#escrevi uns 20 rascunhos dessa
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Vcs estariam interessados num rascunho dessa fic q tá um teco diferente???
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Quarentena dia 63
São 01h22 da madrugada. Faz uns 20 dias que eu não fico acordada até tão tarde. Quem me conhece sabe que eu troco o dia pela noite normalmente, mas estava sentindo sono às 21h e despertando ativamente às 7h. Talvez todos que me conhecem tenham que me re-conhecer novamente, como estou fazendo.
Já não sou a mesma. E temo dizer que me conhecer tão bem é a força motriz para eu não ser mais quem era. E temo é vício de linguagem e vício de dor, porque o medo de se conhecer é algo que existe, mas que não pode se sustentar por muito tempo. Se conhecer para ter forças pra se mover requer coragem e são recompensados com orgulho, cabeça em pé e fé em si. Há uma mania e uma dificuldade em olhar para nós mesmos. Admitir nossos erros, culpas, comportamentos e até acertos. Mas não há espaço para culpa e arrependimentos. Há para engrandecimentos e honestidade - conosco e os outros. Empatia para dor, que existe inexpugnante, que nem sei se é uma palavra mas é feia e por isso uso, em todos os lados; mas que não precisa fazer parte dos nossos bons momentos e sentimentos.
O sono começou a ser abalado essa semana com a volta às aulas e uma quantidade de horas dormidas maior demandada pela pré menstruação. Tenho acatado todas as demandas do meu corpo, como quem ouve com atenção o ressoar de uma Tigela Tibetana e se deixa por ela guiar. Tenho cuidado também para que suas demandas não sobrecarreguem a mente e então pego sol, danço, brinco, me alongo, dou longas respiradas, uso óleos e cremes e como grãos e vegetais.
Houve um dia que fui abalada pela ansiedade pela primeira vez em meses. Foi pela tarde, mas lembro de deitar na cama e me perceber ansiosa ainda pelo mesmo motivo. Demorou, mas a estratégia adotada para dormir nos outros dias funcionou. Por algum motivo desconhecido, comecei a cantarolar Ave Maria de olhos fechados e durmo um sono de criança embalada pela avó com cantigas de ninar. São versos fáceis que vem a minha cabeça - e os únicos que sei, porque Pai Nosso é muito difícil e nunca decorei quando tentaram me obrigar.
Mas Ave Maria é justamente o que recito desde adolescente quando acordo de supetão de madrugada ou muito cedo e, com medo, fico repetindo para me proteger, até que durmo. Como se eu acreditasse. Mas o simples voltar a dormir em paz é sinal da proteção divina. De dia, se me sinto tensa, vou ritmadamente entoando Oguntê, Marabô, Caiala e Sobá e a respiração da música, a imaginação da voz de Marisa e as palavras me acalmam. Passo boa parte do dia assim: chamando Iemanjá. Como se eu tivesse muito contato.
O sincretismo sempre fez parte da minha vida, mas a fé andou sempre muito pouca do meu lado. Sempre no limiar entre o sim e o não. A fé em mim é a única que nunca abandonei - e sinceramente ainda me questiono se preciso de outras. Mas os tempos dias tem sido cheios e vazios, lentos e corridos, rápidos e devagar. São paradoxos que olho pra dentro de mim e, sem resposta, uso de minha voz e intuição. Sempre fui fã dos absurdos existenciais, mas para enfrentá-los precisamos estar armados tal qual Jorge. Nos guiar pelos astros e as tendências que nos mostram. É abandonar os olhos que tudo veem em nome de escolher o que se vê para seguir em frente como se pode. Hoje estava deitada à cama admirando o quarto recém modificado quando percebi sensações diferentes. Pensei ser ansiedade, o que mais pensamos que pode ser nos tempos atuais?, mas quando irrompi em lágrimas percebi que não era. Corri para pegar o celular enquanto declamava em minha cabeça versos perfeitos, na mania de escritora fajuta que quer registrar cada segundo de si e seus sentimentos, como se em algum momento pudéssemos esquecer. E a tecnologia nos trai, muitas vezes. Computador sem bateria, tomada sem proteção, liga, não conecta, escreve, perde rascunho, computador atualiza. Já tinha parado de chorar há muito tempo, apenas rezava para que o rascunho ficasse salvo - tinha algo de bacana no que estava escrevendo, ainda que não os primeiros versos que pularam de minha cabeça. Atualização demora e uma libido voraz me controla como um vento forte que entra pela janela. Cedo rapidamente nesse espaço de tempo, como quem bebe um copo d’água esperando um upload - uma água minha. Algumas coisas se tornam apenas mecânicas quando estamos isolados. Volto a escrever com uma bagagem muito maior que apenas 1 hora antes.
E cá estou. Escrevi tudo que aconteceu antes. Tudo que refleti sobre os assuntos anteriores. Estou nua, enrolada na coberta, sentada na cadeira, frente a nova mesa, onde posso desfrutar de escrever esse relato. Encarar essa tela é encarar um espelho e posso ver em mim mesma que todas as palavras tem saído para evitar falar dos sentimentos. São digressões e digressões. Mas eu estou cansada de fugir do que acontece dentro de mim. Usualmente atropelo minha vida com acontecimentos em cadeia e não raciocino sobre eles. Esse é meu tempo para raciocinar. Não há nada passível de acontecer na realidade que vá me atropelar nesse sentido. Minto, escrever essa frase no cenário atual é uma grande bobagem - desconsiderem-na, porque apagar não irei, dita está.
O estranho sentimento que percebo sentir é saudades. É quase a primeira vez que sinto saudades das pessoas em mais de 2 meses de isolamento e pandemia. Só senti dessa forma, como se rasgasse peito e liberasse automaticamente lágrimas, pela minha mãe. E me vi sentindo por outras pessoas. Por amigos. Por tempos antigos. Pela proximidade que tínhamos, e quanto eu gostava de ser literalmente próxima de quem eu amava de um jeito muito peculiar.
Sentir essa saudade é tão estranha quanto é admiti-la. Não porque não posso sentir saudade de outros que não minha mãe, mas porque é a sensação que o sentimento é tardio. Enquanto a gente tenta não se comparar para ficar bem, e confesso que essa é uma tarefa que consigo cumprir muito bem, confesso ser estranho ouvir esse tanto de saudades e não senti-las. Hoje me peguei também negociando pois não queria sair de casa para ir no vizinho. Não sinto vontade, não quero, não sinto falta, racionalmente falando agora. Achei uma rotina confortável. Me peguei dobrando calcinhas e inventando diálogos com alguém que anseio conversar. Pensando o que falaria, olhando agora pra quem sou em comparação a quem era. Era o forro da calcinha e o fundo dos meus sentimentos. Mais íntimo, poético e esquisito que isso eu deixo pra Clarice.
Não só arrumei roupas íntimas, como mexi em muitos móveis dessa casa hoje. Reorganizei, limpei, destruí, usei martelos e ferramentas. Percebi que não sei usar um martelo para quebrar coisas como sempre sonhei. E percebi que essa foi uma semana que não tive raiva. Justo de meus óleos, tem uma massinha. Devo apertá-la e fazer formas cada vez que sentir raiva. Mas não toquei nela essa semana. Nem consegui quebrar o berço que me dispunha. Não sei se é avanço ou cansaço. Aposto em resignação.
Mantenho-me ocupada de segunda a quinta sem parar, de forma que a noite deste quinto dia é uma festa misturada em cansaço. Gosto ouvir sama enredo pra liberar tudo. Mas percebi que os fins de semana são lentos. Eles me maltratam. Não há tanto o que fazer - embora sempre haja o que fazer - e eu procuro não me entreter tanto nem com telas nem com estudos. Por vezes consigo contemplar a inexistência e abraçar o ócio, mas é no movimento que eu vejo os espelhos e me encaro. É no remexer das coisas que forjo diálogos que remexem dentro de mim. E então entro numa rotina de arrumação que começa sexta e só finda domingo. Quando o caminhão de lixo passa segunda de manhã, tenho a certeza que os garis se assustam com 10 sacolas acumuladas. Dou bom dia sorrindo por debaixo da máscara, esquecendo que eles não podem ver esse gesto natural de gentileza, e agradeço o serviço.
Mas o maior movimento foi ter começado a trocar de quarto. E vou em direção a um que me traz memórias diferentes do outro. De amizade, de carinho. De sair do meu quarto e vir pra esse aqui me apertar numa cama pra ter companhia. De conversas sinceras com lágrimas e sorrisos. De desfiles de moda com roupas para trocar com alguém que eu mal conhecia e hoje é uma das grandes. Esse quarto me remete a mim, enquanto indivíduo. E mexer nele, organizá-lo para tomar forma e a minha cara é um passo para respirar fundo e seguir em frente nessa viagem - e intenso mergulho - comigo mesma.
Meu quarto não é o mesmo. Nem eu. Nem a realidade. Não somos os mesmos. Não somos as mesmas. Mas nos somos, na saudade. É sozinho que a gente vê que o silêncio acompanha as pessoas mais presentes. E é soltando a voz que a gente vê que a fé existe, ainda que não se saiba no que. Como se precisasse. Fé se é, como nós nos somos. Vou dormir e tentar me ocupar só de cozinhar amanhã. Temperar com amor e saudade. Às vezes a gente precisa parar a arrumação pra pegar um fôlego e continuar encarando ela de um jeito positivo.
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