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música e política, música versus política, música como política
Fábio Furlanete
A relação entre arte e política é, provavelmente tão antiga quanto a própria arte. É certamente mais antiga que a dúvida de Agostinho entre a beleza do canto e a importância de sua mensagem(i), ou a preocupação de Platão com o uso da música para a formação do cidadão(ii), o que indica a surpreendente resiliência de uma relação que sobrevive a todas as transformações pelas quais o conceito de arte passou através do registro histórico. Através dessas transformações, o principal ponto de conexão entre essas formas de pensar arte e o jogo de poder parece ser a ideia do uso da arte como linguagem, necessariamente portadora de um sentido a ser interpretado ou desvendado. Ferramenta de propaganda. Forma de estabelecer valores; pacificar pessoas ao redor de uma identidade ou mobilizá-las em direção a uma causa. Quando nos referimos a arte e política, normalmente é dessa relação que falamos. No caso específico da música, isso frequentemente se verifica no domínio da canção, cujos exemplos mais visíveis são a ópera do século XIX, a canção de protesto e a canção publicitária do século XX.
A esse uso imediato da música para fins políticos encontramos, em momentos históricos distintos, movimentos de resistência, mais ou menos velados de acordo com a circunstância, comumente associados à ideia de arte pura, ou música absoluta. Exemplo notório sendo o debate entre Hanslik e os wagnerianos(iii) na segunda metade do século XIX. É o movimento em direção à uma expressão artística que se desconecte tanto quanto possível de quaisquer pretensões de comunicação ou sentidos extramusicais na direção de um entendimento da forma como jogo de relações abstratas ou de uma escuta como experiência da qualidade pura. Por ser uma espécie de gesto de resistência da poética à retórica em forma de negação do extramusical – mesmo que desconsideremos aqui a necessidade de definir o que se pode entender por um musical que resista ao extra – esse movimento acaba por ajudar a sedimentar uma visão de que essa poética, etérea e espiritual por natureza, pertence a um universo distinto do das relações de poder, e que pode ser eventualmente contaminada por elas através de seu contato com o extramusical.
Sem dúvida alguma toda a prática artística é cercada por um jogo complexo de relações de poder inerentes ao meio social no qual está inserida, mas se observarmos a prática artística em detalhe, podemos notar que essa descrição está incompleta: o jogo não pode ser apenas externo à arte. O próprio processo criativo deve poder ser pensado como atividade inerentemente política, mesmo quando se concentram aparentemente apenas em seus objetos imediatos e específicos. Em algumas formas de expressão artística a interação em atividades coletivas, logo, necessariamente políticas, se dá de forma muito explícita: grupos de improvisação coletiva em teatro, dança e música.
O caso da livre improvisação coletiva(iv,v) é particularmente interessante por tornar evidentes algumas características do processo criativo que não são tão claras em outras formas de expressão artística. Isso se dá pelo fato de que em livre improvisação coletiva evita-se pré determinar os elementos do discurso. Toda a interação deve ser pautada por aquilo que emerge no jogo entre os participantes. Gestos idiomáticos de práticas históricas, caso ocorram, fazem-no em função do contexto local e não tomam precedência sobre ele. Objetos e estruturas da memória são constantemente adaptados e rearranjados em função das interferências dos membros do grupo. Isso tem como consequência a colocação em primeiro plano do caráter interativo do processo criativo de um modo muito mais sensível do que em outras formas de arte.
Em outras formas de expressão artística, essa relação se apresenta de forma não tão evidente, mas ainda perceptível; seja no caso de processos criativos que são explicitamente coletivos, mas que, por vários motivos, o senso comum insiste em tratá-los como resultado de um único sujeito criador, como ocorre com o Cinema ou com a Música Pop, seja no caso de processos criativos que frequentemente classificamos como limítrofes no campo das artes, como o Design e a Moda. Nestes últimos, a indústria tem um papel decisivo e ao mesmo tempo ambivalente na superação do modelo do indivíduo criativo: ao mesmo tempo que, em nome da eficiência dos processos, promove a criação coletiva, também reintroduz o indivíduo criativo por conta de necessidade de associar o produto desse processo a um rosto.
Grupos de improvisação, estúdios de cinema e escritórios de design não são, entretanto, os únicos espaços onde a criação coletiva ocorre. Todo indivíduo está conectado a uma multiplicidade de formações discursivas que definem relações de poder e estabelecem o contexto para possíveis enunciados(vi). Mesmo o mais tradicional dos compositores solitários está em diálogo constante com a memória dos discursos de seus antecedentes e com a presença de seus contemporâneos. O jogo não é fundamentalmente diferente do que vemos na improvisação coletiva. Acontece de, por conta das longas distâncias e largos intervalos de tempo através dos quais esse jogo se desenvolve, a interação não ser tão evidente. Guardadas as especificidades de como cada processo lida com as distâncias e com o tempo, a oposição binária entre os coletivos artísticos e o indivíduo criativo solitário é uma falsa dicotomia, na medida em que este último não é, de fato, tão solitário assim.
Mas se todo trabalho artístico é, do ponto de vista de seu processo interno de criação, resultado de um jogo político, agonístico, qual seria o objeto em disputa? Se retomarmos o exemplo da improvisação coletiva, podemos observar que, mesmo quando se toma todo o cuidado para que as relações sejam tão horizontais quanto possível, durante a interação emergem assimetrias de poder relacionadas à direção que o processo pode tomar: quais materiais são adequados? Que tipos de relações podem ser estabelecidas entre eles? como eles se desenvolvem no tempo e que sentidos podem ser atribuídos a eles? Em um processo de interação coletiva, mesmo nos mais endógenos, há dissenso entre os desejos e os projetos artísticos dos participantes. Uma vez que em livre improvisação coletiva não há, por definição, parâmetros pré estabelecidos, a interação se torna um jogo agonístico, uma disputa, que tem como resultado um juízo de valor estético negociado coletivamente diante dos olhos do público. Esse mesmo jogo ocorre com todo processo criativo, mas, mais frequentemente, distante do palco, disperso em grandes intervalos de tempo e distâncias geográficas.
Outra característica de todo trabalho artístico que a livre improvisação coletiva torna explícita é não separação entre o processo criativo do artista e o do público: apesar de não possuir as ferramentas para interferir diretamente na ação, ele deve poder projetar as possíveis continuações de uma determinada configuração a partir da conexão desta com a sua memória do jogo e seus participantes. Tanto para o improvisador quanto para o público, os erros gerados nesse processo de projeção a partir da memória e articulação do contínuo da percepção, assim como a consequente necessidade de incorporar esses erros no contexto da performance, devem desempenhar um papel importante não somente no processo criativo, mas também na fruição estética.
Nesse sentido, a posição do público de improvisação seria muito similar a do público de esportes coletivos: o gesto do torcedor que leva as mãos à cabeça e olha para o alto deve ser consequência não apenas da experiência do choque entre a continuação projetada e a continuação percebida, mas também da apreciação estética da jogada intuída mas não realizada(vii). Novamente, o mesmo ocorre com a arte não improvisada, mas de modo menos evidente, uma vez que a rede na qual interação se dá se estende através da história e entre continentes. Assim, a própria fruição estética da arte pode ser vista como resultado desse choque, característico do jogo agonístico, entre o resultado projetado e o ocorrido. Nesse sentido ela é tão política quanto o processo criativo do artista, e nos mesmos termos: ambos, artista e público, negociam coletivamente o sentido e o valor da experiência.
Se podemos tratar a Filosofia como uma política da verdade(viii), talvez possamos também tratar arte como uma política da experiência. Um jogo agonístico que tem como objeto o julgamento sobre o que deve ser a experiência desejável. A esse juízo de valor, as estratégias convencionais de poder – o extra do musical – não devem ser refratárias. Ao contrário, a importância crescente do papel de autor nos discursos artísticos a partir do século XVII(ix) e a intensificação recente da arte como espaço de embate político parecem ser indícios de que a política do processo criativo, independentemente de se defender ou não seu uso como linguagem, ou mesmo como ferramenta, ressoa de forma sensível nas relações de poder externas a ela e tem um papel estratégico privilegiado em nosso tempo.
i TOMÁS, Lia; CAZNOK, Yara. Música e filosofia: estética musical. São Paulo: Irmãos Vitale, 2004. ii Idem, p. 20. iii HANSLICK, Eduard. Do belo musical: uma contribuição para a revisão da estética da arte dos sons. Covilhã: LusoSofia, 2011, p. 38. iv BAILEY, Derek. Improvisation: its nature and practice in music. Boston: Da Capo, 1993, p. 83. v STENSTRÖM, Harald. Free ensemble improvisation. Tese: Academy of Music and Drama, Faculty of Fine, Applied and Performing Arts, University of Gothenburg, 2009, p. 66. vi FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber, 7ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 35. vii FURLANETE, Fábio Parra. O papel da escuta no processo criativo da livre improvisação coletiva. Em: Anais do XXIV Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música. São Paulo, 2014, p. 5. viii FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996, p. 43. ix FOUCAULT, Michel. O que é um autor, 9ª edição. Lisboa: Nova Vega, 2015, p. 49.
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