno avanço do ultraconservadorismo no país, Cashu tenta ser discreta quando a conversa passa pelas questões políticas, apesar da clara atuação da maior parte dos coletivos como a Mamba em favor de bandeiras progressistas. "A minha performance não é muito descolada dos ambientes em que eu me apresento. A Laura [Diaz, vocalista do Teto Preto e idealizadora da Mamba Negra ao lado de Cashu] canta, expressa o que ela pensa politicamente. A minha atuação política é muito mais na relação, no coletivo, na força que tem a pista de dança, a festa como um todo”, compara.
Na prática, no entanto, Cashu talvez seja muito mais atuante do que se diz ser. Um exemplo disso foi a faixa que escolheu tocar na abertura do set na edição 2018 do tradicional festival holandês Dekmantel, um dos mais populares e relevantes da cena eletrônica mundial. Em um vídeo da apresentação, publicado no YouTube, Cashu solta uma faixa tensa coberta por uma voz feminina que faz um discurso furioso, em inglês, contra o machismo e contra o racismo. É um remix produzido por Valesuchi, DJ chilena radicada no Rio de Janeiro, e do também chileno Matias Aguayo, fundador do selo Cómeme, da fala proferida pela atriz americana Ashley Judd, uma das vozes mais ativas do movimento anti-assédio #MeToo, durante o Women’s March, ato contra o presidente estadunidense Donald Trump realizado em Washington - e repetido em diversas outras cidades do país - em janeiro de 2017. O discurso, conhecido como “I Am a Nasty Woman” [Eu Sou Uma Mulher Indecente, em tradução livre] foi escrito pela estudante Nina Donovan, de então apenas 19 anos, e viralizou após a interpretação raivosa de Judd.
Cercada majoritariamente por homens de pele clara de traços europeus ou asiáticos, todos dançando sem gingado algum, Cashu tinha plena consciência do significado prático e simbólico de uma mensagem impactante como aquela no pontapé inicial de uma hora de música eletrônica selecionada por uma mulher latino-americana, sem treinamento formal como DJ, integrante de uma escalação composta majoritariamente por homens brancos, cisgênero e de origem europeia em uma cena ainda repleta de atitudes ativa ou passivamente misóginas, xenófobas e racistas. Quando a primeira frase de Judd soou nas caixas, todos eles pareceram se divertir com a provocação da DJ brasileira.
"Eles nem perceberam [risos]”, menospreza Cashu, em um dos raros momentos em que pareceu intimidada. Nos comentários do vídeo, boa parte do debate gira em torno daquele momento, mas Cashu optou por não ler a repercussão do set, insegura pela visão crítica de quem vê a mixagem mais como uma ciência exata do que como algo fluido, humano. "Eu não consegui ler os comentários. Fico desesperada com crítica ruim. Num contexto europeu, no contexto da música eletrônica europeia, eles são muito retos, muito técnicos  milimetricamente, e essa não é a minha pegada. E as minhas músicas são muito tortas, tem várias que saem do beat, que é difícil de mixar. O meu forte é a seleção, a construção do set. A técnica é uma forma de eu conseguir me expressar melhor e conseguir justamente fazer essa construção. E no Boiler Room eu fiquei preocupada em não errar nada porque iam falar que eu tava ‘sambando’, iam xingar, porque tem muito disso. Principalmente em set de mulher, né?”, questiona. “Tem muita gente tentando mudar isso, mas ainda é uma cena[dominada por] muito homem branco hétero. Nitidamente”.
No caminho de volta ao apartamento de uma amiga onde estava hospedada, no Jardim Botânico, Cashu interagiu pouco, visivelmente abatida pela gripe que ganhou força ao longo da tarde e a dominou completamente no dia seguinte. Poucos minutos após o fim do set dela, às cinco da manhã, foi embora discretamente em meio à pequena multidão que esvaziou a festa gradualmente ao sinal dos primeiros raios de sol.
Mais uma noite chegava ao fim, inaugurando não um domingo de descanso, mas um período breve de repouso antes de voltar a São Paulo, onde tocaria horas depois no encerramento matutino de mais uma edição da Mamba Negra. “Tá melhor?”, perguntei por WhatsApp algumas horas depois. “Não”, respondeu secamente. Pensei em perguntar qual era aquela música que fez a Dissolve entrar em ebulição, mas achei melhor não. Melhor que aquele momento se perpetue assim, sem nome ou classificação na memória e na de quem estava lá, como uma fotografia borrada pelo tempo de uma pequena catarse guiada magistralmente por uma das maiores DJs do nosso tempo.
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